A ditadura republicana do Positivismo

Circula, especialmente no Brasil, uma desinformação que deturpa completamente o significado do pensamento político do Positivismo, mediante o expediente simplíssimo da repetição de uma fórmula lingüística fora do seu contexto original e desacompanhada de qualquer explicação que a elucide: a ditadura republicana.

De larga aceitação nos meios castrense e civil nos fins do século XIX e até meados do seguinte, o Positivismo, em sua vertente política, formula o conceito de “ditadura republicana”, que a bibliografia brasileira, com certa freqüência, associa a totalitarismo, a despotismo, a tirania. É corriqueira, nos historiadores, nos sociólogos, nos articulistas, a asserção de que os positivistas aspiravam a uma ditadura republicana, asserção que os autores desacompanham da mais mínima explicação do seu significado, por ignorância ou por consciente má-fé, o que sugere ao leitor, de modo sub-reptício, aquela equivocada associação e, de conseqüência, ojeriza pelo Positivismo.

Ora, nos meados do século XIX, quando Comte produziu a sua obra, o termo “ditadura” não apresentava o cariz depreciativo e odioso de que passou a revestir-se depois. Ao tempo, ninguém o vinculava com regimes liberticidas, com a supressão das liberdades de expressão, de imprensa, de reunião, de protesto, de parede. Ao contrário, ele achava-se vinculado sobretudo à ditadura romana, regime em que alguém ascendia a uma magistratura poderosa pela qual enfrentasse uma situação socialmente excepcional, que requeria uma excepcional e transitória concentração de autoridade em quem a exercia. Longe de encarnar um déspota, o ditador romano correspondia a uma autoridade consentida e legítima.

Comte não adotou o vocábulo ditadura como equivalente de totalitarismo porque não foi este o seu intuito e porque, se o tivesse feito, não teria sido entendido assim, não o poderia ter sido, dado que então a sua acepção não era esta. É claro que ele não poderia ter adivinhado que, com o andar dos tempos, o significado desta palavra cambiaria para o atual. Com efeito, segundo Pedro Laffitte, sucessor de Comte, ele “não dá de modo nenhum à palavra ditadura o sentido de poder pessoal absoluto que se lhe atribui” (LACERDA, 2003: 29).

O “dictare” latino (ato de enunciar palavras que alguém escreve), empregado em sentido figurado, originou o verbo ditar, ato de prescrever, ordenar, impor algum mandamento. Ditador é quem dita e ditadura é a ação de ditar, independentemente do regime político e da forma governativa correspondentes: são igualmente ditaduras os governos presidencialistas, parlamentaristas, republicanos, monárquicos, despóticos, fascistas, democráticos e quaisquer outros. Tenha o nome que tiver, consista em um único indivíduo ou em uma assembléia, esteja ou não distribuído por entre os chamados poderes legislativo e executivo, há, sempre, um órgão que emite determinações de cumprimento obrigatório por toda a sociedade, ou seja, em todos há uma fonte do ordenamento jurídico. Tal fonte encarna o ditador e portanto todo governo é ditadura e todo governante é ditador, ou seja, no vocabulário próprio de Comte, ditadura é sinônimo de governo e ditador, de governante.

Neste sentido figuram o substantivo e o adjetivo ao longo de toda a obra de A. Comte e na dos seus discípulos, como, por exemplo, no relatório do presidente da Sociedade Positivista de Manchester, C. G. Higginson, relativo às suas atividades de 1891: “Chamo a atenção dos nossos monarquistas ingleses para a instabilidade da monarquia hereditária e convido-os a cessar de prodigalizar as suas loas a monarcas que reinam porém não governam e, ao contrário, prestar justiça aos verdadeiros ditadores ingleses, os nossos primeiros-ministros, que governam porém não reinam” (Revista Ocidental, vol. 24, tomo III, Paris, 1891, p. 107).

                Carlos Jeanolle, antigo presidente da Sociedade Positivista, fundada pelo próprio Comte, assim explica: “O ditador, no seu pensamento [de Comte] não é o monstro imaginário, de que os nossos bons democratas falam com tanto horror, espécie de bicho-papão  que pode fazer tudo quanto lhe apraz e dispor, à discrição, da fortuna e da vida dos cidadãos aterrorizados. Inexiste, na história, nenhum exemplo bem autêntico de semelhante onipotência, mesmo nos piores imperadores romanos.[1] Augusto Comte chama de ditador todo chefe político que, tendo uma função determinada que cumprir, sob condições bem definidas e plenamente efetivas de responsabilidade, possui toda a iniciativa com que cumprir a sua tarefa especial. Parece evidente, com efeito, que aquele que tem a responsabilidade deve ter a iniciativa e, reciprocamente, que aquele que tem a iniciativa deve suportar a responsabilidade correspondente. O problema do governo consiste, no fundo, em conciliar a responsabilidade com a iniciativa”.[2]

                Dado que a palavra ditadura assumiu, após Augusto Comte, conotação liberticida e odiosa, Jeanolle prossegue: “o que Augusto Comte chamava de ditadura chamaremos, por consideração a preconceitos irracionais porém numerosos, de poder pessoal responsável”.[3]

                Também positivista ortodoxo, o brasileiro Alfredo Severo dos Santos Pereira propôs a substituição de ditadura por empireocracia, termo que “melhor designa a preponderância do governo prático sobre o teórico”.[4]

               

Contudo, nem toda ditadura é republicana, nem toda ditadura corresponde à concepção positivista. A ditadura republicana significa um governo 1) republicano e não monárquico, 2) uma república presidencialista e não parlamentarista, 3) um presidencialismo temporal e não espiritual.

Do primeiro ítem decorre a substituição das monarquias, forma de governo de base teológica (pois o monarca representa a divindade) e resquício do regime de castas (pois a família real encarna uma casta política); do segundo resulta a abolição das assembléias parlamentares, e o derradeiro justifica o prevalecimento de todas as liberdades públicas.

Na ditadura republicana não há câmara parlamentar, porém tampouco há despotismo: ao invés de as leis fazerem-se em assembléias, fazem-se mediante a participação de toda a sociedade: apresenta o ditador o projeto de lei à sociedade em geral, que manifesta-se livremente, protestando contra ele, censurando-o, emendando-o, apoiando-o, enaltecendo-o. Após três meses, o ditador avalia as manifestações e retira, reforma ou mantém o projeto, tendo em vista o bem público. Em qualquer dos casos, submete a sua decisão à maioria dos votos do eleitorado das capitais. Aprovado o projeto, converte-seem lei. Há, pois, uma democracia direta, muito mais ampla do que a dos regimes parlamentares.

Uma câmara de eleição popular elaborará a lei de meios e fiscalizará a gestão orçamentária do governo.

Característica fundamental da ditadura republicana, sem a qual não há verdadeira república, ainda menos a positivista, traduz-se na instauração, na palavra do positivista ortodoxo Teixeira Mendes, “do mais vasto sistema de liberdades públicas a que jamais se possa aspirar” (LACERDA, 2003:73), mediante a separação dos poderes temporal e espiritual. Ou seja, o Estado administra o bem público, sem a mais mínima compressão das liberdades de expressão, de imprensa e de reunião. E mais as de associação, de ensino, de sindicalização, de parede e mesmo de insurreição, se necessário! A ditadura republicana respeita-as, não as comprime e não interfere em questões de consciência, pertinentes à esfera do pensamento, em qualquer das suas formas.

Por isto “a Ditadura Republicana não originou nenhuma forma de autoritarismo, muito pelo contrário, combateu, combate e combaterá sempre a todas elas, venham de onde vierem, da direita e da esquerda”, assevera o positivista ortodoxo Luis Carlos Corrêa da Costa (LACERDA, 2003: 32).

Segundo ele, “nem a Ditadura Republicana, nem o Positivismo, nem Augusto Comte têm nada a ver com o autoritarismo, e aqueles que responsabilizam o Positivismo pelos arreganhos autoritários que abalaram o mundo, o fazem por ignorância ou má-fé” (idem).

Augusto Comte: “uma plena liberdade de exposição e mesmo de discussão é indispensável como garantia permanente contra a degeneração de uma ditadura empírica em uma tirania retrógrada” , “como garantia da ordem” (itálicos meus) (LACERDA, 2003: 84/5).

Longe de a ordem positivista equivaler à “ordem” policialesca, ao Estado autoritário e repressivo, no Positivismo ela identifica-se com todas as liberdades.

Apesar disto tudo, criou-se no Brasil o mito de que o Positivismo apresenta índole autoritária, de que equivale a um quase-totalitarismo e de que os regimes de Getúlio Vargas e de 1964 foram positivistas, como aplicações nacionais dos preceitos positivistas. Em nada disto há o menor fundamento.

Se Getúlio tivesse sido positivista de fato, jamais ter-se-ia convertido em tirano em 1937, jamais teria, sobretudo, criado um departamento de propaganda e censura para benefício seu, em que o temporal assumiu funções espirituais ao mesmo tempo em que coibiu as liberdades tão caras ao Positivismo.

Assim exprime-se o positivista gaúcho Mozart Pereira Soares, aludindo a Getúlio: “Muitos, equivocadamente, arrolam-no como positivista ou, no mínimo, simpatizante. A verdade é que nem isso ele o foi. […] Foi um permanente revolucionário, opondo-se às diretrizes de Comte. […] Com ele, a influência política do Positivismo se extingue no Estado” (SOARES, 1999: 176).

Atente-se: com ele, a influência política do Positivismo não se prolonga, não se mantém, não se afirma, porém, ao contrário, extingue-se! Desta extinção teria resultado que o Estado Novo correspondeu à aplicação, em âmbito nacional, da política positivista? É evidente que não.

Outro positivista, ortodoxo, Rubem Descartes de Garcia Paula, assim se exprime, referindo-se ao Estado Novo: “Regime que o velho Getúlio e seus escribas insinuavam como sendo inspirado no Castilhismo e, conseqüentemente, no Positivismo. (Bobagens, ainda hoje repetidas por outros “desconhecedores da história” e que não passam de patranhas) […] sobretudo a partir de 1937, quando assumiu a ditadura fascista-integralista, Getúlio renegou, esqueceu-se do que sabia do Positivismo e das ligações que tivera com a obra de Castilhos.” (itálicos meus) (PAULA: 1982:68).

Exceto a sua obra trabalhista, esta sim, de inspiração positivista, devida à influência do positivista Lindolfo Collor, o estado novo “não passou do ramerrão narcisista; ora obscurecido pela opressão, ora sacudido pela violência da repressão! O que não impedia seus partidários – como ainda hoje repetem tardios escribas– de dizerem que a ditadura estado-novista se inspirava ou equivalia à Ditadura Republicana. O que, conforme com o acima exposto, é incontestavelmente falso!”. (idem, 69).

No governo de Getúlio Vargas, instaurado em 1930, havia três positivistas: 1) o gen. Manoel Rabelo, interventorem S. Pauloaté 1932 e que, em 1935, em nome da maioria do exército, recusou o aumento de soldo que Getúlio oferecera à corporação, 2) Lindolfo Collor, que, Ministro do Trabalho, abandonou a pasta ao, em 1932, empastelar-se o “Diário Carioca”, em atentado à liberdade de imprensa congeminada com o beneplácito presidencial, e 3) o gen. Tasso Fragoso, que demitiu-se de Chefe do Estado Maior do Exército ao receber ordem presidencial de bombardear a cidade de S. Paulo. Não há memória de que qualquer dos três haja sido o mentor, o autor ou o apoiador de nenhum ato liberticida praticado por Getúlio.

Tendo a revolução de 1930 revogado a constituição vigente, despontou o movimento pela reconstitucionalização do país, do qual foi um dos cabeças o positivista general Lauro Sodré. Pela restauração de uma Carta Maior no Brasil, pegou em armas contra Getúlio, em 1932, ninguém menos do que o positivista Borges de Medeiros, sucessor de Júlio de Castilhos e de quem Getúlio fora secretário de Estado. Este reagiu prendendo-o e desterrando-o em Pernambuco por dois anos.

Se a estes positivistas animassem inclinações autoritárias, teriam apoiado a ausência de uma constituição, ao invés de pugnarem pela sua instituição, cujo efeito foi o de regulamentar os poderes presidenciais, tornando-os, de arbitrários e ilimitados, em circunscritos e legais, o que correspondia exatamente aos seus propósitos, ou seja, aos de evitar o despotismo.

Mais: durante o Estado Novo não havia nenhum positivista nos quadros de confiança do regime, ou seja, dentre o pessoal propriamente político, responsável pela orientação do regime. Havia, ao contrário, um anti-positivista militante, o general Góes Monteiro, que anelava pelo afastamento, do Exército, da mentalidade pacifista e libertária do Positivismo e que, não por acaso, foi um dos mentores da instauração da tirania em 1937.

Logo após o término da insurreição constitucionalista de São Paulo, deflagrada em 9 de julho de 1932,  o positivista ortodoxo Amaro da Silveira  proclamou, em opúsculo, a necessidade das seguintes “inadiáveis providências”:

1ª) Urge restabelecer legalmente a organização republicana, decretando desde logo, para esse fim, as medidas indispensáveis ao imediato restabelecimento da Constituição da República, promulgada em 24 de Fevereiro de 1891, como base de todo o aperfeiçoamento futuro de nossa organização política;

2ª) Urge decretar também a sumária derrogação de todas as leis e atos públicos violadores do regime republicano e federativo, consagrado por essa Constituição;

3ª) Urge, finalmente, decretar uma anistia ampla a vencidos e vencedores, sem distinção das causas que abraçaram e das classes e posições que ocuparam, em relação aos diversos abalos revolucionários, verificados a partir de 1922”.

Ele exortava  à reposição da constituição de 1891 que, de marcante inspiração positivista, assegurava as liberdades públicas, face ao regime que a abolira; exortava mais, à supressão das medidas anti-republicanas adotadas pelo governo (a exemplo da instituição do ensino religioso obrigatório, em 1931, violador da liberdade de consciência, ao que, aliás, reagiram prontamente os positivistas Agostinho Gomes de Castro e Jurandir de Castro Pires Ferreira, mediante a organização da Cruzada Republicana, que recolheu milhares de adesões pelo país afora); exortava, por fim, à pacificação por meio do perdão geral.

Ora, se o regime de então, o de Getúlio Vargas,  encarnasse a ditadura      republicana em âmbito nacional, Amaro da Silveira não exortaria à sua modificação, mediante a restauração da legalidade interrompida com a abolição, em 1930, da carta de 1891;  tampouco advogaria a sumária derrogação de todas as leis e atos que haviam infringido a república federativa, instituída por aquele diploma. Ele, ao contrário, calar-se-ia ou aplaudiria o regime, que, ao invés disto,  tacitamente desaprovou com a sua exortação. Desaprovou-o, como positivista, porque o regime de Getúlio, antes de 1937, não representou, de longe sequer, a ditadura republicana, como também não a representou com o Estado Novo a partir daquele ano.

Referindo-se ao Estado Novo, assim se exprime o positivista Jefferson de Lemos: “Infelizmente, uma revolução que sobreveio em 1930 […] aboliu a Constituição de 91, impondo uma ditadura ao mesmo tempo revolucionária e retrógrada, pois que infringia gravemente as liberdades públicas, e além de tudo, sob uma inspiração exótica fascista, que enfeixava nas mãos do Chefe de Estado todos os poderes […] A nossa continuidade histórica foi assim quebrada.”

Atente-se: ele qualifica o regime de Getúlio de ditadura revolucionária e retrógrada, apreciação pejorativa que certamente não formularia se o Estado Novo representasse o Positivismo ou o Castilhismo em âmbito nacional. Longe de naquele regime vislumbrar qualquer influência positivista, nela enxerga uma inspiração fascista, que, ao contrário da ditadura republicana, “enfeixava nas mãos do Chefe de Estado todos os poderes”, o que rompeu a continuidade histórica ao invés de afirmá-la, ou seja, à carta de 1891 – de marcada presença positivista no que tange às liberdades – substituiu-se uma realidade política liberticida e portanto anti-positivista.

Prossegue Lemos: “O caminho a seguir neste momento [escrevia em 1946], afim de restabelecer a nossa continuidade histórica, está assim indicado: manter a concentração do poder central sem impedir a autonomia dos Estados; República federativa e presidencialista, nos moldes da constituição de 1891; e, principalmente, manter integralmente o art. 72 desta Constituição, que atende a todas as liberdades públicas e ainda o seu artigo final, que a fecha com chave de ouro, pois que deixava margem a todas as medidas que um governo progressista desejasse empreender no sentido do bem geral, sem infringir seus princípios fundamentais: “A especificação das garantias e direitos expressos na Constituição, não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna” (negritos de Lemos).

Em1945, apropósito da eleição presidencial, disputada pelo gen. Eurico Gaspar Dutra, candidato getulista, e pelo oposicionista brigadeiro Eduardo Gomes, o positivista ortodoxo Carlos Torres Gonçalves, antigo quadro de confiança de Borges de Medeiros, assim escreveu: “Entre os concorrentes admissíveis, nossa preferência tem de ser pelo que professe maior número de postulados republicanos: [entre os quais] mais respeito pelas liberdades civis e políticas.

Neste momento, dos dois candidatos, um sendo corresponsável do regime liberticida estabelecido em 1937, está excluído pelos princípios republicanos.

                O outro, dando-nos a esperança da restauração de nossas tradições de liberdade[…] é o que desperta a nossa simpatia” (itálicos nossos).

 

Leia-se “O Estado Nacional”, de Francisco Campos, autor da constituição de 1937: não se encontra ali nenhum traço do positivismo. Consulte-se a História do Brasil, de Pedro Calmon, no capítulo referente às linhas doutrinárias do Estado Novo: encontrar-se-ão alusões ao fascismo, ao corporativismo italiano, ao paternalismo, à sua origem polaca, porém  nenhuma referência ao Positivismo nem à ditadura republicana.  Ler-se-á, ao invés, esta passagem lapidar, concernente a Getúlio: “Quem se desse à arte de interpretar-lhe, à luz da biografia, a conduta reservada e hábil, acharia o seu segredo no castilhismo rio-grandense, sem a sistemática positivista”.

Sem a sistemática positivista! Getúlio positivista!? O Estado Novo como expressão nacional do Positivismo, da Ditadura Republicana ou do Castilhismo ?! Quem o afirma são os ignorantes do Positivismo e os seus caluniadores, a despeito da palavra expressa dos seus adeptos e dos intérpretes isentos. Por que os primeiros exprimiriam a verdade dos fatos mais do que os segundos ou os terceiros ? Por que as afirmações daqueles gozariam de mais autoridade do que as negações destes?

Instaurado o Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, quatro dias depois o positivista confesso Antonio Reis Carvalho escrevia: “Os republicanos, os verdadeiros republicanos, os republicanos sociocratas não podem estar plenamente satisfeitos, porque o Presidente Vargas perdeu mais uma ocasião oportuna de instituir em toda a sua plenitude a ditadura republicana”. Ele não se rejubila pela adoção do regime positivista, senão, ao contrário lastima que ele não fosse instaurado. “Diante dos boatos alarmantes e das manifestações ostensivas dos fascistas verdes, os chamados integralistas […] o que esperavam aqueles republicanos era o péssimo e foram surpreendidos apenas pelo mau, ou, talvez, com mais justiça, pelo sofrível, e que é bem melhor do que tudo que se anunciava e do que tudo que existia”.[5]

Em 1938,  Reis Carvalho, positivista confesso, missivou ao então presidente Getúlio Vargas, com data de 13 de março. Na sua carta, dizia-lhe: “Para evitar a praga do Estado totalitário – bolchevista, ou fascista – e corrigir os erros da democracia, a solução é combinar a ditadura com a liberdade, organizando o regimen ditatorial republicano […] caracterizada acima de tudo pela separação dos poderes, pela mais ampla liberdade espiritual […]”[6].

A iniciativa da carta deveu-se a que Getúlio ordenara a censura de críticas, nas gazetas, do “bolchevismo ocidental, que dá pelo nome de fascismo”, enquanto, por outro lado, permitiam-se ataques ao “fascismo oriental, que dá pelo nome de bolchevismo”. Reis Carvalho pugnava pela liberdade de expressão, com  inexistência de censura à imprensa, peculiaridade própria do regime preconizado por Comte. Remata-a “confiante que, por um Ato Adicional, antes do Plebiscito, modifiqueis a Constituição de 10 de Novembro, no sentido de ser, não mais o que essencialmente é – uma Constituição Ditatorial, mas o que deve ser – uma Constituição  Republicana, de sorte que o governo do Brasil seja de fato uma Ditadura – o que aliás tem sido sempre com ou sem sufrágio universal, com ou sem Parlamento – mas Ditadura Republicana – o que nunca foi e ainda não é”.

                Atente-se às distinções que adota entre o que o regime era e o que não era: era ditadura, porém não republicana, não a positivista.

Exatamente dois meses mais tarde, em nota enviada a Getúlio Vargas, Reis Carvalho exprime o seu anelo porque o Estado Novo transforme-se em “Estado verdadeiramente republicano que deve ser, onde se observe integralmente o Princípio da Separação dos Poderes, onde reine a mais ampla liberdade espiritual, e não seja mais um Estado semi-fascista, onde persiste a confusão dos poderes, onde vive cerceada a liberdade espiritual”.

                Em primeiro de julho daquele ano, Reis Carvalho dirigiu-se por carta, em texto comum, ao Ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, e ao Ministro da Marinha, almirante Aristides Guilhen, pela qual ofereceu-lhes exemplares do seu livro “A Ditadura Republicana” em que, explica-lhes, demonstra “que a Ditadura Republicana não é Ditadura no  sentido vulgar do termo, não é governo discricionário, não é governo despótico, mas, ao contrário, é o mais constitucional, o mais liberal de todos os governos”.

Roga[7] o missivista aos chefes das Forças Armadas que “intervenham perante os seus chefiados para que o Exército e a Armada colaborem eficazmente com o Presidente Vargas, afim de que, conservado e melhorado o Estado Novo, este não seja apenas ditatorial, como tem sido, mas também republicano, como deve ser, e realize afinal a combinação integral da ditadura com a liberdade, segundo o voto de Hobbes, cumprido espontaneamente por Frederico e sistematizado por Aug. Comte”. Prossegue: “estou certo, repito, que o Presidente Vargas só aguarda a colaboração decisiva das forças armadas para instituir definitivamente o regimen ditatorial republicano […] Para realizá-lo o Estado Novo Ditadorial Republicano, basta o Presidente Vargas modificar a Constituição de 10 de Novembro, antes do Plebiscito prescrito no art. 187, por um Ato Adicional, no sentido de poder ser ela precedida deste

                                  Artigo fundamental – O Estado Novo adotado nesta Constituição, só tem

                                 por fim exclusivo manter a ordem material e garantir a liberdade espiri-

                             tual. Donde proibição absoluta de agir contra quaisquer idéias, e também

                            contra quaisquer atos que não violem essa ordem, sejam quais forem os

                            perigos sociais que daí provenham ou se presuma possam provir, todos

                           combatíveis unicamente pela ação mental e moral. No domínio espiritual

                          só lhe cabe agir facultativamente, sem nenhuma ação repressiva, e ainda

                          assim na falta de órgãos espirituais.”

Apoiar Getúlio Vargas na organização final do regime consistia no “principal dever das classes armadas”, ou seja, Reis Carvalho atribuía-lhes o dever de sustentar a ação do Presidente da República na instauração completa da liberdade de expressão.           

                          

Ao regime militar brasileiro de 1964, Garcia Paula qualifica de
“Ditadura fascista que reapareceu como fruto maligno do golpe militar de 1º de março de 1964”. Atente-se à sua adjetivação: ditadura fascista que reapareceu como fruto maligno em 1964, e não ditadura republicana que tivesse reaparecido como fruto benigno naquele ano. O mesmo autor alude também ao “clima de obscurantismo e de terrorismo, forma de subversão contra o povo, implantada em nossa Pátria, sobretudo como efeito do 2º golpe –o de 1968 – e seu famigerado AI-5!” (idem, 61). Não teria julgado nestes termos o regime militar se este exprimisse a ditadura republicana.

                Não entro no mérito de se o movimento de março de 1964 veio a propósito ou a despropósito, se o seu anti-comunismo era louvável ou não. O que me importa caracterizar é a falsidade da filiação entre o Positivismo e a supressão das liberdades verificada durante o regime militar instaurado então.

Mais: comparando tal regime, do Brasil, com as tiranias de Napoleão, de Mussolini, de Hitler e de Salazar, afirma: “de todos os países em que a odiosa ideologia grassou e grassa; aquele em que ele – o fascismo- causou menos desgraças foi aqui.[…] Mas por que foi o fascismo aqui menos brutal? Dentre outras razões […] porque […] o Brasil foi aquele em que, por contrapartida, o Positivismo exerceu e, conquanto diminuída, exerce uma benéfica influência moderadora.” (idem, 63/4; itálicos nossos).

É de lembrar também os inúmeros protestos do Clube Positivista contra os atos liberticidas praticados pelo regime de 1964, protestos muitos deles formulados por Ruyter Demaria Boiteux, positivista ortodoxo e general do Exército brasileiro.

Também positivista ortodoxo, David Carneiro, o moço, travou, em 1990, acesa polêmica no Centro Positivista do Paraná, ao declarar que o movimento de 1964 fora obra da “parcela mais atrasada do exército”, referindo-se à supressão das liberdades públicas que encarecia.

Ouçamos o positivista ortodoxo Vice-almirante Alfredo de Morais Filho: “A partir do golpe de Estado, dado por Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937, que instituiu o Estado Novo, aumentou a tendência a se considerar o positivismo uma doutrina autoritária, ou melhor, despótica.

Depois de outra revolução, a 1964, os sociólogos brasileiros, em suas apreciações, ligaram os dois movimentos à mesma doutrina, o castilhismo.

Estas apreciações, são, porém, falsas, decorrentes do desconhecimento da doutrina política positivista.

O Estado Novo foi uma aplicação do fascismo para resolver, naqueles anos, a complicada situação brasileira, proveniente das várias revoluções e envolvida pela difícil situação internacional.

Quanto à revolução de 1964, também foi inspirada no nazi-fascismo […] nada tendo com a nossa doutrina. Ambas agiram contrariando princípios fundamentais positivistas” (itálicos meus).

Refere-se ainda à “lamentável injustiça dos críticos do positivismo, quando consideram Júlio de Castilhos o avô e Getúlio Vargas, o pai do autoritarismo”.

E pergunta-se: “Como podem os intelectuais brasileiros distorcerem a nossa doutrina, procurando os de esquerda, apresentá-la como fascista e os de direita, como comunista?”. E responde: “O que há, é má-fé e ignorância” (itálicos meus).

                Rubem Descartes de Garcia Paula, David Carneiro, Ruyter Boiteux e Alfredo de Morais Filho, todos quatro positivistas ortodoxos e oficiais de alta patente os dois últimos, à unanimidade reprovaram os atos liberticidas do regime de 1964, em cuja conotação autoritária não se pode, com verdade, enxergar nenhuma origem positivista.

Após 1964, houve um único positivista no governo, o Almirante Ernesto de Mello Batista, ministro da Marinha do governo do Marechal Castelo Branco. Não foi ele nem o autor, nem o mentor dos atos liberticidas verificados após o mandato de Castelo Branco. Encarnou, ao contrário, o único atingido pelo Ato Institucional de número 17 (de 1969), que permitia ao presidente da república transferir, provisoriamente, para a reserva, os oficiais que melindrassem o regime… Houve outro, ministro do Supremo Tribunal Militar: o general Pery Constant Bevilacqua (neto de Benjamin Constant), que, “legalista imprevisível e destemido”, “condenou os inquéritos policial-militares por meio dos quais a nova ordem julgava  os adversários políticos do antigo regime”. Removido, por força do Ato Institucional de número 5, daquele tribunal, onde pugnou pela anistia política – o único a fazê-lo por então  -, “anos depois, tornou-se um dos líderes da campanha pela anistia”. “Graças a ele, o Exército brasileiro pode dizer que um dos seus generais teve a coragem de falar em anistia na época em que a palavra parecia ser um estigma” (Elio Gaspari).

Legalista destemido, advogado da anistia, general: méritos de um positivista.

A  inclinação pela anistia, pelo apaziguamento, pela convivência harmônica das correntes políticas, pela fraternidade, caracterizara já as exortações de Teixeira Mendes, que, face ao célebre levante dos dezoito do forte de Copacabana, em 1922, apelava ao governo em intervenção estampada no Diário do Congresso Nacional: “Inspirando-se, pois, quer na fraternidade universal republicana extreme de qualquer preocupação teológica, quer na caridade católica, os vencedores nas lutas fratricidas, civis ou internacionais, em vez de decretarem o chamado estado de sítio, devem decretar, logo após a vitória, uma fraternal anistia, amparando todas as vítimas, sem distinção das ligações destas com vencidos ou vencedores”.

Na sua exortação já excertada, referindo-se à revolta constitucionalista de S. Paulo, Amaro da Silveira frisava a urgência de se decretar uma anistia ampla a vencidos e vencedores, sem distinção das causas que abraçaram e das classes e posições que ocuparam, em relação aos diversos abalos revolucionários, verificados a partir de 1922”.

Em 7 de setembro de 1933, em novo opúsculo, o mesmo autor reiteraria a sua exortação, apelando aos nossos atuais dirigentes e para o conjunto dos nossos concidadãos, a fim de que sejam respeitados os princípios republicanos e federativos que fizeram a glória de nossa Pátria e restabelecida, enfim, a fraternidade cívica, mediante uma anistia ampla a vencidos e vencedores, envolvidos nas lutas políticas, a partir de 1922, como as únicas soluções capazes de corresponder, neste momento, aos generosos destinos da Pátria brasileira.

Quem pleiteia a anistia não partilha de nenhum autoritarismo. Quem concita ao perdão, invocando a fraternidade entre vencidos e vencedores, adota um credo: o da ditadura republicana positivista. Quem a taxa de autoritária ou de quase totalitária, não sabe o que diz ou mente.

 

Ao contrário do que propala o sr. Miguel Reale, o encerramento do Congresso Nacional pelo então presidente Geisel, com base no Ato Institucional de número 5, no fito de promover a reforma do Poder Judiciário, tampouco se deveu a qualquer inspiração positivista: na ditadura republicana o presidente não baixa pura e simplesmente os diplomas legais, em virtude da sua vontade pessoal e exclusiva; ele produ-los após a oitiva ampla da população, pelo tempo de três meses, durante os quais a opinião pública, fiscal e reguladora do poder executivo, manifesta-se livremente, o que não se verificou no ato em questão.

Ao contrário de perniciosa, como escreveu aquele jurisconsulto, a influência positivista na política brasileira induziu constantemente ao respeito da legalidade, das liberdades e da fraternidade. Funesta foi a sua ausência nos momentos em que ela teria sido desejável e providencial,  para bem inspirar fossem os governantes, fossem os governados. Ouça-se, novamente, Amaro da Silveira: O conjunto das intervenções positivistas, desde a conversão de Miguel Lemos, em fins de 1878, […] demonstram os esforços de Miguel Lemos e todos os que se gruparam em torno dele, para dissipar, no povo brasileiro, a opinião democrática e o sentimento democrático, acerca da LEGITIMIDADE E DA EFICÁCIA do recurso às insurreições; bem como para extinguir, nos que ocupam os postos de governo, a tirânica opinião e o tirânico sentimento, acerca da LEGITIMIDADE E DA EFICÁCIA  dos golpes de Estado e dos atentados do governo contra as liberdades civis.

Se  persistira o influxo positivista na mentalidade e na vida políticas do Brasil, teríamos tido uma história política menos atribulada e mais patriota, mais dedicada ao bem público, mais eficaz na convergência fraterna de todos em prol do país, fora dos golpes de força que várias vezes determinaram o antagonismo entre o poder executivo e a nação.

Os atos autoritários dos regimes de 1937 e de 1964 e de todos os momentos em que, na história pátria, eles verificaram-se, deveram-se à mentalidade própria dos seus autores, da qual o Positivismo achava-se  ausente de todo em todo e com os quais ele é radicalmente incompatível.

A mistificação que atribui o autoritarismo de certos civis e militares pátrios ao Positivismo, corresponde a uma forma de eximí-los da responsabilidade pelos abusos dos regimes de 1937 e de 1964. Elegendo o Positivismo como bode expiatório, inculpando-o como o inspirador da repressão às liberdades civis e políticas (cassações, torturas, continuísmo, censura etc.), conotando-o com o odioso de qualquer totalitarismo, alguns intérpretes intentaram exculpar os mentores daqueles regimes e os autores das suas violências: fizeram obra ideológica no sentido marxista, ou seja, conceberam uma formulação deliberadamente falsa, deturpadora do Positivismo, com que justificassem não o que o Positivismo prega e o que os seus adeptos aplaudem, porém exatamente o inverso disto.

Refiro-me em particular (e a eles já Rubem Descartes aludia) às produções de Antonio Paim e de Ricardo Veléz Rodriguez, anti-positivistas brasileiros, em que se encontra, nas do primeiro, ignorâncias muitas, nas do segundo, verdadeiro fanatismo, nas de ambos, o ânimo de infamar o Positivismo à custa de má-fé e de equívocos grosseiros, em que se distorce a doutrina para achincalhá-la e despertar no leitor desprezo e repulsa por ela, como um ideário alegadamente ultrapassado, justificador da tirania e liberticida. Modelos de desinformação, as obras de ambos desfiguram a doutrina e a sua militância no Brasil, apresentando-as sob a forma de grotescas caricaturas. Calunie, calunie: alguma coisa sempre fica, aconselhava Carlos Marx…

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Explicação doutrinária

Aos 8 de dezembro de 1904, o positivista ortodoxo Raimundo Teixeira Mendes, estampou no “Jornal do Comércio”, do Rio de Janeiro, artigo em que elucidava o significado histórico e doutrinário da ditadura republica , republicado sob forma de opúsculo em 1933, pela Igreja Positivista do Brasil, de que reproduzo as passagens capitais.

“Uma retificação. A ditadura republicana e o positivismo

No discurso proferido pelo Sr. Senador Rui Barbosa […] lê-se o seguinte: […] Houve até quem chegasse a formular em projeto essa aspiração favoneada por certa escola filosófica e radical.[…] …é que aquela ditadura, composta de homens que aborreciam a ditadura […]

Esta referência visa claramente a propaganda do Apostolado Positivista. Por outro lado, o mesmo discurso faz supor que toda ditadura é sinônimo de despotismo ou governo absoluto e arbitrário. Daí poder-se-ia inferir:

1º, que a ditadura republicana aconselhada por Augusto Comte, como o único governo capaz de assegurar a plena liberdade que caracteriza a situação moderna, é um despotismo, ou, pelo menos, pode degenerar em despotismo mais facilmente do que as chamadas monarquias e repúblicas representativas, isto é, mais ou menos parlamentares;

2º, que o Governo atual das repúblicas e monarquias representativas, como o do Brasil, desde 1822, ou melhor, desde 1820, não é ditadura;

3º, que esses governos são os únicos capazes de garantir as liberdades políticas.

[…]

Começaremos observando que a afirmação do Sr. Senador Rui Barbosa, de que a ditadura que fundou a República era composta de homens que aborreciam a ditadura, só é exata dando à palavra ditadura a significação de despotismo. Porque, se entender-se a ditadura com o sentido que Augusto Comte lhe deu, de acordo com sua significação histórica, desde os Romanos até hoje, a afirmação de que se trata deixa de traduzir a realidade.

[…]

Isto posto, cumpre notar que […] as nações modernas estão sob o regime da pura ditadura, desde que se dissolveu a organização católico-feudal, isto é, a partir do XIV século. Porque a ditadura é o governo que resulta exclusivamente do predomínio político da força material, desconhecendo a livre supremacia de uma autoridade espiritual independente.

[…]

Portanto, quer a força material esteja concentrada, real e legalmente, em um homem, como no caso da realeza chamada absoluta, quer se distribua por uma ou várias assembléias, como nas chamadas monarquias e repúblicas representativas, a verdadeira natureza do regime político não muda: é ditadura.

Assim, desde o princípio do XIV século, o que há no Ocidente, -queira ou não confessá-lo os preconceitos democráticos e aristocráticos, – são ditaduras de diversas espécies e denominações, isto é, puros governos materiais, mais ou menos conciliáveis com a liberdade, conforme propendem, ou para o tipo do despotismo do vulgo dos reis e presidentes da república, ou para o tipo do liberalismo anunciado pela ditadura de Cromwell, Frederico II, e Danton, sistematizado por Augusto Comte.

E esta situação é fatal, porque resulta da circunstância do Ocidente haver perdido a unanimidade da fé, desde os fins da Idade Média, e ainda nenhuma outra fé ter adquirido essa unanimidade, que caracterizou a situação ocidental do século V ao XIII. […] Desde que não há fé unânime, não pode haver autoridade espiritual unanimemente reconhecida. Nestas condições, os chefes temporais, que são puros representantes da força material, queiram ou não queiram, não podem senão seguir as suas vontades, que se inspiram fatalmente em uma das infinitas frações em que se decompõe a opinião pública do seu tempo.

Em tais circunstâncias, os meios de convencer e persuadir desaparecem para um número de casos cada vez maior […] Isto é, o governo torna-se fatalmente ditadura.

[…]

Examinando, pois, a constituição dos governos pelo que eles são efetivamente, e não pelo que eles se dizem ser, reconhece-se que o único meio de evitar o despotismo consiste na instituição sistemática da SEPARAÇÃO DOS DOIS PODERES TEMPORAL E ESPIRITUAL, inerentes a toda sociedade. É o que só se consegue, por um lado, tirando ao governo temporal todas as atribuições de decidir em matéria de opiniões e, portanto, de confiança dos cidadãos; e, por outro lado, tirando a todos os cidadãos os meios de imporem as suas opiniões e, portanto, o seu crédito, seja a quem for.

Dessa dupla condição resulta logo a instituição de todas as liberdades públicas, ficando o governo temporal essencialmente reduzido a promover as obras gerais de utilidade pública que não forem espontaneamente realizadas pela iniciativa particular, e à polícia, para impedir as perturbações da ordem material.

Isto posto, é fácil de reconhecer que o suprasumo do regime liberal é hoje justamente o que Augusto Comte denominou ditadura republicana.

[…]

Vê o público que tal ditadura, salvo o nome, é o regime de liberdade e de fraternidade pelo qual todos ansiamos […]”.


[1] Carlos Jeanolle escreveu-o em 1891. Teria excetuado José Stalin, se lhe conhecera o regime, e o de outros tiranos comunistas.

[2] Revista Ocidental, número 24, 1891, tomo III, páginas 181 e  182.

[3] Idem, página 184.

[4] Alfredo Severo dos Santos Pereira, “O conhecimento do homem”, Rio de Janeiro, 1938.

[5] A constituição de 1937 revogou a de 1934.

[6] Por separação de poderes, referia-se aos poderes temporal, à autoridade política, e ao espiritual, à autoridade moral.

[7] É o verbo que emprega.

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