O direito foraleiro no Portugal medievo

O direito foraleiro no Portugal medievo

                               

                                                                                  Arthur Virmond de Lacerda Neto

                                                                                   Setembro de 2005.

 

                        Caracterizou-se a Idade Média pela coexistência de distintas fontes de regras jurídicas: o direito canônico, se regia essencialmente a vida da igreja, aplicava-se nas causas entre clérigos e leigos; o direito romano, na sua parte civilística, prevaleceu a partir do século XII como sistema jurídico pela Europa em geral; o direito das tribos germânicas perdurou após a instalação delas no território outrora romano; o costume existia um pouco por toda parte, como fonte cronológicamente inicial do direito. A par destas fontes, havia também o direito estatutário, o que regia certas cidades em particular e que, em Portugal, chamaram-se  de forais e cujo conjunto designa-se por direito foraleiro.

            Ora, os forais continham regras de quatro tipos, a saber: 1- imunidades conferidas ao concelho, vale dizer, à unidade administrativa correspondente ao município, e garantias e deveres comuns aos vizinhos, vale dizer, aos habitantes da terra; 2- privilégios e encargos dos cavaleiros vilãos, ou seja, dos habitantes da vila capazes de integrar-se às hostes, com cavalos, em caso de guerra;  3- fórmulas judiciais sobre os delitos e as respectivas multas;  4- tributos. Fora disto, ou raramente se verificam nos forais e ou deles acham-se ausentes de todo; dentro disto, as regras eram mais insistentes no regime tributário e nas garantias dos cavaleiros e dos peões, ou seja, dos súditos, matéria em que incluíam-se regras concernentes ao pagamento das multas e do processo judicial, o que originou o preconceito de que as penas, ao tempo, eram sobretudo pecuniárias.

            Ao outorgarem uma carta de foral, visavam os reis, no tocante às garantias individuais, a definir os serviços que ao Estado (à coroa) deveriam prestar os seus súditos e, ao mesmo tempo, conferir-lhes vantagens compatíveis com o desenvolvimento da povoação. Embora, portanto, houvesse regras de direito privado, relativo ao estatuto pessoal, os forais continham matéria essencialmente de direito público. Raramente, algum foral regulava exclusivamente o direito privado ou o criminal, como exceção à regra.

            A principal das garantias concedidas aos concelhos equivalia ao direito de asilo: quem se acolhesse à vila, ao núcleo urbano, ou, mais largamente, a todo o perímetro do concelho, achava-se protegido contra agressões físicas, o que não apenas atraía pessoas às povoações e portanto incrementava a concentração demográfica em certos lugares e a vida civil, como criava-se uma proteção à segurança e à vida, em um tempo em que à injúria e ao dano respondia-se com a vingança pessoal e com o homicídio. Se, por um lado, o asilo beneficiava quem fugia da vingança, por outro, favorecia também os criminosos, como em Bragança, em que o homicida e o adultero gozavam de impunidade, e o servo, de liberdade.  Em vilas como Santarém, a imunidade é relativa: proibia-se a violência no interior da vila, em que a aplicação da justiça cabia ao juízes; nenhum forâneo poderia ingressar na vila após um inimigo seu, salvo mediante tréguas ou para submeterem a solução da sua contenda ao juiz. Nos forais de Marialva e Gouveia, a proibição da represália dentro da vila punia-se com multa em favor do senhor local ou em favor da vítima.

            Por outro lado, permitiam-se certas represálias contra ladrões flagrados em crime: em Proença, o foral permitia o espancamento e o homicídio do ladrão flagrado, com imunidade para o espancador ou homicida. Da mesma forma, em Avila e Salamanca.

            Em Azurara, o foral, atribuído pelo conde D. Henrique, antes, pois, do surgimento de Portugal como país independente, o asilo assegurava-se com penas gravíssimas a quem, na vila, perseguisse o asilado: ao perseguidor, vazavam-se-lhe os olhos ou decepavam-se-lhe as mãos.

            Alguns forais  (como o da Covilhã) contribuiram para o deslocamento das populações, do campo e dos feudos, para as vilas, ao mesmo tempo em que  libertavam o colono da adscrição em que se achavam face à terra, ou seja, em certos casos, o foral permitia desvincular o primeiro em relação à segunda, quando o colono residisse por um ano na vila em que vigorava tal prerrogativa, sem que o seu senhor o compelisse a regressar ao feudo. Esta emancipação referia-se aos escravos sarracenos, desde que se cristianizasssem e  correspondeu, no dizer de Augusto Comte, a um importante fator de modificação social, porque enfraqueceu paulatinamente o sistema feudal e porque fortaleceu a pouco e pouco a economia no que viria a ser, séculos mais tarde, o capitalismo, como, ainda, porque induziu à mudança de mentalidade, em que, dos laços de proteção do forte em favor do fraco, passou-se a um estado de relativo desamparo deste face àquele.

            Por regra, o direito foraleiro concedia vantagens aos habitantes dos municípios, das quais uma correspondia ao coutamento, à proteção que prestavam uns aos outros, por ocasião de ataques dos mouros ou dos vizinhos leoneses. Chamava-se de apelido a convocação à defesa local e correspondia a um dever de todos para com o rei e de cada um perante os demais, cujo descumprimento ocasionava o pagamento de multa, como no caso do Freixo e Penamacor.

            Era faculdade conferida, por exemplo, em Salamanca e Santa Cruz, a cada súdito, a de matar o juiz que se recusasse ao julgamento, quando solicitado a presidi-lo.

            No interesse da boa harmonia entre os vizinhos, proibia-se o hospedar inimigo de alguém da vila ou seu malfeitor, sob pena de multa, como no caso da Guarda. Por outro lado, quem hospedasse autor de homicídio cometido na vila, submetia à multa e quem os matasse a ambos, assassino e hospedeiro, gozava de impunidade. São disposições tendentes a reforçar a coesão interna de cada vila, como ainda a proibição do nativo advogar interesse de forâneo contra outro natural da terra e o dever de expulsão de quem introduzisse discórdia entre os munícipes ou recusasse o arbitramento de um deles ou do senhor da terra, como forma de solução dos seus dissídios.

            Outra regra predominante era a da inviolabilidade da residência: sem o consentimento do morador, ao ingresso na morada, o morador podia reagir matando o invasor. Mesmo os oficiais da justiça que, em perseguição de malfeitor, necessitassem de aceder a uma morada, deveriam primeiramente exigir a entrega do perseguido cuja recusa autorizava-os ao ingresso não consentido. Em Proença, Salvaterra, Idanha e alhures, assegurava-se o recesso doméstico contra a presença indesejada de estranhos: nem o senhor da terra, nem ninguém, podia impor ao morador da casa que hospedasse alguém. A proteção da casa chegava ao ponto em que se se perseguisse assassino e fosse ele morto na sua própria casa, o seu matador sofreria multa, não pela morte, senão pela invasão.

            Havia regras de direito de família, que protegiam a intimidade familiar e a autoridade marital: proibia-se processar mulher casada sem antes dirigir-se ao marido; somente este podia acusar a sua mulher de adultério; a ele incumbia açoitar a sua mulher, quando a pena consistia em varadas.

            Flagrada em adultério, o marido podia abandonar a mulher e tomar para si e para os seus filhos os bens dela (era o caso de Salvaterra); se ele abandonasse-se, fora de adultério, pagava multa e vice-versa

            Em certos concelhos, notadamente no Alentejo, era privilégio outorgado pelos forais, o uso livre de certos bens reservados à coroa e aos senhores, como os fornos de pão, de louça e de olaria, os moinhos, as azenhas.

            Outras prerrogativas asseguravam aos munícipes um mínimo de propriedade: sob execução de dívida, ela se paralisava se o devedor se expunha a perder a totalidade dos seus bens, jamais se penhoravam as véstias de uso corrente nem os bens dos enfermos. Nas partes antigas das cidades, onde a habitação era desagradável, os moradores achavam-se isentos do serviço militar e do serviço público de fortificação; assim na almedina de Coimbra e na alcáçova de Lisboa.

            Na sociedade estamental que era a da Idade Média, tratavam-se diferentemente os cavaleiros e os peões: àqueles concedia-se, em certos forais, isenção de serviço militar, de pagamento de tributos territoriais e foro de nobres nos processos. Em Penacova, ascendia-se da condição peonal para a equestre mediante o pagamento, ao senhor da terra, de um capão, de uma fogaça e de vinho.

            Do ponto de vista da vida militar, apresentavam grande similaridade os forais leoneses e os portugueses, como o de Salamanca face ao das povoações da Beira. O vigia apanhado a dormir, provado o fato com duas testemunhas, sofria a decalvação; quem ia às vias de fato com arma branca diante da aproximação do inimigo, sofria decepação da mão ou pagava para conservá-la, e passava a cativo do ofendido; se este morria, enforcava-se o matador.

            Chamava-se de jugada o tributo aplicado aos agricultores, pago sob forma de quantidades de cereal ou vinho entregue ao senhor da terra, todos os anos, até o Natal.

            Em fins dos 400 e inícios do século seguinte, opera-se uma reforma geral do direito foraleiro: com o andar dos tempos, haviam se editado muitas leis gerais, revogadoras de grande parte do teor dos forais, ao mesmo tempo em que muitos achavam-se anacronizados. Nas cortes de 1472, denuncia-se a presença de falsificações nos textos foraleiros, de entrelinhas e de rasgos nas folhas de pergaminho em que se achavam escritos; para mais, havia interpretações arbitrárias, desatualizadas, motivos porque requerem que el-rei os revogue a todos. Nas cortes de 1481, pedem novamente os povos, que se recolham à corte os forais para serem emendados e atualizados. D. João II acatou as cortes e ordenou a remessa à corte, de todos os forais, e a invalidação dos que não recebesse. Anos depois, em 1497, el-rei D. Manoel determinou a revisão deles, o que se concluiu em 1520, com a edição dos forais novos ou manoelinos, cujo objeto limitava-se às prestações e aos encargos devidos pelos concelhos ao rei ou aos senhores, a matérias de direito civil,  penal e administrativo achando-se reguladas em legislação geral, de aplicação uniforme no reino.

 

 

            BERMANN, Harold. La formación de la tradición jurídica de Occidente. Fondo de Cultura Economica, México, 1996.

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