Contrariemos as palavras ruins consagradas e dicionarizadas.

            Perante a reprovação de peregrinismos, é comum a objeção defensiva de que a palavra em causa já se naturalizou, integrou-se ao léxico da língua portuguesa e até já foi incluída em dicionários. Se se desaprova “fast food”, “drink”, “elite”, ouve-se, muita vez:

Isso já está consagrado pelo uso e dicionarizado.

            Semelhante resposta, consueta, representa bordão de brasileiros; com ela, tenciona-se cooptar a expressão em causa ou exprimir resignação ao uso que dela se faz.

            Ser “já consagrado” um vocábulo (ou uma acepção) apenas atesta-lhe a existência e a circulação; achar-se dicionarizado significa haver sido registrado em algum dos arquivos léxicos que são os dicionários, o que não lhe abona a pureza, não a recomenda como boa, não lhe aprova o uso. “Consagração” e dicionarização compreendem fatos, não valores.

            Fato e registro não contêm valores, não portam juízos acerca da expressão arquivada que, por isto, não se torna, automaticamente, nem boa nem melhor nem recomendável, ao revés da crença de senso comum que toma a dicionarização por abonação: no entendimento prosaico, se está dicionarizada, então é boa, legítima, correta. Não é inerentemente assim.

            Ainda que circulantes e averbadas em vocabulários, há palavras ruins, desnecessárias, poluentes, reprováveis, que adentraram onde não deveriam haver entrado e de onde será bem que asinha se retirem, em prol de alternativas melhores.

            Temos de aceitar, passiva e acriticamente, os peregrinismos porque circulam e até os arquiva algum vocabulário ? Não ! Temos de nos resignar ao que aí está ? Não ! Inês é morta em matéria de língua ? Não ! Morre Inês em idiomas ? Não ! Não se pode contrariar os maus usos em prol dos equivalentes vernaculares dos exotismos ? Sim !

            O duplo estado de coisas (consagrado e dicionarizado) não pode equivaler à resignação, haja vista o modificável uso e desuso das palavras. Estrangeirismos em geral e vernacularismos ruins podem e devem ser substituídos por palavras castiças melhores.

            Se o estrangeirismo é usual, então o idioma está poluído, a porcaria entranhou-se e urge livrarmo-nos dela. Consagração e dicionarização não nos devem induzir à passividade: que nos motivem à reação. Atuemos para contrariar o mal, a más expressões oponhamos boas.

            Causa-me estranheza que o lugar-comum consagrado e dicionarizado sempre seja levantado a bem dos estrangeirismos, como resignação, jamais em jeito de indignação, de insurgência, de incomodidade.

            Invoca-se o bordão consagrado e dicionarizado (ou apenas um de seus termos) em tom resignado, como quem diz “Nada mais temos para fazer, senão aceitar o fato consumado de que os estrangeirismos vieram para ficar”. Não ! Em sociedade e em idioma, há mudanças, há evolvimento (reconhece-o o lugar-comum o de que “a língua é organismo vivo e muda”), pelo que a circulação dos estrangeirismos não é dado imutável, cristalizado de uma vez para sempre. Ao contrário: assim como as mentalidades, os usos e costumes variam ao longo das épocas, seja espontaneamente, seja porque a uns, combateu-se, a outros, proclamou-se, seja porque a informação, a educação, o esclarecimento contribuíram para que as pessoas alterassem sua percepção e, com ela, seu procedimento, a verdade é a de que os maus usos lingüísticos podem ser denunciados e corrigidos.

            Não há palavra consuetudinária que o seja inerentemente em definitivo, não há estrangeirismo trivial que o seja para sempre, não há anglicismo nem galicismo imune a substituição por expressões vernaculares.

            À conformidade passiva do consagrado e dicionarizado oponhamos a diligência da informação e do esclarecimento: elucidemos o público em relação à origem estrangeira de certos vocábulos, ensinemos-lhe seus equivalentes vernaculares, repudiemos explicitamente os estrangeirismos, apliquemos português puro. Afirmar, reiterar, dar o exemplo: eis os três métodos que conduzem a modificações lingüísticas.

            Em tempos a escravidão era inquestionável e, contudo, hoje ninguém ousaria sustentá-la; até três ou quatro lustros o casamento homossexual era inconceptível e, todavia, está institucionalizado em inúmeros países; em décadas recentes, o papel feminino por excelência e exclusivo era o de dona de casa, mulher de seu marido e mãe de sua prole: os três afiguravam-se eternos e, no entanto, obsolesceram.

            Instituições, costumes, etos, aparentemente duradouros e até intocáveis duram enquanto duram: o mesmo passa-se com o linguajar recusável.

            Ao estrangeirismos consagrados e dicionarizados oponhamos crítica, informação, esclarecimento, alternativas, léxico vernacular, o que para alguns afigura-se quixotesco, isto é, ilusório e inalcançável: eis símbolo da mentalidade resignada. Décadas atrás parecia quixotesco bater-se pelo fim da homofobia e pelos direitos femininos, bem assim já o foi pugnar-se pelo voto das mulheres e pelo divórcio; a despeito disso, o quixotesco de outrora converteu-se no instituído posteriormente, graças à afirmação insistente de novos ideais. Que o purismo seja-nos novo ideal.

            Exemplos de estrangeirismos que substituir:

            1) “mouse”: já está consagrado, mas “rato”, ui !, que horror, lembra animal repelente, vai na contramão e mais isto e aquilo. Porém rato e ratón é como nomeiam a coisa, em inglês, e em Portugal, Espanha, Argentina, Chile, Uruguai, México etc.

            2) “home office” é expressão repetida, mas trabalho em casa, trabalho doméstico, ninguém os usa e são estranhos.

            3) bicicleta é palavra consensual, mas diciclo, ninguém sabe que raios é isso, todos estranharão, causará ruído, é pedante etc.

            4) pedibola ou ludopédio são vernacularismos substitutos de futebol: mas português é difícil, não adianta remar contra a maré, a maioria faz a língua etc.

            Objeções que tais exprimem resistência ou passividade psicológicas de mentes rotineiras, sem anseio pelos vernacularismos, entusiasmo por eles, gana de que prevaleçam.

            Que não nos iludam as aparências: nem todos os brasileiros aprovam os estrangeirismos; longe disso: se muitos anuem-lhes (e nos anos 1990 e 2000, no Brasil, eles grassaram extensamente no comércio e não apenas), muitos outros já os repelem e escolhem falar e estar em português despoluído. Afinal, se podemos substituir os estrangeirismos por formas próprias, por que insistir naqueles e desdenhar destas ?

            Qualquer palavra, uma vez que se use, ingressa no espírito do leitor ou do ouvinte; a imitação introduz algumas em voga, as insólitas deixam de sê-lo pela freqüência com são empregadas, as que homem ignora passam a ser as que ele conhece uma vez que com elas tope.

            Em ambiente em que se valorize o saber e se cultive o idioma, incita-se ao acrescentamento do patrimônio léxico e vernacular da pessoa; onde o desinteresse existe a par de doutrinas menoscabadoras da gramática e da herança tradicional da língua portuguesa, grassam os estrangeirismos e os vícios, avilta-se a qualidade com que se fala e escreve. Vivemos, no Brasil coevo, o segundo quadro: está em nós promovermos o primeiro.

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