O homem amistoso

O homem amistoso                    

11 de março de 2004                                                  

 “Em todos os tempos considerou-se

a amizade como um dos primeiros bens da vida”(marquesa de Lambert, Tratado da amizade).                                                                                   

                         O homem amistoso tinha amigos, pessoas  que encontrou mercê dos acasos da vida  e a quem uniu-se por laços de apreço ou de afetividade, ou de ambos. Tais acasos verificaram-se na sua vida escolar sobretudo, pelo que formou amizades em moço, quando, no colégio e, ao depois, na universidade, o convívio se estabelece com pessoas inúmeras e abundam as oportunidades de, dentre elas, encontrar indivíduos com quem sentem-se afinidades.

                         Dentro desta abundância de pessoas e de oportunidades,  aproveitou tantas quantas se lhe ofereceram: foi sempre aberto aos relacionamentos que, principiando, em regra, como simples conhecimentos, convertiam-se em amizades quando, no seu íntimo, o futuro amigo merecia-lhe um sentimento de simpatia que evoluía em apreço e mesmo admiração, caso lhe reconhecesse qualidades, ou em um carinho sincero; raramente associavam-se estas duas situações. Formou, assim, amigos a quem mais queria do que lhes enaltecia o  conteúdo humano; outros, por quem o seu apego era menos pronunciado, embora mais lhes prezasse o caráter;  finalmente, em escassos,  reconhecia predicados humanos que valorizava, ao mesmo tempo em que lhes votava uma afeição redobrada.

                         Em qualquer destes casos, as suas amizades representaram-lhe relacionamentos profundamente sinceros na confiança, na afeição, no respeito, na admiração e na entrega: foram sempre desinteressados e gratuitos, livres de qualquer espécie de segundas intenções.

             Correspondendo-lhe a verdades interiores fundamente sentidas, despertaram-lhe as amizades o interesse, todo intelectual, porém de fundo afetivo, pela amizade como objeto de meditação: freqüentava os autores antigos que sobre ela haviam dissertado, a exemplo de Aristóteles, Cícero, Sêneca, bem assim os modernos, como a marquesa de Lambert, Montaigne, Maurois, Alberoni, Castillo.

                         Uma das suas preocupações meditativas radicou-se em definir os traços fundamentais da amizade, que encontrou nesta fórmula: a amizade são afinidades recíprocas, é a reciprocidade na sinceridade, no desinteresse, no dar-se, na inclinação de um pelo outro. Ela não corresponde necessariamente ao companheirismo, que eventualmente a enseja ou acompanha-a como seu resultado, sem a definir: ela consiste muito menos no que os amigos fazem em mútua companhia, do que no que sentem um pelo outro e no que sentem um no outro. Ela é mais subjetiva do que objetiva.

            Disto adquiriu consciência mais plena à medida em que foi entrando em anos, e, já homem maduro, olhava para o seu passado e via amigos naqueles a quem, algum dia, confiara alguma parcela da sua intimidade, ainda que de nenhum deles houvesse sido companheiro. Descobriu que as amizades supõe  abertura de intimidade a intimidade, um dizer de si próprio e um compreender de parte a parte, e nesta descoberta apercebeu-se de quanta verdade se continha na observação de Ortega, de que as amizades fazem-se de longas (e talvez de menos longas) conversações em que os amigos falam de si próprios, revelando-se mutuamente porções das suas intimidades, vale dizer, confidenciando.  Aos seus amigos, em quem confiava, confiava-se: abria-se-lhes, revelando-lhes os seus sentimentos e os seus pensamentos mais reservados, aqueles que normalmente somente se partilha com escassas pessoas, quero dizer, com os amigos íntimos, e que se oculta dos terceiros em geral. 

                        Ao descobrir a amizade como prática da confidência, compreendeu porque Augusto Comte, na maturidade, à volta dos seus  50 anos, preferia cada vez mais, como declarou, as amizades que lhe permitissem uma “intimidade completa” (não fosse ninguém, à maneira de pateta, atribuir a tal expressão qualquer sentido homossexual…). Ele se apercebera do que é a amizade e queria amigos em que ela se exercesse no que  contém de mais fundamental; daí que recebesse pessoas em longas conversações. O seu amigo principal foi P. Laffitte.

                         Muitas das amizades do homem amistoso significavam-lhe altamente aos sentimentos: a certos dos seus amigos afeiçoava-se entranhadamente e neles pensava sempre  carinhosamente, mesmo com uma ternura que o comovia e que representava a nota distintiva delas: tais amizades eram-lhe constituídas predominantemente de sentimentos e com um deles principiavam, com o de simpatia que, abrolhando-lhe com fácil espontaneidade, logo se transformava em carinho amistoso, que, vezes muitas, reputou a melhor parte de si próprio.

                        “Trato-o afetuosamente e gosto de tratá-lo assim”, anotou mais de vez acerca do amigo que, em dada altura da sua existência, personificou-lhe o mais moço na idade, o mais recente na antigüidade e o que lhe sorria ao ele sorrir-lhe: a candura deste mútuo sorrir, tão sincero e espontâneo de parte a parte, significava ao homem amistoso, no sorriso do amigo, receptividade ao carinho que lhe votava e que lhe demonstrava, e esta receptividade era o que mais lhe gratificava naquela amizade, toda pura, em que ambos avinham-se com a espontaneidade própria de quem sentia-se à vontade em presença um do outro e em que o homem amistoso evoluíra da simpatia à ternura, da confiança à confidência e do prazer da companhia do amigo a sentir falta dele, de quem amargava saudades por antecipação, ao futurar o momento em que o destino do amigo lhes coarctasse o convívio, que para o homem amistoso foi dos mais felizes. “Obrigado pela amizade”, exprimiu-lhe em dedicatória em um exemplar de “Gil Blas de Santillana”.

             Ao inverso de muitos indivíduos a quem a introversão ou o preconceito  conduzia a ocultar o seu sentir, ele exprimia o seu apego pelos seus amigos: a sua afetividade transbordava,  com freqüência por meio dos  afagos das suas mãos e quando porventura as circunstâncias impediam-no de o fazer,  acometia-o uma angústia que o torturava. Em cada afago ia-lhe uma revelação  dos seus sentimentos, pelo que estes gestos encarnavam-lhe pequenas confissões de intimidade: são exterioridades que indicam interioridades, como, demais, todo o corpo, em movimento e mesmo estático.

             Abraçou os seus amigos muitíssimas vezes, com uma espontaneidade e uma facilidade que o surpreendiam a si próprio. Ao abraçá-los, tocava-os duplamente: corpo contra corpo e coração contra coração. “Abraço? Afeição!” escreveu  privadamente em inúmeras oportunidades como, aliás, registrou em pormenor tudo quanto sentiu pelos seus amigos e todos os gestos físicos de carinho que lhes praticou: era afetivamente desinibido,  ao menos com eles e desta sua afetividade conservou memória escrita.

                        Nisto de abraços, escandalizou-se em moço quando um dos seus amigos objetou-lhe que “homem não abraça homem”: lamentou que neste aforisma  a ternura se atrofiasse às custas de supor-se a carnalidade onde ela não intervém, preconceito cuja nocividade traduz-se em negar o que os seres humanos possuem de especificamente humano, a saber, os sentimentos de uns pelos outros.

             Suspeitava de que a sua facilidade em demonstrar o seu apego houvesse despertado em alguns dos seus amigos sentimentos recíprocos, ou ao menos encorajou-os a os externarem: também eles estreitaram-no, vezes muitas, e todas o comoviam porque em todas eles tocavam-lhe o coração. Sentia-se querido e acarinhado, motivo porque não se sentiu solitário enquanto os teve próximos de si.

                        Nem sempre fora apegado aos seus amigos: foi uma amizade que, nos primórdios da sua juventude, despertou-lhe os sentimentos por eles, sentimentos que, até ali nulos, a partir de então desenvolveram-se, entranharam-se-lhe e tornaram-no, por vários deles, capaz de vivas ternuras. Amistoso, era geralmente amigo afetuoso. Àquela amizade juvenil ficou a dever o que se lhe tornou um verdadeiro traço de caráter, demonstração da capacidade educadora das amizades importantes.

                         Preferia os amigos extrovertidos e conversadores aos introvertidos e  silenciosos: são os que propiciam amizades mais ricas e interessantes, dos reservados pouco  havendo que se esperar, enquanto os expansivos, com o seu feitio, favorecem relacionamentos em que o componente pessoal é tudo.

                        Apreciava  redigir cartas de amizade: uma lembrança comovente, um fato assinalável, uma circunstância do relacionamento, moveram-no em algumas oportunidades a exprimir, por escrito, o quanto lhe significava a amizade que o unia ao destinatário. Colecionava cópias de tais missivas, que relia com prazer e às quais raríssimamente houve resposta:  era mais sensível do que os seus amigos às respectivas amizades, comprazia-se em escrever-lhes e sabia externar-lhes o que sentia por eles, traços que os caracterizavam  em grau muitíssimo menor do que a ele. Em uma destas cartas, referia-se a outra, anterior de largos catorze anos: “Em 1990 mandei-lhe uma breve carta, após uma longuíssima conversa em minha casa, em que lhe dizia, na arta, o quanto estimava a nossa amizade: no fundo do meu coração e na melhor parte da minha saudade, sempre lá os tive, a você e a ela, como dois tesouros da minha intimidade, que sempre esteve cheia de carinho enternecido e de imensa estima, que é o que sentia e sinto por você”. O espírito agrada, porém é o coração que une, dizia a marquesa de Lambert.

                         Algumas das suas amizades findaram sem motivos identificáveis: após anos de relacionamento harmônico,  certos dos seus amigos deixaram de o ser. Porque ele, da juventude à madureza, se conservasse inalteravelmente o mesmo (com a diferença da experiência que os anos propiciam), concluiu que aquelas pessoas, com o fluir do tempo, alteraram-se  no seu feitio,  o que, por sua vez, determinou o desfazer-se das afinidades que até certa altura haviam-nos aproximado. “Toda sensibilidade perece”, ponderava a marquesa de Lambert, observação em que o assustava o advérbio, do qual desejava excetuar-se.

                        Não lamentava que assim fosse; lamentava que a vida que aproxima as pessoas, fosse a mesma que as afasta e que as circunstâncias das vidas sua e das dos seus amigos os houvessem distanciado no espaço e no tempo, conquanto não na lembrança que deles guardava como um pequeno tesouro de emoção e de alegria que acarinhava na melhor parte da sua memória e das suas memórias.

                         Lamentava também que certas circunstâncias houvessem-lhe desfavorecido o contato com certas individualidades em quem pressentia virtualmente um amigo: eram-lhe oportunidades perdidas e amizades possíveis que abortavam. “Teríamos sido bons amigos” observava de si para consigo.

                        Jovem, teve amigos nos mais velhos e nos velhos que freqüentou (embora não lhe tivessem sido amizades íntimas); homem feito, teve amigos moços (como teve-os naqueles cujas idades aproximavam-se da sua), a provar que as diferenças de idade  irrelevam se se souber transcender delas em favor da mútua inclinação e do prazer da companhia recíproca.

                         Em moço, as amizades comoviam-no; homem feito,  comoviam-no como dantes, sob a convicção fortalecida de que a amizade traduz-se essencialmente no partilhar o que somos e como o somos com o outro, que nos aceita no que somos e  como o somos. Sem isto haverá interesse, camaradagem, companheirismo, porém não autêntica amizade. Com isto, o mais vem por acréscimo.

                        Aspirava a casar-se e a ter na sua esposa uma amiga ou no seu marido um amigo, a quem amasse carinhosamente, e vice-versa; aspirava a ter um filho, varão, de quem seria pai estremecido. Do seu filho desejaria, ele criança, acarinhá-lo e beijá-lo enternecidamente, e ser-lhe um protetor; ele moço, desejaria  acarinhá-lo, beijá-lo e abraçá-lo, e ser-lhe um amigo mais velho; ele homem feito, desejaria  acarinhá-lo, beijá-lo e abraçá-lo, e serem amigos e confidentes. Anelava por ser pai e amigo, que é o que jamais lhe fora o seu próprio genitor, de cuja ausência de amizade ressentia-se com mágoa e, por vezes, com os olhos marejados.  “Pai faz falta”, observou a um amigo que sentia falta do próprio genitor: pai amigo, quis dizer-lhe; disse-lho enquanto o abraçava, na compreensão afetuosamente amiga do sentimento dele, idêntico ao seu, na falta  que sentiam ambos, cada qual do respectivo pai.

 

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