Pronomes neutros.

PRONOME NEUTRO.

14.10.2020.

                                                           Arthur Virmond de Lacerda Neto.

            Qualquer lingüista e qualquer estudante de Letras minimamente informado sabe que o masculino, em português, contém o neutro, de proveniência do latim. Dizer “todos” não é apenas “os” e sim “os” e “as”; o masculino inclui masculino e feminino, enquanto o feminino contém somente o feminino. O masculino é masculino mas também é neutro: essa é a realidade do idioma, é como ele existe, é sua condição morfológica.
            Os propugnadores do neutro entende não ser assim ou que, a despeito de sê-lo, o masculino é apenas masculino e não masculino e feminino; eles atêm-se à aparência, à forma, à grafia das palavras e não a seu valor no idioma, a seu conteúdo.
            As formas todxs, tod@s são impronunciáveis e introduzem dificuldade no aprendizado das crianças. Alguns, sincera ou hipocritamente, invoca as crianças deste país como álibi para fundamentar os preconceitos dos adultos; nesse caso, contudo, é real que tais grafias introduzem mais uma dificuldade desnecessária. O sinal de arroba é interessante, pois contém “a” e “o” e assim é mais expressivo que o “x”; fora essa nota, é igualmente dispensável.

            A letra “e” como substituta das vogais “a” e “o” somente complica dispensavelmente o idioma (neles, nelas, niles, aquele, aquela, aquile, todes, amigues, brasileires). Aliás, linguagem “neutra” é feminista: logo, linguagem “neutre”, com pronomes “neutres”. Mas “pronome”, malgrado termine com “e”, é masculino; como, em “neutre”, diríamos “os pronomes” ? Talvez “es pronomis”, o que implicaria diferença de dicção no sul do país, porém não em vastas regiões dele em que já se pronuncia assim a própria palavra “pronomes”. Então, como seria ?

            Como diríamos “os números”: “es numeres” ? As pessoas: “es pessoes” ? “Dentista” termina com “a” e é masculina. Então: “dentiste” ? Mas “elefante” termina com “e” e é masculina. Então ?
            O gênero dos substantivos não é determinado pela letra terminativa da palavra, sejam substantivos ou adjetivos (elefantE, parentE, motoristA, parlamentaR, representantE, cólerA, açãO, persuasãO, intençãO), sejam verbos substantivados (o fazer, o entender, os dizeres, os falares) senão pelo artigo que se lhe aplica: a alface, a ênfase, o refrigerante, o problema, os azuis, os verdes, as intenções, a verdade, o motorista, o neutro.
            A introdução do neutro satisfará a anseios igualitários de alguns, certamente os extremistas, porém topará com tantas dificuldades práticas, suscitará tantas dúvidas, ensejará tantos erros (aliás, “tantes erres”, que se não deve confundir com o plural da letra erre) de prosódia, que dificilmente logrará aceitação e aplicação, exceto pela minoria militante. Até essa, volvida sua empolgação justiceira, depressa fartar-se-á de enfrentar dúvidas em cada passo de sua fala e de sua escrita, e de cometer deslizes: os empeços práticos prevalecerão e, com eles, o desuso do que não passa de afetação e até de pedantismo. É lugar-comum dizer-se ser difícil o vernáculo. Mais difícil será com os neutros, e confuso. O brasileiro já mal sabe empregar preposições, pronomes retos, segundas pessoas: saberá acertar, meticulosamente, o uso do português reformado neutramente ? Não.

            Não está em causa a faculdade de servir-se do neutro e sim o critério, a justificação, a motivação de fazê-lo, que encantam certa minoria.

            Alegar-se haver, em qualquer domínio, problemas mais prementes do que o que se invoque pode ser verdadeiro na hierarquia de importância de uns e outros, como porventura constitui sofisma em que se desvaloriza o problema em causa por haver outro, mais momentoso. Mais importantes ou menos, todos têm valor. Solucionar antes uns do que outros corresponde a decisão política; invocar algum, mais relevante, em face do de que se ventila (como menos relevante) pode representar estratagema para evitar o segundo: sempre que se cogitar de algum, seus opositores objetarão:

Há problemas mais importantes do que isso, como por exemplo […]; tratemos do que mais nos preocupa e deixemos as nugas para depois.

            Afirmar haver problemas educacionais bem mais imperiosos do que reformar os pronomes não é sofisma com que elidir a questão do neutro: é realidade.
            É recorrente o malogro dos estudantes brasileiros nos exames Pisa há mais de 15 anos, os efeitos desastrosos da aprovação automática, o despreparo da maioria dos brasileiros em vernáculo, sua pobreza léxica, sua ignorância de seus recursos, a vulgaridade da forma coloquial, a circulação de vícios vários de linguagem, a mentalidade mediocrizante de que o português é difícil, de que a gramática é excludente e elitista, de que é essencial comunicar-se, em vez de fazê-lo com qualidade. Nossos jovens doutores com doutorado redigem mal e os comunicadores televisivos exprimem-se mal: nem uns nem outros representam a forma culta do idioma e ambos são incapazes de dar o bom exemplo ao público.
            São males antigos de décadas, por prementemente remediar. Na escala de importância, devem preponderar sobre a introdução do neutro. Que se ensine o amor ao vernáculo, a freqüentar-lhe os bons autores, a usar-lhe o vocabulário e os recursos com abundância e precisão, que se erradiquem vícios, que se tome o idioma como valor de civilização e fator de identidade nacional, que se inverta o estado geral da pobreza da coloquialidade. Nesse quadro, escasso interesse resta para o neutro.

            O despreparo em idioma e a adoção do neutro independem um do outro. Contudo, enquanto não se retomar o ensino a sério do vernáculo e sua valorização, o resultado será o da perpetuação do despreparo, já agora com a complicação do neutro: será mais do mesmo, piorado.

            Parte relevante disto de neutro deriva do critério da sociolingüística de que o idioma e a gramática oprimem. De tanto falar-se em opressão (histórica, econômica, policial, estatal, professoral, familiar, social), por o tema da opressão circular no ambiente, por ser idéia familiar a muitos brasileiros, tudo que com ela se conote torna-se odioso, ainda que dela se ventile apenas retoricamente e que aos anti-opressores faleça senso de proporções e acuidade.

            Alegadamente, o passado colonial foi opressor, dadas estátuas são opressoras; certos pronomes de tratamento, também; elevador de serviço, idem; algum léxico, por igual, e assim sucessivamente. Quase tudo sujeita-se a ser tido por opressor, conforme à luz por que seja interpretado (desde que estabeleça algum tipo de desigualdade entre pessoas) e a ser objeto de desopressão.

            Nem tudo é opressão, nem tudo quanto passa por sê-lo o é, a começar pela gramática e pelo idioma, instrumentos de interação, de aproximação, de capacitação, de inclusão do pobre, do preto, da mulher, do homossexual, da família tradicional e das famílias heterodoxas no patrimônio cultural da Humanidade. Ademais, há vogas mentais, idéias que se entranham e que logo se esquecem: é o caso.
            A opressão é censurável e merece ser combatida. Refiro-me ao que realmente oprime, não ao que somente o faz na fantasia dos extremistas. É semelhante à grita, já obsoleta, de que “se houver casamento gay, todo mundo vai virar veado” (do que depreendo que sê-lo é mais atraente do que ser hetero), “a humanidade acabará”, “é atentado contra a família”; dantes, os católicos inflamavam-se pela vitaliceidade do divórcio, que acabou por prevalecer: em dadas quadras há idéias predominantes, a que as pessoas aderem, e que passam. Artificiais ou desmesuradas, são efêmeras: afigura-se-me ser o caso do neutro, tema do momento, que depressa passará. Alguns usam-no sinceramente, e creem colaborar para justiçar o idioma e as mulheres; os oportunistas, para posturarem de bons moços e lograrem aprovação de seu grupelho juvenil, acadêmico ou ativista. E a grande maioria, condescenderá com aprender o neutro e aplicá-lo a cada passo ? Não nos basta “sabermos” que “português é difícil” ? Querem dificultá-lo ainda mais ?
            Atente na qualidade rasa com que o brasileiro médio fala (notadamente os jovens), a carência de escorreição e desenvoltura de comentadores televisivos, a propagação de cacoetes e vícios de linguagem (o desprezível “a gente”, “aí”, “[es]tá?”), vulgaridades (“[es]tá ligado ?”), a quase total ausência de falantes que sirvam de paradigma de excelência em sua elocução. O brasileiro médio sequer sabe o que é saber melhor seu idioma e falá-lo com beleza, destreza e rigor,  mistificado pelas falácias da sociolingüística de que fala bem sua variante, de que o essencial é comunicar-se, de que as regras gramaticais veiculam opressão. Compare-se como falava o brasileiro médio de 40 e mais anos atrás com o coevo, a exuberância léxica de gazetas de outrora, com a homóloga pobreza atual; atente em que a infiltração de americanismos denota ignorância do opulentíssimo vocabulário vernacular. Regrediu-se, desaprendeu-se. Ensina-se a desprezar a norma gramatical, proclama-se a recusa da herança lusitana do idioma (vale dizer, sua própria identidade), desdenha-se da forma culta. São entendimentos que convergem para o rebaixamento da qualidade do uso do idioma, em que agora se tenciona introduzir complicação excrescente, não como fato da língua, senão como militância ideológica.
            Há premências mais instantes, deveres maiores que cumprir a bem dos brasileiros, dentre eles o de prepará-lo o melhor possível em língua portuguesa, em vez de esperdiçarmos tempo e esforços com o neutro.

“Professora de Português dando aula…
Vamos conversar com a tia. Não sou homofóbica, transfóbica, gordofóbica. Eu sou professora de português.
Eu estava explicando um conceito de português e fui chamada de desrespeitosa por isso (ué).
Eu estava explicando por que não faz diferença nenhuma mudar a vogal temática de substantivos e adjetivos pra ser “neutre”.
Em português, a vogal temática na maioria das vezes não define gênero. Gênero é definido pelo artigo que acompanha a palavra. Vou mostrar pra vocês:
O motorista. Termina em A e não é feminino.
O poeta. Termina em A e não é feminino.
A ação, depressão, impressão, ficção. Com apenas uma exceção, as palavras que terminam em ção são femininas, embora terminem com O.
Boa parte dos adjetivos da língua portuguesa podem ser tanto masculinos quanto femininos, independentemente da letra final: feliz, triste, alerta, inteligente, emocionante, livre, doente, especial, agradável, etc.
Terminar uma palavra com E não faz com que ela seja neutra.
A alface. Termina em E e é feminino.
O elefante. Termina em E e é masculino.
Como o gênero em português é determinado muito mais pelos artigos do que pelas vogais temáticas, se vocês querem uma língua neutra, precisam criar um artigo neutro, não encher um texto de X, @ e E.
E mesmo que fosse o caso, o português não aceita gênero neutro. Vocês teriam que mudar um idioma inteiro pra combater o “preconceito”.
Meu conselho é: em vez de insistir tanto na coisa do gênero, entendam de uma vez por todas que gênero não existe, é uma coisa socialmente construída. O que existe é sexo.
Entendam, em segundo lugar, que gênero linguístico, gênero literário, gênero musical, são coisas totalmente diferentes de “gênero”. Não faz absolutamente diferença nenhuma mudar gêneros de palavras. Isso não torna o mundo mais acolhedor.
E entendam em terceiro lugar que vocês podiam tirar o dedo da tela e parar de falar abobrinha, e se engajar em algo que realmente fizesse a diferença em vez de ficar arrumando pano pra manga pra discutir coisas sem sentido.
Tenham atitude! (Palavra que termina em E e é feminina). E parem de ficar militando no sofá!(palavra que termina em A e é masculina)
Vivian Mansano.”

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