“Mulato” não é pejorativo.

 

“Mulato” não é pejorativo.

Arthur Virmond de Lacerda Neto.

XII.2019 – IV.2020.

 

A voz mulato tem uma de duas origens:

1) “Mulus”, do latim: macho. Originou-se, no século XVI, na América espanhola (não no Brasil) mula, híbrido de burro e égua. A mula filhote ou o mulo filhote chamavam-se, na América espanhola, de mulato e mulata.

Por analogia, na América espanhola, passou a chamar-se de mulato e mulata o mestiço de branco com preto, a mestiça de branco com preto.

Por contágio, no Brasil, chamou-se de mulato: 1) o mestiço de burro e égua, sentido presente em 1913 e que era descritivo e não pejorativo; 2) o mestiço de branco com preto (homem ou mulher) que o movimento negro brasileiro repudia, como (alegadamente) pejorativo e racista, por provir de “mula”.

2) “Muwallad”, do árabe, designava o mestiço de árabe com não árabe. Modificou-se, sucessivamente: mualad > mulad > mulata.

Nunca me constou que “mulato” fosse pejorativo nem racista. De não me haver assim constado não resulta que, absolutamente, não o fosse. O que está em causa não é a minha pessoal e limitada percepção do emprego do termo e sim o uso que, geralmente, dele se fez e faz, no Brasil onde, ao contrário, nas últimas décadas exalta-se a beleza das mulatas, sua tez trigueira (e em que “polaca” foi sinônimo de puta, em certo período).

Não basta asserir-se, sem mais, que é termo pejorativo, porque (alegadamente) originário de mula; para que seja recusado por pejorativo, é imperioso que realmente o seja.

Ou ele realmente é pejorativo e neste caso é mau, ou ele não é pejorativo e neste caso imputa-se-lhe, artificialmente, sentido pejorativo, devido à sua etimologia e para fins de militância.

A etimologia é duvidosa e, portanto, a recusa deste vocábulo é discutível. Se realmente provém de “mula”, “mula” provém de “mulus”, a saber: macho, ou seja, mulato origina-se do equivalente, em latim, a macho, palavra que não é depreciativa e sim apenas descritiva.

Ainda que realmente provenha de “mula”, tal derivação originou-se em ambiente hispânico e não no Brasil; originou-se no século XVI, ou seja, há 500 anos, o que reputo lapso demasiado para que se reviva, na atualidade, etimologia conhecida apenas pelos cultores do idioma e etimologistas e que a militância negra atual reviveu, com animadversão. Após séculos em que já ninguém se lembrava da origem da palavra, descobriram-lhe o suposto caráter perverso e pretendem erradicá-la. Também lhe atribuíram sentido novo, militante e artificial: o de que mulato indica atitude racista, pró-branqueamento, ao mesmo tempo em que imputaram a negro o sentido de quem assume sua origem africana e sente-se pertencente à respectiva cultura e povo.

O movimento social (para servir-me desta locução) da consciência negra (como ele se nomeia) atribuiu polissemia a mulato e a negro, como jargão usado pela militância, com sentidos militantes: (a) mulato é termo que o movimento negro julga racista e depreciativo, como tendente à dissimulação da origem africana do sujeito, e que (segundo a militância) deve ser erradicado. Ele não é meramente descritivo do matiz cutâneo, porém da atitude cultural. Assim, tacha-se de mulato o negro retinto que se desassocia da cultura africana.

(b) negro é termo que o movimento negro julga não racista nem depreciativo (ao contrário), como tendente à afirmação da origem africana do sujeito. Ele não é meramente descritivo do matiz cutâneo, porém atitude cultural. Assim, adjetiva-se de negro o mulato (por mais claro que seja) que se associa à cultura africana.

Estas são acepções típicas da militância, grupais, artificiais, referidas à atitude de pertencimento à cultura africana e não à cor. Elas são descritivas de valores; não são erradas; são úteis para os fins a que servem.

Uma justificativa da recusa do termo mulato é a sua pretendida origem na palavra mula (e não, estranhamente, no latim “mulus”); outra é a de que ela portaria intenso significado de “embranquecimento” da gente brasileira; ainda outra é a de que a miscigenação teria resultado da violência sexual dos brancos, senhores de escravos, sobre suas escravas[1]. A terceira motivação é bastante duvidosa: é como se todos os mulatos ou, pelo menos, a maioria, houvesse, ao longo de séculos, resultado de estupros sistemáticos; como se, ao longo de séculos, jamais tivesse havido sincera e espontânea aproximação afetiva, social e sexual entre brancos e mulatos; como se a miscigenação no Brasil fosse essencialmente perversa. São alegações que me parecem bastante falsas. Terá havido, certamente, situações de abuso de escravas por parte de senhores, jamais ao ponto de haverem eles, por si sós, originado a miscigenação entre nós.

 

Quanto à primeira alegação: “Os movimentos negros brasileiros refutam a utilização da palavra por dois motivos:

1) linguístico – derivação de ‘mulus’, do latim, atualizado por ‘mula’, o animal

que surge da cópula de duas raças diferentes – o asno e a égua, que, no século

XVI, derivou-se na América hispânica para ‘mulato’ como uma analogia ao caráter

híbrido do animal, considerado uma raça inferior já que não possui a possibilidade

da reprodução; e 2) cultural – a falsa impressão de democracia racial que há no país,

associado à representação da mulher negra ou mestiça através do corpo branqueado

e hiperssexualizado.” (Não me chame de mulata. Lilian Ramos da Silva).

 

No item 1 encontra-se explicitada: a origem hispânica e não brasileira nem portuguesa da palavra; sua derivação do latim; seu emprego por analogia em relação ao híbrido. Atente-se no aspecto da analogia: por ausência de vocábulo que identificasse os filhos de brancos e negros, na América espanhola passou-se a usar “mulato” por analogia, como sucedâneo lingüístico, assim como inúmeras outras palavras também as empregamos analogicamente por igual motivo (o pé da mesa; o crescimento da inflação; a asa da xícara; o pico da curva estatística; o planalto da curva estatística). A analogia empregada foi esta como poderia ter sido qualquer outra e na sua origem era destituída de conotação pejorativa. Ela não resultou do ambiente escravocrata nem da escravidão, mas do hibridismo, da mestiçagem, assim como no Brasil criaram-se os termos para indicar outras formas de miscigenação: cabra (mestiço de negro e mulato), cafuzo (mestiço de preto, branco e índio), mameluco ou bastardo (mestiço de branco e índio).

 

Dizer que o animal mula era reputado inferior por não se reproduzir é juízo aplicado (se realmente o era) ao tipo respectivo de animal e não a pessoas. A autora sub-repticiamente pretende insinuar que o desdém imputado à mula, estéril, teria sido transferido aos mulatos, reprodutíveis. Há analogia quanto ao hibridismo; não o há quanto à esterilidade. O emprego da palavra mulato decorreu do hibridismo e não da esterilidade e de sua suposta desvirtude.

A palavra mulato advém de analogia com o animal híbrido. Não provém de desprezo pelo híbrido animal nem pelo mestiço humano. Jamais ela teve conteúdo pejorativo no Brasil. Sua recusa é equivocada

A militância rejeita a obra de Gilberto Freyre precisamente porque enaltece a miscigenação, o engrazamento de brancos e pretos, porque nega o racismo tal como os militantes pretendem haja existido. Segundo eles, tal obra criou o que eles apodam de mito da miscigenação. Não criam eles o mito do racismo ?

Fora da militância, sem o emprego destas vozes no jargão militante, (a) mulato designa o mestiço de branco com preto, com matizes de tom; é a maioria dos brasileiros. (b) Negro é o indivíduo de origem africana, brasileira, até haitiana, retinto, ou seja, escuro, sem mescla de branco; eram os escravos na sua maioria e é a minoria dos brasileiros, se é que ainda remanesce algum, negro pelos quatro costados.

Estas são acepções correntes, populares, naturais, referidas à cor e não à atitude de pertencimento à cultura africana. Elas são descritivas de tons; não são erradas; são úteis para os fins a que servem.

Há, portanto, polissemia, introduzida pelo movimento pró-identidade africana, em que mulato e negro indicavam apenas cor e, já agora, designam, também, atitudes; em que mulato não era vocábulo maldito e passou a sê-lo; em que negro não era necessariamente enaltecedor e passou a sê-lo.

Pela lógica da demonização do termo “mulato” em razão da sua etimologia, deveríamos expurgar nosso léxico de toda palavra que, ao longo dos séculos, procedesse de qualquer origem alegadamente nefasta, a exemplo de “rapaz” (ladrão) e “trabalhador, de “tripalium” (instrumento de tortura). Diríamos “Ministério do Labor” e “jovem homem”, “moço”, “mancebo”. Também mourejar e judiar seriam irradiados do falar policiado (policiado, é claro, na sua acepção original de civilizado). Também ficaria proibida a palavra “família” (conjunto de escravos). Seria sensato erradicar tais palavras ? É óbvio que não. Pela mesma lógica, não faz nenhum sentido conotar mulato com mula e inventar que, por isto, ela é despectiva.

Onde é que estes caras estão com a cabeça ? “Cabeça” também não se pode dizer pois não se sabe se é o que contém o cérebro ou a extremidade do pênis; no segundo caso é obscena. Puta que pariu, cada merda que inventam ! Puta não podemos dizer, pois é pejorativo. Digamos: “Meretriz que pariu!”. Merda também não podemos dizer, pois é bosta de vaca. Ah, desculpe, bosta também não pode pois ofende as vacas. Digamos: “Cada excremento que os caras dizem”. “Cara” até passa, mas pode ser pejorativo para os homens e até para as mulheres (pois as moças de classe média chamam-se entre de “cara”). Então, digamos: “Cada excremento que os humanos dizem!”.

 

Objetar-se-me-á que não estão em causa outros vocábulos e sim apenas “mulato”. Seja. Neste caso, é como tudo: evite-o quem crê na sua origem espanhola (a despeito da sua raiz latina) ou não; quem lhe reconhece sentido pejorativo, quem o associa com o repúdio das desigualdades sociais, com o combate à discriminação, quem o tornou em símbolo de valores e causas.

Use-o quem não comunga destes valores nem se arregimentou nesta militância ou quem não lhe reconhece acepção pejorativa nem racista e usa-o como normalmente se usou: como palavra que designa gente mais ou menos trigueira, de origem africana, mestiça em algum grau com brancos, tão gente, tão respeitável, tão humana quanto os mais brancos de entre os louros que possa haver.

Se você estiver no primeiro caso, pode desusar tal termo; não pode inibir a liberdade semântica alheia em nome da sua sensibilidade semântica e do seu universo axiológico. Pode censurar tratamentos pejorativos e opor-se-lhes.

Se você estiver no segundo caso, pode usar tal termo; não pode discriminar seja lá quem for nem menorizá-lo na sua condição humana em nome da cor da pele, sua ou do outro, nem usar este vocábulo para vilipendiar quem tenha tez trigueira.

Quer esteja no primeiro, quer no segundo caso, deve respeitar a todos, independentemente da sua cor de pele, que é o que menos deve interessar no julgamento das pessoas. Todos pertencemos à mesma humanidade e é na nossa comum humanidade que nos devemos congraçar e atuarmos todos em prol uns dos outros. Este é o espírito republicano e o ânimo dos Positivistas que se bateram pela abolição da escravidão antes de 1888 e se batem pelo prevalecimento de bons sentimentos entre as pessoas e pela participação de todos no patrimônio cultural, material e moral da humanidade.

 Uso “mulato” e considero cretiníssima, totalmente artificial e ininteligente a alegada conotação pejorativa que imputam a palavra que entre nós JAMAIS O FOI.

“Mulato” só é pejorativa na cabeça dos radicais que lhe inventaram esta conotação. Eles estão fora da realidade.

Aceito contribuições de natureza etimológica. Os contribuintes queiram dizer-me fontes bibliográficas.

[1] Lilian Ramos da Silva, Não me chame de mulata: uma reflexão sobre a tradução em literatura afrodescendente no Brasil, p. 78. http://www.scielo.br/pdf/tla/v57n1/0103-1813-tla-57-01-0071.pdf

 

Em PDF: Mulato não é pejorativo..docx

 

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