Culto no templo do idioma.

CULTO NO TEMPLO DO IDIOMA.

[Coro formado por um professor, um leitor, um estudante e três populares entoa este hino:].

Oh, céus ! Oh, infernos ! Oh, miséria humana ! Homens pobres de idioma, pobres de dicionário !

Dizeis “crowfouding” ? Ignorais a palavra “cotização”, a palavra “vaquinha” ?

Dizeis “show” e desdenhais de “espetáculo”, “concerto”, “apresentação” ?

Estrangeirais vosso idioma e traduzis literalmente ! Apoucais vosso repertório léxico e traduzis cegamente !

Óh, horror ! Óh, insciência ! Óh, inversão de valores e de saberes !

Dizeis “testou positivo” ? Não sabeis que traduzir não é imitar ? Saibai, óh humanos, óh viventes, que traduzir é encontrar o equivalente em português, do que se acha em outro idioma.
Erguei vossa sabedoria a esta verdade, inculcai-vos em vosso espírito a consciência de que traduz mal quem imita bem.
[Gestos de assentimento. Alguns fazem o sinal do livro.]

Se vos deparais, em inglês com a construção “Quem testar positivo”, traduzi, óh pensantes, oh letrados, por “Quem cujo exame der positivo”, que é bem melhor, é correta, é bonita e fácil.
[Sorrisos de contentamento; aplausos; vários praticam o sinal do dicionário: com uma das mães, simulam folhear páginas de livro, que voltam pelo canto superior direito, como convém a leitores pulcros. O pregador repete, altissonantemente:]

Quem cujo exame der positivo !
Quem cujo exame der positivo !

[Exorta os fiéis:]

Repitamos em voz alta:
[Todos repetem, à uma, altissonantemente:]

QUEM CUJO EXAME DER POSITIVO.

[O sacerdotes:]
Traduzir bem não é imitar cegamente.
Traduzir bem é encontrar o equivalente.

[Todos repetem, em voz alta:]

TRADUZIR BEM NÃO É IMITAR CEGAMENTE.
TRADUZIR BEM É ENCONTRAR O EQUIVALENTE.

[Vários fazem o sinal da inteligência: com ambas mãos tocam o alto de sua cabeça. O pregador passa à prédica:].

Desconheceis o vosso idioma, desdenhai-lhes das delícias, da volúpia de dizer no que vos pertence; deixai-vos engodar pela tentação de rebuscar o vosso falar com palavrões, de enxovalhá-lo com exotismos irracionais ! Oh, homens, tomai tento no que fazeis, tomais tento em como falais ! Usemos o Português; abandonemos o pedantismo, louvemos o vernáculo, usemos dicionários.
[Todos levantam-se, com o dicionário em mãos. Repetem, em uníssono:].
Preferimos o português, evitamos o inglês; prezamos o nosso idioma, usamos os nossos dicionários, elevamo-nos ao conhecimento do português. Admitimos a beleza, a graça e a abundância do vernáculo. Envergonhamo-nos de mal usar e de desdenhar da língua portuguesa.
[Assentam-se. O coro retoma a sua toada:].

Educai o povo, ensinai a gente, propagai o gosto pelo idioma.
[Os assistentes respondem:].

Orgulhamo-nos do nosso idioma, usamos o nosso idioma, evitamos estrangeirismos, consultamos o dicionários, lemos e relemos os clássicos do nosso idioma.
[Todos erguem os dicionários por sobre as suas cabeças e entoam, em uníssono:].

Nós nos orgulhamos da língua portuguesa; nós a aprendemos; nós nos elevamos às suas graça e riqueza; nós lhes cumprimos a gramática; nós lhe valorizamos as regras; nós empregamos o vernáculo e evitamos peregrinismos.

[O professor intervém:].

A Humanidade, criadora do idioma, compõe-se de quantos lhe incorporam as realizações, conservam-nas, melhoram-nas e transmitem-nas tão boas quanto as receberam ou aprimoradas. A cada um que desfruta do patrimônio do idioma cabe usá-lo com conhecimento e elevar-se à ciência dos seus recursos, o que eleva o conhecedor por sobre o ignaro e valoriza o discurso de quem sabe bem e bem usa o que todos devem saber e por cujo bom uso a todos compete zelar.
Membro da Humanidade, a cada um incumbem deveres de gratidão pelo quanto recebemos das gerações passadas, da infindável cadeia de milhares dos nossos antecessores que construíram o idioma. Está à altura da Humanidade e será digno de integrar a cadeia das gerações quem mantiver o bom, o belo, o útil, o veraz, e o engrandecer. Está aquém da Humanidade quem degrada, quem empobrece, quem depaupera o legado humano de que é herdeiro e beneficiário. O legado humano compreende, também, o idioma, a gramática, as suas regras, os seus recursos, as suas minúcias que o leviano combate, que o medíocre verbera e que o preguiçoso desusa. Entre nivelar a si próprio por baixo ou por cima, é digno e desejável elevar-se, em vez de se degradar: eleve-se ao conhecimento meticuloso do idioma e use-o com qualidade. Leia os clássicos do idioma, estude a gramática, aplique o que aprendeu, evite os vícios do povo, imite os que sabem e não os que sabem menos ou ignoram.
[Gestos de assentimento da parte dos assistentes.].
Leiamos Machado de Assis, Aloísio de Azevedo e José Saramago; empreguemos as preposições corretas, a pontuação, a mesóclise; variemos o nosso vocabulário e o enriqueçamos; empreguemos corretamente os tempos verbais; desprezemos os erros e vícios onde eles se encontrem. Amemos a língua portuguesa !

[Aplausos. Finda o culto com o “sinal do livro” em que, quem deseja aprender pela leitura de bons livros, toca a própria testa com o dicionário. Todos efetuaram-no, sinceramente. Retiram-se os lusófonos pela porta principal e os coristas pela portinha do coro. A seguir, vários dirigiram-se a alfarrabistas e a livrarias; outros, tornaram à casa, onde prosseguiram a leitura de livro].

O pregador era eu; e o público, quem seria ?

 

 

 

 

 

 

 

 

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