O tal do neutro.


Qualquer lingüista e qualquer estudante de Letras minimamente informado sabe que o masculino, em português, contém o neutro, que proveio do latim. Dizer “todos” não é apenas “os” e sim “os” e “as”; o masculino inclui masculino e feminino, enquanto o feminino contém somente o feminino.

O pessoal do neutro entende que não é assim e que o masculino é apenas masculino e não masculino e feminino; eles atêm-se à aparência, à forma, à grafia das palavras e não a seu valor no idioma, a seu conteúdo.

As formas todxs, tod@s são impronunciáveis e introduzem dificuldade no aprendizado das crianças. Sóe-se, algo hipocritamente, invocar as crianças deste país como álibi para fundamentar os preconceitos dos adultos; nesse caso, contudo, é real que essas grafias introduzem mais uma dificuldade desnecessária. O sinal de arroba é interessante, pois contém “a” e “o” e assim é mais expressivo que o “x”; fora essa nota, é igualmente dispensável.

Parte ou parte relevante dessa coisa de neutro deriva do critério da sociolingüística de que o idioma e a gramática são opressores. De tanto falar-se em opressão, por o tema da opressão estar no ambiente, por ser idéia familiar a muitos brasileiros, tudo que com ela se conote torna-se odioso, ainda que a tal da opressão seja invocada retoricamente, ainda que os anti-opressores entendam-na com descritério e ainda que seja voga mental, efêmera. O passado colonial foi opressor, dadas estátuas são opressoras; certos pronomes de tratamento, também; elevador de serviço, idem; certo vocabulário, por igual, e assim sucessivamente. Quase tudo sujeita-se a ser tido por opressor, conforme à luz por que seja interpretado (desde que estabeleça algum tipo de desigualdade entre pessoas) e a ser objeto de desopressão.

A opressão é censurável e merece ser combatida. Refiro-me ao que realmente oprime, não ao que só oprime na fantasia dos extremistas. É semelhante à grita, já obsoleta, de que “se houver casamento gay, todo mundo vai virar veado” (de que depreendo que sê-lo é muito atraente), “a humanidade acabará”, “é atentado contra a família”; dantes, os católicos inflamavam-se pela vitaliceidade do divórcio, que acabou por prevalecer. Com tais exemplos, colimo significar que em dadas quadras há idéias predominantes, a que as pessoas aderem, e que passam. Elas têm seu tempo, contudo não permanecem, porque artificiais, falsas, desmesuradas. Afigura-se-me ser o caso do neutro: é o tema do momento: passará. Alguns usam-no sinceramente, e creem colaborar para justiçar o idioma e as mulheres; outros, os oportunistas, para posturarem de bons moços, para serem aceitos no seu grupelho juvenil ou acadêmico. E a grande maioria, condescenderá com aprender mais pronomes e a usar o neutro a cada passo ? Já não dizem, bestamente, que “português é difícil” e querem dificultá-lo ainda mais ?

Atente na qualidade rasa com que o brasileiro médio fala, a carência de desenvoltura e correção de comentadores televisivos, a propagação de cacoetes e vícios de linguagem (o desprezível “a gente”, “aí”, “[es]tá?”), vulgaridades (“[es]tá ligado ?”), erros vários, pobreza de recursos, analfabetismo cultural. O brasileiro médio sequer sabe o que é saber melhor seu idioma, mistificado pela falácia da sociolingüística de que fala bem sua variante, de que o essencial é comunicar-se. Compare-se como falava o brasileiro médio de 40 e mais anos atrás com o coevo: regrediu-se, desaprendeu-se. Ensinou-se a desprezar a gramática por … opressora, proclamou-se o inexistente idioma brasileiro, desdenhou-se da forma culta como variante. São entendimentos que convergem para o rebaixamento da qualidade da comunicação, em que agora se introduz complicação excrescente, não como fato da língua, senão como militância ideológica.

Marcos Bagno com suas doutrinas altamente discutíveis porém pouco discutidas (fui dos raros que as criticou duramente) criou o meio mental em que agora floresce a voga do neutro.

O masculino é masculino mas também é pseudo-masculino, quando é neutro: essa é a realidade do idioma, é como ele existe, é sua condição morfológica.

14.X.2020.

O NEUTRO (2).
“Vamos conversar com a tia. Não sou homofóbica, transfóbica, gordofóbica. Eu sou professora de português.
Eu estava explicando um conceito de português e fui chamada de desrespeitosa por isso (ué).
Eu estava explicando por que não faz diferença nenhuma mudar a vogal temática de substantivos e adjetivos pra ser “neutre”.
Em português, a vogal temática na maioria das vezes não define gênero. Gênero é definido pelo artigo que acompanha a palavra. Vou mostrar pra vocês:
O motorista. Termina em A e não é feminino.
O poeta. Termina em A e não é feminino.
A ação, depressão, impressão, ficção. Com apenas uma exceção, as palavras que terminam em ção são femininas, embora terminem com O.
Boa parte dos adjetivos da língua portuguesa podem ser tanto masculinos quanto femininos, independentemente da letra final: feliz, triste, alerta, inteligente, emocionante, livre, doente, especial, agradável, etc.
Terminar uma palavra com E não faz com que ela seja neutra.
A alface. Termina em E e é feminino.
O elefante. Termina em E e é masculino.
Como o gênero em português é determinado muito mais pelos artigos do que pelas vogais temáticas, se vocês querem uma língua neutra, precisam criar um artigo neutro, não encher um texto de X, @ e E.
E mesmo que fosse o caso, o português não aceita gênero neutro. Vocês teriam que mudar um idioma inteiro pra combater o “preconceito”.
Meu conselho é: em vez de insistir tanto na coisa do gênero, entendam de uma vez por todas que gênero não existe, é uma coisa socialmente construída. O que existe é sexo.
Entendam, em segundo lugar, que gênero linguístico, gênero literário, gênero musical, são coisas totalmente diferentes de “gênero”. Não faz absolutamente diferença nenhuma mudar gêneros de palavras. Isso não torna o mundo mais acolhedor.
E entendam em terceiro lugar que vocês podiam tirar o dedo da tela e parar de falar abobrinha, e se engajar em algo que realmente fizesse a diferença em vez de ficar arrumando pano pra manga pra discutir coisas sem sentido.
Tenham atitude! (Palavra que termina em E e é feminina). E parem de ficar militando no sofá!(palavra que termina em A e é masculina).”
Vivian Mansano.

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