Bestiário do curitibóca ou Exemplos da babaquice

                                         Bestiário do curitiboca

                                                        ou

                                      Exemplos da babaquice *

                                                                   

 

                                                                               

                             Arthur Virmond de Lacerda Neto. Fevereiro e março de 2005.

 

 

                 * Estranhará, porventura, o leitor, o emprego do substantivo “babaquice”, plebeísmo que normalmente não usaria e de que me abstenho rigorosamente no meu falar. Resolvi empregá-lo, todavia, porque certos vocábulos exprimem insubstituivelmente certas idéias, como neste caso, em que, por outro vocábulo, o comportamento dos curitibócas qualificar-se-ia ou eufemistica ou academicamente, o que não me interessa, em nenhum dos dois casos. Reconhecida a verdade de que todo curitibóca encarna um babaca, o seu comportamento corresponde a uma babaquice.

             Acaso algumas pessoas reconhecer-se-ão nos fatos que narro aqui: tanto pior para elas. Não poderão acusar-me de havê-las desprestigiado em público, porquanto não nomino a ninguém; se, de fato, reconhecerem-se, que as minhas ponderações sirvam-lhes, ao menos, para conscientizarem-se de outros ressentem-se ao serem mal tratados, ao menos eu que, não sendo curitibóca, acho-me dotado da capacidade de indignar-me com certas atitudes de certos dos meus conterrâneos.

 

           

 

                        I- Introdução

            Famigerou-se, na própria cidade de Curitiba e fora dela, o comportamento dos seus naturais, caracterizado pelo individualismo, pela indiferença ao próximo, pela introversão face a ele, pela mediocridade afetiva, pelo egoísmo.

            Tais mentalidade e procedimento pertencem ao tipo humano que se vulgarizou pela alcunha de “curitibóca”, cuja psicologia analisei no ensaio “O curitibóca”, o mais comentado de quantos reuni no livro “Provocações”, que, aliás, um livreiro de Curitiba recusou-se a vender, em razão, precisamente, do texto em causa.

            Enquanto “O curitibóca” descreve a mentalidade respectiva, em abstrato, aqui exemplifico-a, em concreto, por meio de algumas situações auto-biográficas, que os curitibanos e quantos com eles convivem saberão multiplicar com enorme facilidade, por experiência própria ou alheia.

           Em geral as pessoas, em Curitiba, são cônscias da mentalidade e do comportamento dos  naturais desta cidade, que se comenta, que ridiculariza-se, que critica-se, que ilustra-se sob a forma de anedotas: o que passo a narrar corresponde a exemplos de uma realidade notória que somente os hipócritas negariam ou procurariam tergiversar. O curitiboca é antipático, é desagradável, é arrogante: precisa deixar de sê-lo e merece ser criticado.

            Antes de que algum curitiboca indigne-se comigo e pergunte-se “De onde apareceu este sujeito, para dizer isso de nós!?”,  repito aqui o que exprimi nas “Provocações”: sou curitibano da gema e quatrocentão, pelos  lados de pai e de mãe;  criei-me em Curitiba e felizmente, consegui libertar-me da mentalidade ambiente, que posso criticar livremente, não apenas porque existe liberdade de expressão como, sobretudo, porque estou a falar da minha terra e da minha gente.

 

            II- Descaso

Em inícios de 2005,  concluí que a minha vida achava-se, de certo modo, excessivamente monótona, pelo que tomei duas decisões: adquiri uma espada e fiz o que não fazia há largos tempos: procurei os meus amigos, fossem os ex-condiscípulos de Medianeira, fossem pessoas que conheci posteriormente ao término do meu curso naquele colégio.

Da primeira decisão resultou que enriqueci o meu modesto acervo de antiguidades; da segunda, que  amarguei ter amigos em Curitiba.

Ao passar a procurar os meus amigos, reuni um certo volume de perseverança, de paciência, de fortaleza de ânimo, para não me desencorajar nem deprimir pelas decepções e pelas desatenções que sofreria e que, de fato, sucederam-se.

 Foi assim:

    Convidei um para almoçarmos; ele aceitou e falhou. Procurei-o na tarde do mesmo dia: nascera-lhe um sobrinho e ele ignorava o meu número de telefone para desmarcar o almoço, cujo convite mantive, para o domingo subseqüente, em que ele, uma hora antes do horário marcado, telefonou-me dizendo-me que lhe surgira um contratempo profissional. Compreendi-lhe o compromisso e renovei  o convite, para dali a uma semana. Ele aceitou-o e ….falhou, desta vez, sem me dar  explicação nenhuma. Em reciprocidade, passei largos meses sem o procurar, contrariamente ao que fazia com alguma regularidade.

   Convidei um ex-aluno, para almoçarmos. Combinamos, por alvitre dele, de, no dia seguinte, pela manhã, dizer-me se poderia ser no dia ainda subseqüente. Ele telefonou-me e marcamos para o dia sucessivo ao do telefonema. No dia aprazado, ele falhou e só me propiciou explicações quando, duas semanas mais tarde, procurei-o: se não o fizera, não teria  recebido a menor satisfação.

            A um outro, meu ex-aluno, convidei por correio eletrônico, dizendo-lhe que o tempo transcorre sem que as pessoas se encontrem, pelo que, perdem o contacto desnecessariamente, o que motivara-me a procurá-lo. Não tive resposta, quando o mínimo da educação e da consideração era responder-me, singelamente que fosse. Volvidos inúmeros dias, insisti; desta feita ele respondeu-me, dizendo-me que andava na “correria” e que talvez me procurasse na semana subseqüente, o que não se verificou, fosse então, fosse depois.

A outra pessoa, quem procurei, durante certo período, repetidamente, por telefone: era-me, sempre, receptiva e simpática; porque, no entanto, jamais me procurasse, espacei os telefonemas que lhe fazia, até que cessaram inteiramente. Muito mais tarde, comunicamo-nos (pelo msn), ao que exclamou-me “A quanto tempo”, ao que rispostei-lhe “Sim, você nunca me procura”; justificou-se ela com a “correria”: há quatro anos  não me procurava; aliás, não me procurou jamais: não foi por causa do seu excesso de atividades, foi por descaso, puro e simples. (É freqüente as pessoas dizerem-se, umas às outras: “Eu te ligo”, mormente sinônimo de “Não lhe ligarei”, em que à mentira do enunciado soma-se a má-fé da falsa intenção, forma de se evitar um contacto indesejado, o que, admito, muitas vezes é compreensível. Trata-se de um verdadeiro costume, cuja existência aponta a medida em que as pessoas permitem-se a hipocrisia e mesmo o cinismo: é desejável que se substitua esta fórmula, por outras, menos insinceras e menos cínicas, a exemplo de “Ligo-lhe noutro dia”, “Depois a gente se fala”, das quais, aliás, é freqüente a segunda).

Um amigo de velha data, que se alegrou com um telefonema que lhe fiz, prometeu-me, em um sábado, visitar-me no meu escritório, na segunda-feira seguinte para então combinarmos um encontro. Escusa dizer que não o fez e que se eu não o procurasse, no final de semana seguinte, não nos teríamos voltado a falar.

Telefonei várias vezes ao escritório de outro, para invitá-lo a almoçarmos juntos: a sua secretária informava-me que ele se achava atendendo a um cliente, pelo que não lhe falava, embora ela anotasse o número do meu telefone: ele não me telefonava.

Após alguma persistência, consegui falar-lhe e marcamos um almoço, que acabou por se frustrar, dado um impedimento da parte dele. Ao menos, teve-me a consideração de mandar avisar-me, no dia aprazado, da sua impossibilidade.

Semanas depois, persisti: novos telefonemas, ele sempre ocupado com clientes; por facilidade de comunicação, convidei-o por via eletrônica, a exemplo do que tentara anteriormente: como anteriormente, nenhuma resposta recebi. Farto de insistir e, máxime, da ausência de uma manifestação qualquer da parte dele, desisti do convite. Assim terminam as amizades.

A outros, vários, exprimia o meu desejo de visitá-los, no final de semana: compromissos já assumidos impossibilitavam-nos de receberem-me; protelava a tentativa de visita para o sábado ou o domingo subseqüentes: novamente ela frustrava-se sob idêntica alegação. Jamais eles sugeriam-me um dia alternativo em que os visitasse ou uma alternativa à própria visita: cabia-me, a mim, sempre, a iniciativa, e a persistência,  a vencer uma resistência passiva: havia-lhes desinteresse (caso em que a minha companhia não lhes importava especialmente), ausência de reciprocidade (caso em que não me eram amigos autênticos) ou repugnância a visitas, caso em que se manifesta a índole do curitibóca, avesso a receber em casa, mesmo os amigos, que raramente convidam e são convidados: em Curitiba, as amizades manifestam-se à distância e por intervalos.

 Interroguei-me se eles, de fato, haviam, já, assumido compromissos, ou se assim alegavam, falsamente: admiti como possível a mentira e presumo que me hajam enganado mais de vez.  Certamente, a nenhum deles ocorreu que evasivas ou  negativas sucessivas podem magoar, mercê do aspecto  de  rejeição, descaso ou desinteresse, ou da sua realidade efetiva.

            O melhor amigo dos homens, são os outros homens;  o melhor amigo dos curitibanos, freqüentemente, é o cão, que não os molesta procurando-os para os visitar.

 

            III- Individualismo

     À volta dos meus 24 anos de idade, freqüentei assiduamente a casa de uma parente minha, cerca de quinze anos mais velha do que eu e simpática.  Depois, deixei de fazê-lo e porque vários anos houvessem transcorrido sem que nos víssemos, decidi-me a visitá-la, efeito para o qual procurei-a várias vezes, sem a encontrar em casa ou sem que ela dispusesse de tempo  para receber-me. Após vários telefonemas, em que fracassava o meu propósito de avistarmo-nos, ela recomendou-me: “Vá telefonando”: era exatamente isto o que eu vinha fazendo, inutilmente, há semanas. 

Ou ela desejava evitar-me, efeito para o qual alegava escusas que improvisava e depois recomendou-me que renovasse os telefonemas, para protelar indefinidamente uma visita que lhe repugnava ou, mais provavelmente, priorizou exclusivamente as suas conveniências, ou seus afazeres, os seus interesses e os seus lazeres, sem a menor consideração por mim, em uma atitude individualista.

Não a procurei mais, por longos meses. Anos transcorridos, procurou-me, com relativa insistência: por interesse próprio.

 

            IV- Deseducação

            A amigos que formei nas mais variegadas circunstâncias, presenteei com livros da minha autoria, pelos correios, com dupla despesa minha: a do exemplar, que deixava de vender, e a do envio postal.

Quando comunicava-me com eles pessoal ou telefonicamente, agradeciam-me sempre, ao anunciar-lhes a remessa ou após havê-la efetuado.  Se, no entanto, não se estabelecia (por iniciativa minha)  o contacto, raríssimos agradeciam-me, embora para todos remetesse, juntamente com os livros, um cartão de visitas que continha, impressos,  os meus números de telefone e endereço eletrônico.

No começo da distribuição, dedicava-os, concisa porém sinceramente, em uma época em que atribuía às dedicatórias o valor de uma singela declaração de amizade ou de estima. Meses antes, oferecera, a dois amigos, nos respectivos natalícios, vários livros, cuidadosamente dedicados; por então escandalizara-me a observação de Eduardo Frieiro, em livro da sua autoria, de que as dédicas hão de ser lacônicas e secas, como “A Eça de Queiroz – de Machado de Assis”, destituídas de qualquer expressão de afetividade ou de apreço. Por então, indignou-me que certa pessoa dedicasse-me um livro por esta forma.

 Com o andar do tempo, todavia, observei que, embora sofresse a dupla despesa (a do exemplar e a da remessa), embora despendesse do meu tempo e do meu esforço em preparar os sobrescritos e enviar os exemplares, embora preocupasse-me com a gentileza de  os dedicar, os destinatários rarissimamente prestavam-se  ao mínimo da consideração e da boa educação de agradecer-me.

Disto concluí que, se por um lado interessava-me prosseguir a distribuição dos livros, por outro não mereciam, os beneficiários, em geral, uma dédica: cessei de escrevê-las,  limitando-me a reunir ao livro  um cartão de visitas, de regra sem o traço vertical sobre o meu nome (indicador de trato amistoso) e eventualmente com ele; de onde em onde, pospunha, ao meu nome, a palavra  “oferece”: de uma simpática solicitude que me era habitual (escrever dedicatórias), transitei para uma frieza correspondente ao tratamento que (salvo raras exceções) os destinatários dispensavam-me, ao receber os livros: amor com amor se paga. Hoje, não mais os dedico (salvo se solicitado neste sentido), mesmo os da minha autoria e prova de que não são as dedicatórias que sensibilizam, acha-se em que algumas pessoas agradecem-me não obstante não lhas escreva.

            No meu “Provocações”, citei o nome de vários amigos, em  nota a “O homem amistoso”; a todos solicitei assensso para fazê-lo, a um, por escrito, mercê de uma carta em que o informava da publicação, em breve, do  livro, e que desejava-lhe o consentimento para estampar-lhe o nome. À carta acompanhou uma cópia do texto em questão.

   Volvidos alguns dias, porque ele nada me respondesse e porque as operações de diagramação do livro se achassem adiantadas, remeti-lhe  um telegrama em que lhe pedia prontidão na resposta, mencionando-lhe o meu número de telefone comercial, pelo qual  ele poderia,  na minha ausência, deixar recado com a minha secretária.

            Um telegrama supõe alguma urgência, que o texto respectivo explicitava. Como antes, o amigo silenciou e prossegui na espera, cada vez mais premente, da resposta.

        Dois dias após, porque  urgisse-me o tempo, prestei-me ao trabalho de averigüar o número de telefone residencial do amigo (fora do Paraná), por meio de cujo gravador solicitei-lhe toda a presteza na resposta. Novamente, informei-o dos meus números de telefone.

Finalmente, após a angustiante demora de vinte dias ou mais, ele telefonou-me: recebera as minhas comunicações, declarou-se assoberbado ultimamente, estimou-me o texto e autorizou-me a publicar-lhe o nome. Exprimiu-me pretender renovar o telefonema, “para saber como você está”, o que não fez, nem na altura, nem jamais.

            Que ele andasse azafamado, admito e compreendo. Que isso lhe representasse óbice para responder-me, mesmo sem a prontidão que lhe solicitei, por telefone, telegrama ou eletronicamente, a ponto de ser-me necessário insistir como o fiz, é o que não posso compreender e que atribuo a uma só atitude: descaso e negligência.

            A outro amigo remeti um exemplar de um dos meus livros, em que lhe figurava o nome, várias vezes, e simpaticamente nelas todas. Ele não me acusou o recebimento dele, nem me agradeceu por ele. Estranhando-lhe o silêncio, semanas após, telefonei-lhe à casa, para certificar-me de que o recebera: recebera-o.

Dias mais tarde, explicou-se, por via eletrônica:  não me agradecera antes por se achar avariado o computador de seu uso doméstico, o que  lhe impedia as comunicações informáticas,  que  ele fazia, então, de outro aparelho. Ele não foi capaz, todavia, de usar outro aparelho, o telefone, que na sua casa funcionava, sendo certíssimo que conhecia os números  dos meus, do comercial e do residencial.

A escusa foi infantil, ridícula mesmo, e irritante. Por mais que ele se encontrasse (como creio) de boa-fé, a negligência e a justificação que se lhe seguiu, revelam descaso por  desenvolver algum esforço em favor  de quem o merecia.

            No intuito de tratar certa pessoa com especial deferência, remeti-lhe um exemplar de um dos meus livros, acompanhado de uma breve carta em que lho oferecia e em que lhe confidenciava certa particularidade extraordinária, que deveria interessá-lo especialmente: cuidava-se de um segredo literário que, como autor, lhe confidenciava e que tornava-lhe o livro  excepcionalmente atraente.

Escrevi-a em uma folha de papel especial, que inseri no sobrescrito correspondente; dediquei o exemplar com a fórmula convencional “A Fulano de Tal, oferece o Arthur de Lacerda”.

            Meses antes, esta mesma pessoa externara-me, telefonicamente, o seu desejo de conhecer-me, o que, sendo recíproco, exprimi-lhe então; ofereci-lhe o exemplar do livro com a carta formulada nos termos em que o fiz como expressão,  invulgar, de especial consideração.            Remessa do livro, carta e revelação, nenhum dos três mereceu-lhe o esforço de sequer acusar-me o recebimento do exemplar e agradecer-me por ele. Haver-lhe-á, porventura, desagradado o conteúdo do livro: não o creio; na certa não o leu, até hoje.

Havia-lhe, ao menos, um atenuante: não era meu amigo, apenas um conhecido, telefônico. Mesmo, no entanto, com os meros conhecidos é desejável adotar-se um mínimo de cortesia, máxime se, como era o caso, as relações recíprocas são algo formais e cerimoniosas.

Em suma: descaso, negligência, deseducação extrema.

(Objetar-se-me-á: “Ofereceu os livros sem que lhos pedissem”; “Eles não agradaram”; responderei: “Tive a solicitude de presentear com eles; tomei a iniciativa gratuitamente, fui generoso, tive esta consideração e não me tiveram a mínima consideração recíproca, de agradecerem-me por eles”. A verdade é que, as pessoas em geral, no Brasil, são mau educadas e fracamente dotadas de consideração pelo próximo, o que a experiência, amarga, de terceiros, confirma e que descobri ao viver em Lisboa: nunca fui tão bem tratado quanto lá, onde descobri que, até então, era mau tratado no meu país, sem ter consciência disso.).

           

 

            V- Desinteresse           

            Anos, muitos, já lá vão, procurei os meus amigos, ex-colegas do meu curso de Direito, sistematicamente, um por semana. Sugeria visitá-los nos fins de semana: salvo um único, nenhum dos demais podia receber-me, porque tivessem, já, atividades que desenvolver aos sábados e domingos, ainda que eu lhes telefonasse com dois ou três dias de antecedência, por modo a possibilitar-lhes destinarem-me alguns momentos, antes de resolverem ocupá-los de outro modo: para nenhum deles, a minha amizade importava a ponto de ele reservarem-me, eventualmente que fosse, uma parte dos seus finais de semana, o que levou-me à interrogar-me até que ponto eram, de fato, meus amigos e até que ponto  a minha amizade importava-lhes de fato.

            A considerar pela forma como me tratavam neste particular, responder-me-ia que era-me amigos e a minha amizade importava-lhes em exígua medida; ponderei também que, se me enganasse na resposta, havia da parte deles, uma certa proporção de individualismo, de um certo egocentrismo, em que os amigos contam pouco, ao menos em que contava pouco o amigo que era eu. Contas feitas, o resultado era mais negativo do que positivo.

             “Que bom que você ligou”, diziam-me alguns: é gratificante saber-se lembrado e ser procurado; lembrava-me eu deles e os procurava, embora, a mim, não me procurassem nunca jamais: eu não lhes importava e ainda menos lhes fazia falta, claro está.

            De então ao presente, transcorreram cerca de treze anos. Trabalham todos e casou-se a maioria; as vidas respectivas caíram (como a da generalidade das pessoas), na rotina do labor nos dias úteis, e, nos fins de semana, na das visitas aos pais respectivos ou aos sogros, e dos ludismos habituais (cinema, praia, televisão). Ao cultivo das amizades, fracamente dedicam-se, sob a alegação de que escasseia-lhes o tempo ou  de que a família ocupa-os assaz.

Não nego veracidade a ambas alegações que, no entanto, não passam de pretextos com que se dissimula o desinteresse pelas suas amizades: a existência das pessoas corresponde a opções em que elas fazem o que de fato lhes interessa e em que abstém-se de fazer o que lhes é secundário ou irrelevante: elas não cultivam as suas amizades porque estas são-lhes secundárias ou irrelevantes, porque não as querem cultivar, porque os amigos apenas vagamente lhes interessam.

 Quisessem, de fato, cultivar as amizades, fa-lo-iam, assim como viajam, assistem a películas cinematográficas, usufruem da praia, etc., porque querem-no, de fato.

            Outros concordarão, com uma certa resignação: “É a vida”, “É mesmo assim”. É assim porque as pessoas fazem que seja assim; a vida é assim porque elas vivem desta forma, e não diferentemente, podendo fazê-lo e, mesmo, em certa medida, devendo-o. Enquanto não o fazem, a vida delas não é o que poderia ser.

 

            VI- Frieza

 

Tive um amigo, que conheci porque tomássemos o mesmo ônibus escolar e com quem tinha muitas afinidades; fomos contemporâneos de escola por anos a fio e condiscípulos no derradeiro do curso, findo o qual, costumava telefonar-lhe semanalmente, em conversações animadas e longas. Com o passar do tempo, contrafez-me que os telefonemas fossem meus só, para ele, e jamais recíprocos, do que me queixei duas vezes: na primeira, ele riu-se, na segunda, respondeu-me que se fosse telefonar a todos os seus amigos, não disporia de tempo “para mais nada”. Em certas ocasiões, uma risada é mais eloqüente do que muitas palavras e uma frase diz tudo.

De então por diante, passei a telefonar-lhe a intervalos cada vez maiores, até cessá-lo de todo. Em momento nenhum ele procurou-me:   entre nós a amizade perecera, do que, aliás, suspeitara dada a frieza com tratou-me ao avistarmo-nos pela derradeira vez, em casa dele, sem que, jamais, houvesse-lhe motivado o afastamento: com o andar dos anos, muitas pessoas mudam, com o que desaparecem as afinidades que propiciavam certas amizades que, assim, desaparecem com elas. Não o procurei mais, certo de que sem reciprocidade, não há amizade e que de que aquela há de existir espontaneamente para haver amizade sincera.

 

VI –Indiferença

 

              Em tempos de estudante de Direito (de 1985 a 1989), encontrei-me, na rua, com um conhecido que, por sua vez, achava-se em companhia de um conhecido seu, ambos professores na Universidade Federal do Paraná. Formamos um trio, de que participei como ouvinte e que desfez-se porque o meu conhecido se retirasse, deixando-nos a  mim e ao outro professor, cujo trajeto a seguir, naquele momento, coincidia com o meu: descer a rua XV, pelo seu trecho calçado, até o ponto em que divergíssemos, a saber, a esquina da rua Comendador Araújo com a Visconde do Rio Branco.

                Porque o meu percurso coincidisse com o do professor e porque já me encontrasse em companhia dele, resolvi acompanhá-lo: eu dirigi-lhe a palavra várias vezes, sobre assuntos que, supostamente, interessá-lo-iam, a saber, a universidade, os seus problemas, a eleição para reitor, que ele disputava como seu candidato, do que, aliás, desistiria poucos dias após.

               Embora lhe falasse, ao longo das oito quadras que calcorreamos, ele ignorou-me absolutamente: tratou-me como seu eu inexistisse e não me deu palavra nenhuma, em momento nenhum. Esquece-me se acaso respondeu-me ao despedir-me dele; possivelmente sequer então haver-se-á dignado de falar-me. Em linguagem vulgar, chama-se a isto de babaca; por outro falar, de boçal; chamo-o de curitibóca típico: os curitibócas típicos não falam a estranhos.

                 Vinte anos, ou mais, passaram-se: desde então vejo-o com alguma freqüência nas imediações das respectivas residências:  reconheço-o, fito-o, porventura ele a mim e, merecidamente, abstenho-me de cumprimentá-lo.

                 Não lhe sou deseducado: sou-lhe recíproco. Merece tratamento diverso deste?

                 Certa feita, participei de uma sessão enófila, em que vários apreciadores de vinho reúnem-se periodicamente para apreciar a bebida. Trata-se de um grupo exíguo em que, por sê-lo, os seus integrantes conhecem-se mutuamente. Na oportunidade em que participei da degustação, à medida em que as várias pessoas chegavam, cumprimentavam-me e eu a elas. Houve, no entanto, uma mulher (mulher mesmo, e não senhora, porquanto as senhoras são educadas) que, deparando-se comigo – um estranho –  mirou-me de alto a baixo, fitou-me nos olhos e, pura e simplesmente, virou-me a cara.

              Noutra ocasião, participei de um almoço em um clube do Rotary Club. Achava-me acompanhado de um amigo, que freqüentava-o; os comensais, à medida em que chegavam, cumprimentavam-no e a mim. Em certo momento, ouvíamos, o meu amigo e eu, um membro do clube; eis que chega outro, que cumprimenta o seu colega e vira as costas, sem  cumprimentar nem a mim nem ao meu amigo: éramos-lhe estranhos. A deseducação agrava-se com a circunstância de que este indivíduo era o presidente daquele grêmio e incumbia-lhe, portanto, fazer as honras da casa e, pelo menos, saudar quem se incorporasse ao grupo. O meu amigo, baiano, afeito à hospitalidade nortista, indignou-se com a indiferença com que foi tratado; já eu ri-me interiormente da babaquice do curitiboca.

            

        VIII- Mais frieza

 

               Em criança, estudante no Colégio Medianeira, de Curitiba, tive um amigo, com quem compartilhava o ônibus da escola e de quem guardava amáveis lembranças, anteriores a 1974. Após onze anos sem o ver, descobri-lhe o endereço, e, em 1985, fui visitá-lo: ele reconheceu-me, parolamos demoradamente, rememorarmos os tempos de escola e revi-o algumas vezes em sua casa, nos meses subseqüentes. Ele, contudo, jamais me procurou, pelo que, após dado tempo, cessei, reciprocamente, de o procurar.

            Transcorreram vinte anos: em uma reunião de ex-alunos da escola, promovida por uma ex-colega comum, reencontrei-o; ele estranhou-me que,  antes, o procurasse e depois, deixasse de fazê-lo:  eu tomei a iniciativa de o encontrar, eu, a de o procurar, eu, a de visitá-lo, ao passo que ele jamais tomou atitudes recíprocas; não verificando eu um mínimo de reciprocidade que se manifestasse por atitudes, preferi abster-me das minhas; ele, por sua vez, foi incapaz de aperceber-se de que a causa do meu afastamento radicava na abstenção dele: contentava-se com uma amizade unilateral, em que o objeto da unilateralidade, ou seja, o seu beneficiário, era ele.

             Algumas semanas mais tarde, recebi-lhe, por via eletrônica, um pedido (dirigido em comum a inúmeras pessoas), sob o título “Amigos do Medianeira”, em que ele solicitava, aos destinatários, auxílio na divulgação do seu negócio. Apaguei a mensagem de pronto, sem a divulgar: merecia mais do que isso?

 

      IX- Anedota

 

        Em certo lugar do Brasil, o marido flagrou a mulher em adultério: revoltado, homicidou-a e ao seu amante.

         Em outro lugar do Brasil, o marido flagrou a mulher em adultério: matou-lhe o amante e espancou-a.

        Em um terceiro sítio brasileiro, o marido flagrou a mulher em adultério: expulsou-a de casa e surrou-lhe o amante.

        Em Curitiba, o marido flagrou a mulher em adultério: fechou a porta do quarto e exclamou, convicto da sua razão: “Não falo com estranhos!”.

 

X- Conclusões

            Salvo no caso do item V, em que um relacionamento pereceu naturalmente, nas demais situações prevaleceram o descaso, a indiferença, a desconsideração, mesmo a deseducação; aos indivíduos envolvidos faltaram solicitude, atenção, reciprocidade, educação. Houve o cada qual ocupar-se, exclusivamente, de si próprio, em suma, individualismo e egoísmo; não houve,  cada qual ocupar-se, também, do seu semelhante (no caso, eu), em suma, desprendimento e altruísmo.

            As pessoas com quem verificaram-se os episódios que narrei, pertencem à classe média urbana de Curitiba. Longe de mim adotar conceitos marxistas e analisar os fatos em termos de classes econômicas: não estou a analisar a burguesia curitibana,  porém  uma certa modalidade do ser humano, em que averigüo uma dada mentalidade, que gera um dado comportamento e que recebe um certo designativo: a mentalidade e o comportamento individualistas, que priorizam o “eu” e desdenham o “você”; o designativo é o  de “curitibócas”.

            Tardei alguns anos para compreender aquilo de que ouvira referências  de terceiros e que permitiu-me entender o que se passava: vivo em Curitiba, em meio a curitibanos, que se comportam como tais, como aquilo que, merecidamente, apelidou-se de “curitibócas”, indivíduos egoístas, egocêntricos, individualistas, reservados, ingratos, introvertidos, tristes, deprimentes.      

Amigo de curitibócas, sou-lhes vítima porque padeço-lhes o temperamento e o tratamento, de que não comungo, que compreendo mal e a que reajo mal: sinto-me incomodado por tratarem-me desta forma, em parte, frustrado, quiçá, mesmo, ressentido. O mesmo sentirão muitas outros, em Curitiba, inclusivamente os próprios curitibócas.

            Objetar-se-me-á que exagero, que “não é bem assim”, que generalizei indevidamente, que, porventura, tenho maus amigos, que provavelmente motivei-lhes as atitudes, que os curitibanos, quando unem-se de amizade, são “maravilhosos”: observe cada leitor de Curitiba a sua própria vida, avalie que papel apresentam nela as suas amizades, que esforços despendeu por procurar os seus amigos, que dedicação lhes vota, quanto do seu tempo lhes dedica, com que generosidade os trata. Observe como os seus amigos o tratam, que esforços despendem eles em procurá-lo, que dedicação deles recebe, quanto do tempo deles eles dedicam-lhe, com que generosidade eles o tratam. Observe mais com que naturalidade e espontaneidade as pessoas o tratam em Curitiba, com que naturalidade e espontaneidade trata as pessoas em Curitiba: observe tudo isso com sinceridade, no com honestidade face a si próprio, com honestidade de consciência: os  resultados serão constrangedores, não obstante, claro, as exceções.

São difíceis, os curitibanos, em matéria de relacionamento, na sua falta de consideração; são arrogantes, na  acepção de pessoas; são egocêntricos, ao priorizarem-se a si próprios, em detrimento do seu semelhante e, muitas vezes, às custas dos sentimentos deles.

            Os curitibócas conduzem-se lamentavelmente face aos seus amigos e às pessoas em geral. Na sua afetividade medíocre, na sua mentalidade anti-social, no seu comportamento individualista, o sentir, o pensar e o atuar coligam-se contra o seu semelhante; as curitibóquices são decepcionantes, frustrantes, irritantes, deprimentes, índices de uma verdadeira incivilidade e expressões de agressão moral. Reputo detestáveis os curitibócas; alguém considerou-os repulsivos: entende-se porque.

Encarnam os curitibócas uma expressão piorada do ser humano, ou, por outra, representam, em grau acentuado, certos atributos negativos das pessoas em geral, como a ingratidão, a indiferença, o individualismo, motivo porque o curitibóca típico não merece atitudes de generosidade e desprendimento, não ao menos, se dele esperar-se a gratidão e o reconhecimento que teriam as pessoas axiologicamente bem formadas. Ao curitibóca deve-se tratar reciproca ou preventivamente: ou regular-se o que se lhe dá pelo que dele se recebe, ou pela expectativa do que razoavelmente dele receber-se-á, ou seja, nada ou muito pouco, caso em que tratar-se-á o curitiboca com a frieza que ele próprio votaria ao seu semelhante. Por outras palavras: generosidade, com o curitiboca, são penas perdidas, é dar-se-lhe o que ele não merece, o que ele é incapaz de compreender e de praticar. 

            “Trate aos outros como gostaria de ser por eles tratado”, ensina certa sabedoria; “Trate bem”, adotam alguns; ambos critérios substituiram-se, em Curitiba, por este outro,  mais simples e mais conciso: “Trate mal”.

 

 

 

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Uma resposta para Bestiário do curitibóca ou Exemplos da babaquice

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