“Sociologia Comteana”

Desinformação de esquerda: o Positivismo burguês (“Sociologia Comteana”)

                                                                                                                    2003

                “Sociologia Comteana” corresponde à tese de doutoramento de Lelita Oliveira Benoit, em Filosofia Política, na Universidade de São Paulo, em que a autora pretende caracterizar a gênese da sociologia de Augusto Comte ( o fundador do Positivismo), pensador que, segundo o livro, para elaborar aquela ciência, transitou sucessivamente da economia política para a história e desta para a biologia, antes de finalmente constituir a religião da Humanidade.

                Abundante em citações de Comte, o estudo apresenta a virtude inegável de amparar-se na letra do próprio autor que explora, o que permitiu-lhe à autora um controle direto das fontes primárias, evitando a intermediação de terceiros e destarte, interferências que poderiam eventualmente comprometer a originalidade do seu pensamento, predicado virtuoso em se tratanto de um autor inédito em português e de leitura freqüentemente difícil em suas duas principais obras, o Sistema de Filosofia Positiva e o Sistema de Política Positiva.

                Outro mérito a assinalar, radica em que, documentando a argumentação desenvolvida com a letra de Comte, o livro permite despertar a atenção do leitor para os ricos aspectos do pensamento positivista, pouco lembrados no Brasil atualmente. Neste sentido, “Sociologia Comteana” funciona, até certo ponto, como obra de divulgação e como incitação a novas pesquisas.

                De quem, todavia, serviu-se da obra do próprio Comte e de alguns de seus explicadores mais lúcidos, como P. Laffitte, F. Magnin, Miguel Lemos, Raimundo Teixeira Mendes, Robinet, Luis Pereira Barreto e outros, era de esperar-se produto melhor do que este. Com efeito, ao longo do texto acumulam-se os problemas e as surpresas, a começar pelo prefácio (da professora Isabel Maria Cordeiro), segundo o qual o Positivismo tende à exclusão de “qualquer pretensão de sociedade justa” (BENOIT, 1999:11), rasgo hermenêutico dos mais singulares, e colabora a tese no combate ao “pensamento conservador” (BENOIT, 1999:12).

                Ambas afirmações insinuam o que se patenteia ao longo de todo o livro, a saber, a sua conotação ideológica, que, sob inspiração marxista, enxerga em A. Comte o que nele prefere enxergar ou o que, nele procurando, acaba por encontrar, em um procedimento seletivo que, ao enfatizar o que convém e ao obscurecer o que se acha no caso oposto, presta-se à demonstração de qualquer tese, por mais falaciosa que seja.

                Assim, por exemplo, à página 85, o livro reconhece em certo artigo de Comte uma “defesa aberta das teses político-liberais e do interesse privado”, desatenta a que, independemente ou não de assistir-lhe razão, cuida-se de texto que o seu autor, na maturidade, reputou prematuro, cujos originais chegou mesmo a destruir e que, de conseqüência, é significativo não daquilo que Augusto Comte adotou, porém, ao inverso, daquilo que abandonou.

                Ainda ilustrativamente, à página 192, a “Sociologia Comteana” entende que A.Comte pretendia o fim da liberdade de pensamento, o que basta para transformá-lo em um totalitário odioso, a cuja doutrina ninguém ousaria aderir. É esta mesma doutrina que, no entanto, protestou sempre pela necessidade imperiosa da mais ampla liberdade espiritual, ou seja, de pensamento e de opinião, “por mais desregrado que se torne, dizia Comte, o movimento espiritual”, cabendo aos poderes públicos respeitá-lo escrupulosamente, limitando-se a manter a ordem pública. A tal entendimento correspondeu sempre a atitude dos positivistas durante o regime militar instaurado no Brasil em 1964.

                Considerado o livro na sua generalidade, averigüa-se que à sua autora moveu o intuito de caracterizar o Positivismo como uma filosofia burguesa, vocacionada a convencer o proletariado a aceitar-lhe a dominação, a justificar ideologicamente o autoritarismo e a “impedir a revolução em prol da igualdade e outras exigências da vontade geral do proletariado” (BENOIT, 1999:384) , fito que teria levado A . Comte a constituir a Religião da Humanidade como instrumento desta dominação.

                Tal ilação é tendenciosa e falsa.

                Ela é tendenciosa porque decorre de uma posição ideológica da autora, que ao enfocar o Positivismo como guardião da economia de mercado, da propriedade privada e dos interesses da burguesia contra o proletariado, submeteu-se aos esquemas de pensamento peculiares ao marxismo, que limitaram drasticamente a percepção da autora e portanto a sua interpretação da doutrina.

                Ela é falsa, ao ignorar consistir em preocupação basilar do Positivismo e dogma da Religião da Humanidade, a “incorporação social do proletariado na sociedade moderna”, na expressão de Comte, tão reiterada entre os seus adeptos, sobretudo brasileiros e que simboliza, quer uma atitude de solidariedade fraterna face aos excluídos (para empregar um vocábulo caro aos próprios marxistas) , quer uma prática persistente visando à sua inclusão na sociedade em que eles, segundo Comte, acham-se “acampados” e não instalados, material e culturalmente.

                Como conciliar a visão de um Augusto Comte contrário às exigências do proletariado, se em favor dele erigiu em princípio doutrinário a morada própria (com sete aposentos), a instituição do salário mínimo e a obrigação estatal de propiciar-se-lhe instrução primária gratuita?

                Como justificar um Augusto Comte campeão da propriedade privada no sentido egoísta, se adotou como princípio o da sua função social, ou seja, a sua subordinação às necessidades sociais?

                Como enxergar na obra de Augusto Comte uma doutrina indiferente à sorte dos desfavorecidos, se proclamava como princípio político a “obrigação fundamental de dirigir toda a existência social em direção ao bem comum, duplamente relativo à massa proletária”? ( COMTE, Política, I, 136).

                Como admitir o Positivismo como filosofia da dominação burguesa do proletariado, se na sociedade concebida por Augusto Comte, pertence-lhe o papel de formador da opinião pública contra “as tendências dos grandes e dos ricos ao egoísmo e à opressão que prejudicam principalmente aos proletários”? ( COMTE, Política, I, 138).

                Como reconhecer na obra de Augusto Comte uma doutrina destinada a submeter as classes obreiras, se preconiza ela “severos deveres sociais” dos “fortes aos fracos”, reconhecendo-lhes o direito à greve e mesmo à insurreição? (COMTE, Política, I, 16,168,181).

                Como apodar o Positivismo de “conservador”, se a Augusto Comte deve-se o axioma de que “o capital sendo social nas suas origens, deve receber aplicações sociais”?

                Como, finalmente, imputar às doutrinas de Comte tal qualificativo, se ele próprio sentenciou: “O Positivismo é socialismo sistemático e o socialismo é Positivismo espontâneo” ? (COMTE, Correspondência geral, V, 49. Socialismo figura aí como anti-individualismo, e não no seu sentido clássico, de apropriação estatal dos meios de produção ou controle governamental da economia).

                Todos estes aspectos patenteiam um Positivismo, seja filosófico, seja religioso, de marcada inclinação social, preocupado com o bem estar material e espiritual das classes desabonadas, preocupação que não encarna privilégio do marxismo nem do pensamento progressista e cuja presença naquela doutrina a “Sociologia Comteana” ignora, em um exercício de maniqueísmo que a deforma em uma caricatura grotesca do que ela de fato representa.

                Na Inglaterra, Frederico Harrison, discípulo de Augusto Comte, exerceu por anos a fio as funções de secretário perpétuo daquilo que se pode considerar representativo dos interesses dos obreiros: o Partido Trabalhista inglês; na França, à Sociedade Positivista de Paris, fundada pelo próprio Comte, incorporaram-se marcineiros, sapateiros, relojoeiros e outros mecânicos, todos, como se vê, proletários; na residência de Raimundo Teixeira Mendes, ardoroso discípulo de Augusto Comte no Rio de Janeiro e incansável em verberar o “egoísmo burguesocrático”, os criados da casa compartilhavam das refeições com os patrões, à mesma mesa. São exemplos de que a prática positivista não apenas encarnou uma atitude de acolhimento face aos não possuidores, como atraiu-os a si.

                Às solicitudes relativas ao bem estar material dos trabalhadores, à distribuição justa da riqueza, à ação governamental zelosa dos interesses dos necessitados, acrescenta o Positivismo uma motivação afetiva, de fraternidade humana, e um sentido moral, de dever social dos que possuem mais, em favor dos que possuem menos. Trata-se de valores absolutamente fulcrais no Positivismo e cuja ausência em “Sociologia Comteana” invalida-lhe irremediavelmente as conclusões e o mérito científico.

                Para transitarmos do teórico ao prático, do preceito à sua aplicação, consideremos alguns casos da ação do Positivismo sobre situações específicas no Brasil:

                1) Debatia-se em 1883 se a abolição da escravidão deveria ou não acompanhar-se de indenização finaceira aos que, com ela, tornar-se-iam ex-senhores de escravos, isto é, proprietários expropriados.

                Presidente do Centro Positivista do Rio de Janeiro, Miguel Lemos, em artigo estampado no Jornal do Comércio, pontificava: “Não, mil vezes não! Como indenização, nem o ar que respiramos podem (os senhores de escravos) reclamar” BOSI, 1992:399).

                Decorreria tal ponderação de uma doutrina “conservadora”, fiel ao mais ativo dos interesses burgueses, o relativo ao direito de propriedade?

                Três anos antes, os positivistas Raimundo Teixeira Mendes, Aníbal Falcão e J. E. Teixeira de Souza conceberam e divulgaram um projeto de lei abolicionista que, para mais da extinção imediata da propriedade humana, previa a conversão dos escravos em trabalhadores remunerados, a fixação de um limite, por determinar-se, do turno laboral, a folga hebdomadária, a criação de escolas de instrução primária, a serem mantidas às custas dos proprietários, além da moralização do convívio dos escravos, pela adoção do casamento monogâmico em lugar da promiscuidade em que muitos se encontravam.

                Bateu-se, pois, o Positivismo, frontalmente em oposição aos interesses –burgueses- dos senhores de escravos, no caso da indenização, e francamente a favor dos interesses materiais, culturais e morais do proletariado escravo, mediante uma sugestão legislativa manifestamente mais completa e melhor – para os escravos- do que a adotada em 1888, que se os libertou, abandonou-os à própria sorte.

                2) No dia do Natal de 1889, apresentou Teixeira Mendes ao governo da novel república, um projeto de legislação laboral, propondo a adoção (a) de um salário mínimo, (b) de turno laboral de sete horas diárias, com quinze dias de férias anuais, além de um dia hebdomadário de descanso, (c) de licença remunerada por motivo de saúde, (d) de justificativa das faltas ao serviço por luto, gala de casamento, socorro a enfermo na família e nos dias santificados na confissão do operário, (e) de estabilidade no emprego, (f) de garantia de salário mínimo vitalício, aos maiores de 42 anos de idade, (g) de uma pensão por desemprego, (h) de uma pensão por invalidez, (i) de aposentadoria aos 63 anos de idade, (j) de uma pensão à família do operário, no caso do seu trânsito, além de outras medidas menores.

                Iniciativa revolucionária para a época, teria ela sido possível no âmbito de uma doutrina destinada a comprimir os anseios do proletariado, como pretende a “Sociologia Comteana”?

                3) Ao longo de aproximadamente três décadas, o Partido Republicano Rio Grandense governo o Rio Grande do Sul, pelas pessoas de Júlio de Castilhos e de Borges de Medeiros. Tanto aquela agremiação política, quanto estes dois governadores inspiravam-se no Positivismo, que adotaram como ideário político.

                Examinando as premissas teóricas do Positivismo, expende Bosi:

                “ …foi…do positivismo social de Comte que fluiu uma primeira vertente ideológica voltada para retificar o capitalismo mediante propostas de integração das classes a ser cumprida por uma vigilante administração pública dos conflitos. A sua inspiração profunda é ética e, tanto em Saint-Simon, quanto em Comte, evoluiu para um ideal de ordem distributivista” (BOSI, 1992:282).

                Na mesma página:

                “Um dos princípios liberais que Comte julgava particularmente funesto seria o de conceber os processos de produção, circulação e consumo de mercadorias somente em função dos interesses individuais. A absolutização do desejo de lucro, aceso egoisticamente em cada agente da vida social, tende a gerar um estado de anomia ou de violência desenfreada que tão-só uma prudente e enérgica administração pública consegue evitar”.

                Ao descrever a prática a que o Positivismo conduziu o P.R.R., acentua o mesmo autor alguns aspectos, dos quais destacamos três:

                (a) A “socialização dos serviços públicos”, fórmula de Augusto Comte, que, nos termos de Borges de Medeiros, “aconselha a subtrair da exploração particular, privilegiada, tudo quanto se relaciona com o interesse da coletividade: é a socialização dos serviços públicos (itálicos de Borges de Medeiros) , servindo esta designação genérica para exprimir que a administração de tais serviços deve estar a cargo exclusivamente do poder público, em que pese aos preconceitos econômicos dominantes ainda em certas classes sociais”. (BOSI, 1991:290).

                Seria este princípio o de uma doutrina “conservadora” e solidária apenas aos interesses privados ?

                (b) “…a política social seguida por Borges de Medeiros como presidente cinco vezes reeleito do Rio Grande se pautaria por dois princípios complementares”, encarnando-se um deles no “que, no contexto do Brasil oligárquico, se poderia chamar progressista”, consistindo “em acolher e sancionar com a autoridade do Executivo certas reivindicações tópicas dos trabalhadores urbanos que já demandavam redução da jornada, melhores condições de vida na fábrica e salários menos vis”, “sabendo-se que Borges procurou, mais de uma vez, atender aos reclamos dos operários”, veiculadas por meio de greves, particular no qual “a atitude do governo do PRR afastava-se do tratamento sistematicamente feroz que as oligarquias de outros estados davam então às greves operárias” (BOSI, 1992: 294 e 295).

                “Entre nós, quase tudo o que houve de sistemático em termos de Direito do Trabalho, portanto no plano do Estado, ou visando à sua intervenção, recebeu o selo positivista”. ( BOSI, 1992:296).

                “No programa do Partido Republicano Histórico redigido por Júlio de Castilhos constaram os seguintes ítens: regime de oito horas de trabalho nas oficinas do Estado e nas indústrias; regime de férias aos trabalhadores; proteção aos menores, mulheres e velhos; direito de greve; tribunal de arbitragem para resolver os conflitos entre patrões e empregados; aposentadoria. Em síntese, é uma agenda de leis sociais a cargo de um Estado previsor que não quer deixar ao arbítrio do capital decidir sobre as condições dos novos assalariados egressos do cativeiro” (BOSI, 1992:297), referindo-se às condições de trabalho a propiciar-se …aos ex-escravos!

                (c) A extrema valorização de um ensino fundamental gratuito e leigo, viva preocupação de Augusto Comte no intuito de capacitar-se o proletariado em termos intelectuais e morais. “Entre nós, as estatísticas comparadas mostram que nenhuma administração estadual dedicou maior atenção à escola primária e ao ensino técnico-profissional do que o Rio Grande borgista e castilhista” (BOSI, 1992: 301).

                Tornar a educação gratuita e ao alcance de todos constitui, na expressão de Comte, a dívida sagrada da sociedade face aos proletários, merecedores de participarem das riquezas espirituais acumuladas ao longo dos séculos. A pensar nisto, constituiu a célebre Biblioteca Positivista, que de começo nominou Biblioteca Proletária, acervo de cento e cincoenta títulos nas áreas de filosofia, história, ciência e literatura, que deveriam representar leituras habituais destinadas a petrechar culturalmente toda a massa humana, que, segundo o filósofo, deveria poder usufruir de conforto material, apropriar-se da riqueza cultural e desenvolver-se moralmente, programa vocacionado à melhoria das condições de vida da gente obreira e tão estimável, senão mais, do que todo o progressismo em voga no Brasil hodierno.

                “Em prol do proletariado clamaram Miguel Lemos e Teixeira Mendes sem cessar. Os seus apelos e advertências encerram, em germe, toda a legislação trabalhista atualmente em vigor. Sob muitos aspectos, as reivindicações do Apostolado (Positivista do Brasil) ultrapassam de muito as garantias até agora asseguradas às classes trabalhadoras. Em matéria de moradia, educação, lazer, amparo à mulher e à criança, as medidas propostas pelo Apostolado ainda hoje constituem audaciosas antecipações. Os deveres dos ricos em relação aos pobres e o destino social de toda fortuna privada ou pública, foram, por seu lado, temas constantes da pregação de Miguel Lemos e de Teixeira Mendes” (LINS, 1967: 427; itálicos nossos).

                Ouçamos o positivista Jefferson de Lemos: “…é certo que nenhum governo subsistirá mais no Mundo, se não tiver no seu programa efetivo o princípio social comunista [o da função social da propriedade]. E é este o melhor resultado de sua ação cívica, o haver reagido, como ainda hoje reage, sobre as classes capitalistas e os governos, obrigando-os ao cumprimento de seu dever ineludível: a incorporação do proletariado à sociedade contemporânea.” Pertencem os itálicos a Lemos, que prossegue: “E, para terminar, lembremos que não foi C. Marx nem Leão XIII na sua famosa encíclica que levantaram no Mundo o problema do proletariado. Há mais de um século, o Fundador da Política Positiva [Augusto Comte] proclamou ser esse o mais grave dos problemas modernos e o que exige mais urgente solução”.

                Dentre as centenas de folhetos e opúsculos publicados por ambos, dos quais a maioria acha-se, mesmo atualmente, disponível na Igreja Positivista do Brasil, a autora de “Sociologia Comteana” consultou apenas dez relatórios de Miguel Lemos, sobre os fastos do Positivismo no Brasil entre 1881 e 1892, e três monografias de Teixeira Mendes, uma acerca do papel das mulheres na sociedade, outra sobre o divórcio e a terceira constituindo-se em uma recolha de textos de Augusto Comte. Não examinou nenhuma, nenhuma das dezenas de publicações em que ambos, sobretudo o segundo, versavam sobre a incorporação social do proletariado, em que, geralmente, após transcreverem a letra do Mestre, derramavam-se em considerações sobre a sua aplicação à realidade do momento.

Tal lacuna de fontes, inaceitável, antolha-se-me atribuível somente a um verossímel ânimo da autora de enxergar no Positivismo apenas o que lhe convinha para o seu argumento, por mais que os fatos o contradissessem.

                Em suma, “Sociologia Comteana” contribui apenas para engendrar ou fortalecer um preconceito anti-positivista. Como todo preconceito, ele deforma a realidade pejorativamente ao invés de analisá-la com a imparcialidade que se espera de uma investigação que pretenda o respeito dos isentos e dos bem informados. Qual será a origem de tal preconceito? Certamente (a) a consagração da propriedade privada como inerente à ordem social, (b) o entendimento de que a sociedade moderna é por natureza industrial, (c) a rejeição do comunismo, todos princípios do Positivismo.

A conclusão do livro, de que a Religião da Humanidade visava a obstar a “que a revolução permanente continuasse o seu curso ininterrupto no sentido da igualdade e de outras eventuais exigências da vontade geral do proletariado” (BENOIT, 1999:384), aberra da letra de Augusto Comte, do espírito da sua obra, da interpretação e da aplicação que dela fizeram os seus fiéis.

                Ao conhecimento do Positivismo, o livro em apreço nada acrescenta e à sua hexegese filosófica, nenhum ponto de vista respeitável  introduz. No tocante ao exame das implicações sociais da doutrina, rege-se por uma indesculpável cegueira. Enquanto achega científica ao saber humano em geral, ele encarna mais um exemplo do condicionamento empobrecedor a que leva a sujeição da cognição aos esquemas ideológicos de pensamento. Obra, em suma, de ideologia e não de ciência, porcaria propriamente dita, findei-lhe a leitura recordando-me de Olavo de Carvalho, que denunciou a mediocrização da vida intelectual brasileira nas décadas mais recentes, notadamente nos meios universitários, por conta da sua vinculação marxista.

                “Sociologia Comteana” é um livro que alcançou já duas edições e empalmou o prêmio Jabuti, êxitos devidos não ao seu valor intrínseco, à originalidade das suas demonstrações, a uma qualquer agudeza nas suas análises, ao seu mérito científico. Ao contrário, eles devem-se apenas a que ele exprime certos conceitos marxistas, laboriosamente difundidos na sociedade brasileira sob a forma de consensos, que tornam as pessoas dóceis a qualquer teorização que com eles guardem afinidades ou identidades abertas. Livro embusteiro, convenceu a um público já predisposto a aceitá-lo, e só o convenceu por isso mesmo.

 

 

BENOIT, Lelita Oliveira. Sociologia Comteana. Primeira edição. São Paulo: editora Discurso Editorial, 1999.

BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. Primeira edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

COMTE, Auguste. Système de Polique Positive.Terceira edição. Paris, 1881.

COMTE, Auguste. Le prolétariat dans la société moderne. Paris, l946. Textos coligidos e prefaciados por Rodolfo Paula Lopes.

LACERDA NETO, Arthur Virmond de. A república positivista. Terceira edição. Curitiba: Juruá, 2003.

LEMOS, Jefferson de. Condições fundamentais de ordem e de progresso necessárias à organização da pátria brasileira. Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira de Cultura Positivista, 1946.

LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. Primeira edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

TORRES, Angelo. O léxico de Augusto Comte. Inédito, Rio de Janeiro, 2000.

SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil. Primeira edição. Porto Alegre: editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.

 

 

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