A CRUELDADE DOS BANDEIRANTES.
Lugares de Cassiano Ricardo, Marcha para Oeste (vol. I, São Paulo, José Olympio, 1970, p. 267 e ss.).
“Até certo ponto, a pergunta — cruel porque escravizou o índio? — obtém resposta, por exemplo, nos casos de índios trazidos em paz.
A técnica de conquista nos apresenta, muitas vezes, o bandeirante transformado em “apartador de briga” entre tribos rivais. Os casamentos de bandeirantes com as filhas dos caciques dão, à penetração histórica, um raro sentido humano.
[…]
É comum a defesa do índio pelo próprio bandeirante. As atas da Câmara, em tal sentido, são definitivas. A todo momento, em plena conquista, está o bandeirante lançando mão da “técnica da bondade” — mesmo porque se recomenda que “os capitãoes nada perdem por serem magnânimos e liberais”.
Até a conquista se pratica, muita vez, pelo “caminho da paz”.
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Enfim, o índio estaria menos escravizado na bandeira do que na criação de gado. Menos escravizado na criação de gado do que no trabalho da lavoura ou da indústria açucareira.
[…]
Ao passo que o bandeirante continua o índio e chega a ser chefe de tribo, como Borba Gato, no Rio Doce e Pai Pirá entre os bororos.
A sua técnica consiste: em regressar ao primitivo o mais que pode, em adotar os padrões culturais indígenas; em se mestiçar com o aborígene; […] em pacificar o gentio, agindo “amorosamente”, fazendo os da sua tropa casarem com as filhas dos caciques, mandando emissários […] propor a paz, o entendimento cristão e cordial, mesmo a índios sabidamente rebeldes e intratáveis; […] oferecendo mimos e presentes de toda ordem aos maiorais da selva.
[…] a caça ao bugre [índios] como objetivo único ou sistemático do bandeirante é um argumento falso de que os jesuítas espanhóis e certos historiadores unilaterais lançam mão por mera improbidade toda vez que atacam o bandeirismo como cruel.
[…]
Nada mais injusto, pois, do que a incompreensão de certos jesuítas que o consideram [o bandeirante], sistematicamente, caçador de índio, quando o índio é, muita vez, o seu principal comparsa, na obra de conquista.”
Quanto à generalização da maldade de uns, como se o fora de todos: “O mesmo se dá com os bandeirantes. Se os Leme foram terríveis, tal não acontece, entretanto, com Pascoal Moreira, “homem extremamente caritativo que auxiliava e servia a todos com o que tinha” revelando uma bondade de pomba num peito de jaguar.
Se este ou aquele recorreu à violência, a quase totalidade realizou a conquista afeiçoando ao seu objetivo o material indômito que o mundo selvagem lhe oferecia, numa sábia contemporização humana com as forças contrárias que sempre procurava atrair, sem as destruir.
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Assim sendo, de tudo quanto se disser, sem zanga, se poderá concluir que existem erros graves de apreciação e de julgamento relativos à obra do bandeirante e à sua “crueldade”.
Não é justo que alimentemos tais equívocos.
[…]
Dado, entretanto, que o bandeirante tivesse sido cruel, essa “crueldade” teria sido mínima em confronto com outros capítulos da crueldade humana […]
Enquanto um Pizarro empregava a sua cavalaria contra os indígenas, os indígenas é que empregavam a sua cavalaria contra os bandeirantes, na conquista do Oeste.
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Pra (sic) vencer o sertão “mais cruel e mais ínvio do mundo” o bandeirante foi o menos cruel dos conquistadores.
[…]
O que assusta é, ao contrário, o bandeirante não ter sido o bandido por necessidade que as contingências lhe impunham. É o ele ser ter havido […] “com os padres das missões, por via de regra, com um respeito, uma piedade, uma benevolência de pasmar.”
Banditismo maior, porém (porque intelectual), será o de quem o chama de bandido, sistematicamente; ou por sectarismo jesuítico póstumo, ou perversão daquilo que se chama “humildade diante dos fatos”.
[…]
Será o caso de perguntar de novo: cruel, o bandeirante ?”
Diante da pergunta :“qual dos povos conquistadores o que menos caçou e escravizou o índio” ? A resposta é uma só: o português.
Jaime Cortesão conclui, quanto à crueldade imputada aos bandeirantes: “1) Esses atos foram muito mais de ordem singular, praticados por um ou outro bandeirante de ânimo feroz ou truculento do que generalizados à maioria deles. […] 3) A generalização de um outro ato condenável, o agravamento tendencioso dos excessos, e a pura invenção dos crimes, nos relatos dos jesuítas, veio a formar a lenda negra sobre os bandeirantes.”