“Juridiquês”

“JURIDIQUÊS”.

                                                                                       Arthur Virmond de Lacerda Neto,                                                                                     5.X.2020.


            Corre movimento de repulsa pela palavra “outrossim”, como símbolo do chamado “juridiquês”. Tal movimento é pueril, se se tomar em consideração essa palavra, avulsamente, contudo tem razão de ser quanto ao que ela simboliza.

     “Juridiquês” (passe a neologia) nomeia o estilo empregado por algum pessoal jurídico no Brasil: pedante e prolixo, como inclinação a “falar difícil”, na convicção de que os juristas devem praticar profusão terminológica.

     É vezo das últimas décadas: até cerca de cinqüenta ou sessenta anos, os advogados, juízes, pareceristas, doutrinadores, redigiam com simplicidade e escorreição. Aparentemente declinou e desde há lustros o próprio meio jurídico combate-o.

     O “juridiquês” patenteia-se por prolixidade, má construção frasal, metáforas dispensáveis, exagero de preciosismos, da parte de quem não é profundo conhecedor da língua (como o foram Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Camilo Castelo Branco e Euclides da Cunha). Daí o espetáculo de escrevinhadores que arremedam formas supostamente elevadas de redação, piorado com solecismos de concordância, conjugação, pronome, flexão, preposição e não somente, especialmente visíveis no pessoal moço.

     É inaceitável que uma peça jurídica manifeste despreparo lingüístico, sintoma, aliás, do sub-conhecimento idiomático no Brasil, que acomete estudantes e jovens em geral, nas últimas quatro décadas e até mais: ele não se limita aos moços, é timbre também da geração de meia-idade. Ressalvadas as exceções, comunicar-se com qualidade aquém do desejável é defeito nacional assinalável em todas as classes (o que inclui locutores televisivos e radiofônicos).

De todo o ponto diverso do juridiquês são a VARIEDADE LÉXICA e o RECURSO ÀS FORMAS do idioma: abundância de palavras e de meios de expressão que permitem comunicar com beleza, destreza e rigor. Não há mal no emprego de vocábulos adloquiais (como: outrossim, destarte, é mister, instar, sabença, cediço, salientar). Cuida-se de termos corretos e úteis; é desejável que toda pessoa conheça-os e saiba usá-los, sobretudo os profissionais da escrita e da fala. Da mesma forma, é vantajoso como correção e como arte pôr corretamente os pronomes (o que inclui a mesóclise) e as preposições, usar devidamente os tempos verbais, as locuções, as figuras de linguagem, conhecer as peculiaridades do idioma e suas regras, e aplicá-los, por menos vulgares que sejam: o uso reiterado do invulgar torna-o trivial e o que parece “difícil” transforma-se em “fácil”. Nada há de difícil na língua portuguesa.

O mal do juridiquês não está no uso do léxico que o distingue, nem até no abuso que dele se faça, senão no ESTILO que lhe é típico; o mal radica no conjunto do texto em que tais termos são aplicados e não na sua aplicação avulsa.

     Escreve mal quem o faz rebuscadamente (não se deve confundir rebuscamento com riqueza léxica), quando o texto exibe pedantismo, como chamar lote, sesmo, terreno, de “troço geodésico” ou o juiz mandar citar “em homenagem ao princípio do contraditório” ou o professor nomear a constituição de “Magna Carta”, não obstante seja plenamente legítimo empregar palavras como instar, salientar, cediço, sabença, outrossim, testigo nos lugares em que elas exprimem precisa e rigorosamente o que se pretende transmitir. É legítimo recorrer a palavra menos trivial em vez da vulgar: a recusa da redação jurídica viciosa não pode redundar no defeito oposto da mediocridade e da pobreza, a título de simplicidade. Simplificar, aqui, implica evitar o pedantismo e não aviltar a forma. Diante de palavra que o leitor desconhece, ele obviamente deve consultar o dicionário e aprendê-la.

     O vício de juridiquês NÃO visa a excluir ninguém da inteligência dos textos, tampouco a preservar interesses corporativos: tais são interpretações fantasiosas e lembram teorias da conspiração. Ele desenvolve-se por IMITAÇÃO do pessoal jurídico moço, em relação a certo pessoal jurídico anterior, que por sua vez passou a redigir assim porque o texto jurídico, técnico, exige o uso de vocabulário próprio, ao que se soma o motivo que julgo determinante na formação do juridiquês: AUSÊNCIA DE CULTURA LITERÁRIA de quase todos os juristas das gerações nele avezadas: eles nada leem, salvo (se tanto) literatura técnica, nunca se enfronharam no cânone literário do português, como as obras de Machado, Aluísio, Lima Barreto, Alencar, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, Vieira, Eça, Camilo, Saramago e tantos outros. Desconhecem o que seja escrever com graça, ao contrário das gerações precedentes de juristas (de septuagenários para mais), afeitos à freqüentação de literatura em geral, formados em época em que se valorizava o idioma e estudados em escolas que o ensinavam a sério. Cada tempo traz seu timbre: na atual, repetem-se os chavões pueris de que “português é difícil”, “a gramática é opressora”, “o importante é comunicar”, “a forma culta é variante”. Antanho aprendia-se mais o idioma e usava-se o quanto se aprendia: eis porque o brasileiro médio de pelo menos até os anos 1970 exprimia-se com riqueza léxica e de recursos, e inexistia “juridiquês”.

     Machado, Aluísio, Euclides, Camilo, Saramago, Eça e os bons escritores não adotavam estilos equivalentes ao mau estilo jurídico (porém sim Sebastião da Rocha Pita, malsinado precisamente por isso): serviam-se de redação pessoal e esteticamente superior, ao passo que a mania dos “operadores do Direito” é esteticamente inferior e não corresponde a nenhuma originalidade, porém a mimese em que estagiários, estudantes, nuper-formados, advogados novatos viciam-se na suposição de que seus predecessores (com a sabedoria da experiência e do conhecimento), escrevem bem. Nem todos os juristas decanos fazem-no nem dão o bom exemplo: a anomalia perpetua-se principalmente por incultura literária, bem assim por ausência de auto-crítica e crítica. Esta, contudo, despontou e é bem-vinda.

     A recusa do juridiquês é acertada em seu objetivo, contudo erra na forma de obtê-lo: não é pela evitação de certos vocábulos que será erradicado, tampouco sê-lo-á pela recusa da mesóclise (bela propriedade de nosso idioma), das segundas pessoas, dos pronomes, das contrações pronominais (vo-lo, no-lo, vo-la, no-la, lho, lha, to, ta, mo, ma), de locuções típicas (lançar mão de, dar cabo de, ai dele, à socapa, à sorrelfa, ao pé de, ir ter com etc.), de possibilidades legítimas (pretérito-mais-que perfeito em lugar de pretérito perfeito, infinito como substituto do imperativo). Enjeitar os meios cultos de expressão da língua portuguesa redundará apenas na deficiência de RIGOR, RIQUEZA e GRAÇA do texto jurídico. Eliminar o “juridiquês” não pode equivaler a rebaixá-lo na sua plástica nem a acercá-lo da coloquialidade, sob o falacioso argumento de que deve ser legível por todos: ao invés, ele destina-se a ser lido apenas pelos intervenientes dos processos e pelo público especializado, dotado de terminologia técnica.

A erradicação do “juridiquês” deve dar-se a prazo e pertence a cada um dele participar: leia copiosamente literatura vernácula, com dicionário à mão e não imite o estilo jurídico. Insta formarmos público jurídico dotado de cultura literária, de sensibilidade para o texto de qualidade. É cediço que a quem falece trato com as formas superiores do idioma não alcançará ser escritor de mérito. Constitui sabença importante a de que o contacto com obra de autores de escol dota o leitor de sensibilidade com que discirna bons textos dos que são ruins. Quem jamais apreendeu a beleza, a arte, o rigor, a exatidão dos autores merecidamente consagrados como eminências plásticas, acha-se fadado a confundir elevação com pedantismo e opulência léxica com “rebuscamento”; outrossim expõe-se a pretender sanar o mal do “juridiquês” com o malefício pior da pobreza da forma. Que a boa intenção de remediar-se um defeito não enseje outro, mais grave e, aliás, mais fácil: sempre a mediocridade é fácil.

     No Brasil, ano após ano, geração após geração, sabe-se menos a gramática, há mais licença e mais desleixo em relação à forma culta do português, a coloquialidade é eivada de mais vícios e solecismos, produtos das doutrinas da sociolinguística, do mito do “idioma brasileiro”, do anti-lusitanismo, da acusação irrogada à gramática de ser opressora e sexista. Ao mesmo tempo, desdenha-se da leitura habitual dos bons autores do vernáculo; aprende-se inglês, cuja sintaxe imiscui-se na do vernáculo e a desnatura (procurar por, temer por), e cujo vocabulário, tristemente adaptado ou imitado (testar positivo, força-tarefa, impacto) polui o vernáculo e o empobrece (que ninguém se iluda com o mito de que os estrangeirismos enriquecem os idiomas: todo peregrinismo dispensável resulta no esquecimento de um, dois, três, quatro e mais sinônimos da língua que intoxica).

     Aprenda amorosamente o português, consulte gramáticas e dicionários; escreva com simplicidade, variedade e rigor; aprenda mais palavras e empregue-as. Sirva-se de todos os recursos vernaculares, como mesóclise, pronomes contraídos (vo-lo, no-lo, lhe, lho, lha, te, to, ta, me, mo, ma), dois pronomes no verbo (deu-se-me, prendeu-se-nos), segundas pessoas (tu; vós: é vosso, disse-vos, podereis fazer, façai vós a vossa parte); suspeite de doutrinas que os vilipendiam e de todo argumento anti-gramatical. Recuse o mito do “idioma brasileiro”; evite contaminar-se pelas gírias, vícios e modismos ambientes; esforce-se por ser melhor em vez de ser mais do mesmo ruim; escreva concisamente, abomine o vício do duplo sujeito e a locução “a gente”. Repila palavras em inglês, procure-lhes em dicionários as traduções, substitua-as por equivalentes vernaculares; como derradeira solução, aportuguese-as.

São recomendáveis traduções brasileiras de até meados dos anos 1980; são inquinadas de anglicismos de sintaxe e terminológicas, em sua maioria, as do inglês de então ao presente. Para entranhar a arte de expor claramente, leia as obras de José Ortega y Gasset e de Norberto Bobbio, a Ética Nicomaquéia, de Aristóteles.

Tome agora subida atenção: leia habitualmente bons livros em português (releia-os), a começar pela totalidade das obras de Machado de Assis, Aluísio de Azevedo e José Saramago, três tesouros que, superiormente redigidos, tornam-no privilegiado por poder deles desfrutar no original.

Pela instrução no idioma e pela educação literária formaremos em alguns anos geração de brasileiros familiarizados com o melhor de nosso idioma: será quando nossos juristas redigirão com beleza e rigor, e darão o bom exemplo a seus sucessores.

Quando ao vocábulo “outrossim”, injustamente malsinado por alguns, eis duas ocorrências dele: “Esse ressentimento exagerado era o próprio efeito da organização da moça, e, outrossim, de sua educação quase solitária.”; “Iaiá era a mais dúctil, e, outrossim, a mais interessada.” Nessas frases nada há de pernóstico nem de prolixo. Ambas devemo-las a Machado de Assis, em Iaiá Garcia[1].


[1] Iaiá Garcia, Edigraf S. A., São Paulo, sem data, pp. 98 e 136.

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