“O livro Preconceito Lingüístico”
Arthur Virmond de Lacerda Neto arthurlacerda@onda.com.br
Este texto é a parte final da minha revisão, crítica e consciente, do livro de M. Bagno, cuja íntegra acha-se neste sítio, mais abaixo.
Por que o livro “Preconceito Lingüístico”, de Marcos Bagno atingiu milhares de exemplares publicados e corresponde a um dos livros mais lidos no Brasil, atualmente ?
Por causa, em primeiro lugar, da simplicidade que o perpassa, da primeira à derradeira páginas. Cuida-se de livro concebido em linguagem prosaica e simplista (sem ser reles), portanto legível pelas pessoas em geral, facilidade à qual soma-se a da simplicidade com que os seus argumentos desenrolam-se, a prescindir de maiores concentrações para a sua compreensão. É um livro fácil.
Facilitadores, trata-se contudo de elementos secundários e mesmo sem os quais o seu êxito verificar-se-ia, pois o fator decisivo consiste em que o seu discurso é cativante ao leitor, não esteticamente (porquanto o seu estilo acha-se longe de representar um exemplo de beleza), e sim enquanto formaliza idéias que por alguma forma justificam o distanciamento hoje tão pronunciado entre a fala coloquial e a gramática. Milhares de pessoas pelo Brasil afora, falando mal, sabendo mal o idioma e não se esforçando em sentido inverso, encontraram neste opúsculo uma teorização que lhes consagra o desempenho lingüístico, que o autoriza, que o enaltece, que o eleva a padrão e que avilta aquilo e aqueles que se lhe opõe (a gramática e os seus campeões).
É disquisição que, do começo ao fim, afaga a vaidade e o ego do leitor, das milhares de pessoas cujo “saber” idiomático ela reputa positivo e que os livra do peso na consciência de dominarem fracamente o seu próprio idioma e do sentimento de que carecem esforçarem-se por o dominarem de fato.
É livro populista, no sentido mais rasteiro do termo, que diz às massas o que lhes embala o coração, seduzindo-as pela emoção que lhes desperta ao convencê-las de que certas acham-se elas e errado aquilo que custa aplicação aprender. É populista porque persuade as pessoas de não é preciso aprender a gramática pois esta arcaizou-se e que nelas reside a verdade idiomática. É populista porque infunde-lhes um sentimento de superioridade coletiva diante de uma construção multisecular, que transforma cada desinstruído, cada subletrado, em alguém que se eleva, com a sua incultura e por causa dela, sobre o saber acumulado por gerações a fio. É populista porque, tacitamente embora, taxa de preconceituoso o imperativo de que para saber-se, é preciso aprender-se, o que certamente é muito mais dificil do que satisfazer-se com o que se adquiriu por mera imitação do meio social. É populista porque pretende externar um grito de libertação dos milhões de culturalmente excluídos, apresentando-se como o denunciador dos alegados autoritarismo, intolerância e repressão de que o livro os concebe como vítimas.
Tanto é populista e atua cativando pela simpatia ao invés de persuadir pelo rigor dos argumentos que, a despeito da sua miséria intelectual, obteve cinqüenta mil leitores, com cujos reflexão e discernimento não contou nem deles necessitava. Daí a freqüência com que generaliza falsamente, com que recorre a simplismos, a insensatezes, a sofismas, com que argumenta aquém de um certo grau de racionalidade.
O poder de emocionar superou o de raciocinar, mesmo substituiu-o.
O seu êxito deve-se também a que ele compagina-se com a mentalidade instalada no Brasil hoje: pauta-se o “Preconceito lingüístico” por uma militância política de combate aos preconceitos, à exclusão social, ao elitismo, à opressão de classes, conceitos que um perseverante esforço de inculcamento converteu em senso comum do brasileiro médio e cujos méritos não vem a propósito analisar.
Tal esforço foi e é inspiradoem Antonio Gramsci, para quem a atividade intelectual não deve servir à busca do Saber, porém a fins políticos. Há décadas no Brasil verifica-se uma divulgação reiterada daquelas premissas, por meio dos mais variados canais, a ponto de haver-se constituído um padrão de pensamento delas derivado que tornou as pessoas altamente receptivas a qualquer discurso que, direta ou indiretamente, as observe.
Ora, o opúsculo em foco atua sobre este senso comum. Ele convence a quem já se encontra predisposto a deixar-se convencer, ao invés de persuadir o leitor pela verdade dos seus argumentos, origem da péssima qualidade destes. Extremamente circunstancial, sua aceitação decorre da mentalidade da qual depende e fora da qual seria analisado criticamente, com o uso da inteligência racional, ao invés de ser aceito, como o tem sido, à guisa de expressão de verdades consensuais. É, pois, um livro de época, que transmite verdades transitórias.
A sua aceitação por amplas camadas de leitores não lhe atesta a veracidade intrínseca, porém apenas revela o estado espiritual do homem médio contemporâneo no Brasil, estado cuja alteração, modificando-lhe os condicionalismos intelectuais, provocará uma reavaliação das suas doutrinas, quero dizer, um seu exame fora dos consensos vigentes. Será quando os seus leitores abismar-se-ão com a credulidade dos que conquistou e desmascararão o que, ao fim e ao cabo, representa um caso de embuste intelectual.
O resultado de tudo isto só pode ser o do espetáculo atual da decomposição do idioma, em que o brasileiro sabe-o mal porque faltam-lhe escolarização e leitura, e porque quando lê, lê “Preconceito lingüístico” e lhe perfilha as doutrinas.
Sentindo-se a encarnação da gramática “verdadeira” , “do português do Brasil”, crendo-se livre de preconceitos, cada autor escreverá como lhe aprouver, sem mais critério que o da imitação do que assimilou do ambiente. Em breve originar-se-ão tantas gramáticas quantos forem os escrevinhadores e portanto literaturas compreensíveis apenas nos limites de tempo e lugar em que vigorava a ordem gramatical do autor. Haverá guetos lingüísticos, que excluirão ainda mais os excluídos: já afastados da norma culta, tornar-se-ão limitados na compreensão do que escrever-se fora do seu gueto, sofrendo assim um novo e mais odioso prejuízo.
Além disto, agravar-se-á a má qualidade da redaçãoem geral. Produções acadêmicas, petições judiciais, mensagens eletrônicas, anúncios comerciais, traduções de livros, discursos oficiais, matérias jornalísticas, em tudo perder-se-á, mais do já se perdeu, a noção da beleza e da elegância da forma, o rigor da concepção, a certeza da expressão e da compreensão. Prevalecerão a fealdade, a inépcia, a incapacidade.
Desaprendendo o brasileiro o que lhe pertence, o vernáculo, aberto um vazio na sua capacidade comunicativa, assimilará as formas do inglês, graças a cuja aquisição, gramaticalmente correta, prevalecem já na sua sintaxe e no seu vocabulário a ponto de, vezes muitas, falarmos inglês em português.
Dentre as várias preocupações expressas por “Preconceito lingüístico”, não se encontra a mais mínima relativa à instrução popular, perante a qual, ao contrário, prevalece um silêncio tenebroso de indiferença consumada.
Nenhuma palavra pela educação, por mais e melhores escolas, pela dignificação do magistério, por melhores salários para o professorado; nenhuma indignação frente ao analfabetismo no Brasil, nenhuma inquietação face ao mísero índice de leitura dos brasileiros, nenhum apelo aos governantes, nenhuma postulação em favor da intensificação das políticas educacionais, o que seria de todo em todo pertinente em um livro que se confessa político (página 9).
Longe de fortuita, semelhante apatia é necessária ao êxito do livro, que se serve da escassa qualificação intelectual dos brasileiros e mesmo dela depende: em primeiro lugar, pois quanto menos culto, esclarecido e capaz de pensamento autônomo, que o apetreche para discernir entre a verdade e a mentira, entre o conhecimento e a sua instrumentalização política, tanto menos os leitores de “Preconceito lingüístico” serão capazes de lhe desmascararem os sofismas e a miséria intelectual.
Em segundo lugar, quanto maior a incultura, a desinstrução, a falta de escolas, o desdém pela leitura, a desmotivação dos professores, a indisciplina escolar, a repetência, o trabalho infantil, tanto mais escassos serão a compreensão e a interiorização da norma culta; tanto maior será o distanciamento entre ela e as “variedades” coloquiais, tanto mais diversificadas serão estas e, de conseqüência, tanto mais abundantes as supostas vítimas dos preconceitos, da alegada exclusão, da proclamada “aplicação autoritária, intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito lingüístico”(página 10, tanto mais haverá a quem persuadam as doutrinas de “Preconceito lingüístico” e com tanto mais convicção quanto mais intensa a natureza emocional e panfletária com que elas se propaguem.
Convém ao “Preconceito lingüístico” um povo tão fracamente instruído quão possível, para assegurar-se um público leitor proporcionalmente abundante na quantidade e crédulo na qualidade do seu convencimento. Por isto, muito mais do que demagógica e populista, esta é uma obra odiosa, que engana aos incapazes de perceberem que são enganados e que os mantém no engano para mais e melhor os enganar.
Publiquei a íntegra do ensaio de que o texto acima é o final, em livro, “Bourdieu e Preconceito Lingüístico”, adquirível em www.estantevirtual.com.
Tem razão quanto ao “vai atua”, que corrigi. Quanto ao “produções acadêmicas”, o texto ficou desconfigurado ao introduzí-lo no Word Press.