Vício de discordância de número é burrice.

VÍCIO DE DISCORDÂNCIA DE NÚMERO.

Corre vício de concordância de número ou melhor, de discordância de número.

Vício: “O princípio que se origina dos gregos são o da unidade”. Sem vício: “O princípio que se origina dos gregos é o da unidade.”

Vício: “O tempo deles passaram”. Sem vício: “O tempo deles passou.”

Vício: “A caixa de sapatos estão vazias”. Sem vício: “A caixa de sapatos está vazia.”

Vicio: “Li em um livro, de duzentas páginas e que eram de Machado de Assis”. Sem vício: “Li em um livro, de duzentas páginas e que era de Machado de Assis”.

Vício: “Aprendi hoje a regra de três, que não são difíceis.” Sem vício: “Aprendi hoje a regra de três, que não é difícil.”

Vício de uma doutora-com-doutorado: “A atuação dos acadêmicos no Rio de Janeiro são a prova de que […]”. Sem vício: “A atuação dos acadêmicos no Rio de Janeiro é a prova de que  […]”.

É óbvio, é inteiramente óbvio que “o tempo deles passou”, que “era de Machado de Assis”, que “não é difícil”, que “a atuação é a prova”. É inteiramente óbvio que o verbo concorda com o sujeito; tal concordância é lógica, faz sentido. É ilógico e não faz sentido é concordar com o complemento e usar-se o plural, errado, em lugar do singular, único número correto, nestes casos.

Este vício já conta década e meia; como todo vício, propagou-se por imitação. É típico que, no Brasil, o vulgo imite o errado (e como imita !). Basta que um ignorante qualquer incida em mais um solecismo, que quem o ouve, percebendo-lhe a novidade, e por isto mesmo, passa a repeti-la.

Há, na psicologia lingüística do brasileiro, fenômeno que merece a atenção de sociólogos, psicólogos e psiquiatras e de professores de português: é o de que, como se ensina mal o idioma; como, por conseguinte, ele é mal sabido pelo vulgo, este mesmo vulgo é incapaz de discernir do certo do errado (noção, aliás, que a sociolingüística nega — no que está erradíssima) e toma as modificações que nota, por bem-vindas, sem nenhum exame racional delas.

É o caso, também, do burríssimo “me atentei”, “não me atentei no dia da prova”, ou seja, no verbo atentar como reflexivo, o que não é (“atentei no dia da prova”, “atente no problema”).

Também é o caso de “Vai querer ?”, “Não vai ter” em lugar de “Quer ?”, “Não tem”, ou seja, a troca do futuro pelo presente.

São usos irracionais, ininteligentes, errados, cuja irracionalidade, cuja burrice, cujo erro deveria ser prontamente diagnosticado por qualquer pessoa minimamente atenta ao falar alheio e próprio. Contudo, passa-se o oposto. Por que prevalecem o irracional, o ininteligente, o incoerente ?

A sociolingüística e os promotores da pretendida “independência lingüística” do português do Brasil, pretendem legitimar toda alteração e até incorporá-la no pretendido cabedal da forma (pseudo-) culta do idoma, sem atentar em que a maioria dos pretendidamente cultos pouco ou nada leem da boa literatura vernacular, falam mal o português, sabem-no mal e quando o sabem, negligenciam de empregar o que sabem.

Objetar-me-ão que o que faz sentido é que as pessoas entendam-se e que se elas se entendem com discordância de número, não importa a incoerência e sim a compreensão do receptor, do conteúdo que recebe. É claro que importa a comunicação,  contudo também importa a coerência, a racionalidade, a lógica, a forma. Não se trata de preconizar o valor da regra, “per se” e sim de atentar-lhe no valor de racionalidade, de coerência. Regra que mantém racionalidade e coerência, que faz sentido, é regra que se deve respeitar. Diferentemente disto, é coonestar-se a irracionalidade. Faz sentido coonestar-se o irracional e o incoerente ? Não, não faz. Então, a nada leva preconizar-se a fala do povo e até enaltecer-se o errado como “forma culta brasileira”. É “forma inculta brasileira”, forma errada e pseudo-culta, ainda que a pratiquem tradutores de universidades conceituadas e doutores-com-doutorado o que, aliás, nada significa: a maioria dos jovens doutores brasileiros, com cerca de 30 anos de idade, escreve muito mal, como ademais, o pessoal acadêmico brasileiro escreve desajeitadamente, com mau estilo e por vezes mingada gramática (como já denunciei neste blogue).

Atenção que a aceitarem-se as tolices e a liberdade semântica a troco de “idioma brasileiro”, “independência lingüística” é, em muitos casos, forma de laxismo, de se coonestar a inépcia, a ignorância, o desleixo, até de criancice.

As regras do português fazem sentido, são racionais, são lógicas, não são especialmente difícieis, são utilíssimas para propiciarem comunicação compreensível e eficaz. Sabê-las e empregá-las é próprio do homem cultivado e elevado.

O vício da discordância de número é patente; irrita-me depará-lo em textos que deveriam ser puros de vícios, como a tradução que a Unesp publicou das “Conversações de Eckermann com Goethe”, traduzida no Brasil, pelo mesmo tradutor que escreveu “obedecê-la”.

O que me irrita, é ver as más traduções brasileiras, em que as erronias se legitimam a pretexto de “idioma brasileiro”, de “independência idiomática”. Neste particular, louvo Olavo de Carvalho e o os olavinhos: digam o que disseram deles, e por mais que tenham razão contra elas, em um ponto eles têm razão: em que se deve cultivar o vernáculo, estudá-lo, empregá-lo e contrariar-se o achatamento geral da fala e da escrita no Brasil, retrocesso que também eu denuncio há décadas e (creio) desde antes de Olavo (retrocesso semelhante deu-se na Alemanha nazista, como o notaram Estefano Sweig e [se estou no certo] Érico Voegelin nas suas memórias).

Esse post foi publicado em Vício de linguagem, Vernáculo.. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário