Doutores mal sabedores do vernáculo.

DOUTORES MAL SABEDORES DO VERNÁCULO.

Arthur Virmond de Lacerda Neto. 9.I.2019. 

Hodiernamente, muitos nuper-formados adentram o mestrado e, a seguir, doutoram-se. Os doutores brasileiros atuais são geralmente jovens, nos inícios da sua trintena ou no final da casa dos 20 anos.

            Eles passam cerca de dez anos em altos estudos universitários e cometem, oralmente e por escrito, os mais variados erros de Português. Há doutores e pós-doutores em História, Economia, Filosofia, Psicologia, Antropologia etc., que não o apreenderam a contento: redatam consoante as fórmulas em voga, sem estilo próprio; desconhecem as segundas pessoas, a mesóclise, os pronomes contraídos e as preposições corretas; incorrem na sintaxe do inglês e do francês; usam anglicismos e galicismos (provavelmente mal sabem o que é tudo isto); erram preposições, colocação pronominal, pronomes; ignoram o sentido lídimo de palavras; suprimem as partículas dos verbos transitivos indiretos e de locuções; empregam metáforas tolas (por ignorância dos vocábulos que aplicar em sentido próprio ou por afetação[1]); constroem com deselegância; erram a crase ou engendram-lhe o uso a despropósito, por ignorância das preposições cabíveis; praticam o vício do duplo sujeito e, por isto, desconhecem o emprego dos pronomes; usam adjetivos em lugar dos advérbios de modo (sequer os sabem distinguir); traduzem mal, crêem que fazê-lo de feição corresponde a imitar fielmente o original  e, certamente, jamais leram Machado de Assis, Aloísio de Azevedo, José de Alencar, Coelho Neto nem Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco nem José Saramago. Tampouco leram memorialistas, autobiografias nem biografias.

            Não é assim com todos nem sempre; é assim geralmente com doutores da USP, da Unicamp, da UFPR e de várias outras universidades federais, em artigos, capítulos de livros e livros publicados, por editoras universitárias e não só, bem como em artigos de blogues e postagens no Facebook.

            O estudante passa quatro ou cinco anos na graduação, em que lê (se lê) textos técnicos, porém não o cânone do idioma (autores brasileiros e portugueses, notadamente os clássicos). Ao longo dos dois ou três anos seguintes, cursa o mestrado em que lê (as suas incumbências acadêmicas exigem-lhe leituras) literatura técnica, possivelmente não apenas em vernáculo; não lê o cânone do idioma. Mestre e, já agora, doutorando, a sua atividade de leitura consiste, ao longo de quatro ou mais anos, em literatura técnica, em Português, certamente em inglês e em outro idioma; não lê o cânone do vernáculo. Ao cabo do seu mestrado, ejaculou dissertação; ao fim do seu doutoramento, ejaculou tese; ao longo de ambos, publicou artigos, tudo em Português defeituoso.

            O novo doutor passou pelo menos uma década enfronhado em textos técnicos e escreveu pelo menos dois livros; ao longo destes dez anos (ou mais) escasseou-lhe disponibilidade (o que é compreensível) ou faleceu-lhe vontade e interesse (o que é culpável) ou, provavelmente, ambos, de ler Machado intensamente, Aloísio abundantemente, Saramago fartamente, e mais Alencar, Raul Pompéia, Lima Barreto, Adolfo Caminha, Júlio Ribeiro, Coelho Neto. Também há que haver lido Eça de Queiroz, com fartura, e Camilo Castelo Branco (com algum dicionário grande em mão). Privo-me de incluir Euclides da Cunha, nas duas primeiras partes de Os sertões: seria demais para quem jamais se deu ao esforço de ler sequer um livro de cada um dos anteriores, embora devesse haver lido, por inteiro, a sua terceira parte.

            O novel doutor é moço; encarna, certamente, o orgulho da sua família; envaidece-se, porventura, da precocidade do seu elevado grau; valoriza o conhecimento que hauriu nos seus minuciosos estudos e o com que acrescentou a massa do saber humano, no seu doutoramento. Malgrado tudo isto, sabe mal o seu idioma, em que redige mal: ejaculou artigos, dissertação de mestrado e tese de doutoramento inquinada dos mais variados solecismos e, aqui e ali, de estilo canhestro. Expôs aos leitores o que se nomeia de norma culta, tal como a empregam os cultos, conceito ilusório em relação a ele: ele é pseudo-culto em Língua Portuguesa; os seus textos correspondem aos de quem deveria ser culto no idioma, porém não o é.

            A redação dos nossos jovens doutores não é exemplar; não serve de modelo do idioma; não exprime, deveras, o estado do idioma tal como o praticam os que bem o sabem. Ao invés: quanto mais jovem o doutor, tanto mais é certo não se haver enfronhado na herança literária do seu idioma, escrever com alguma deselegância e, sobretudo, defeituosamente.

                     Carente de freqüentação dos bons autores do idioma, ele é forçado a redigir no meio acadêmico, sem haver, previamente, treinado a arte de escrever e sem se haver familiarizado com os que a praticaram superiormente. Finalmente, doutora-se: é doutor proficiente em dois idiomas, sem o ser, de todo, no seu; é doutor que redige e traduz mal; é doutor indouto em vernáculo, com gradações na qualidade ruim, desde a supressão das mais indispensáveis proposições e a construção imitante da fala, até o duplo sujeito e o vanilóquio prolixo.

           Há quem, dentre eles, redija relativamente bem; entretanto, de doutores, seria expectável mais qualidade; de doutores, dever-se-ia esperar correção inatacável; de doutores, deve-se exigi-la.[2]

            É fácil objetar-se que o estilo científico ou técnico difere do do beletrista, do romancista, do poeta (não me refiro à poesia e sim à prosa) e que, por isto, é errado comparar-se o incomparável; que se deve cotejar os bons escritores de textos técnicos e científicos com os seus homólogos, ruins, e não uns nem outros, com os romancistas e contistas.

            Seja. Não se trata, contudo, de os jovens doutores (em ciências humanas, exatas ou biológicas) mimetizarem o estilo dos romancistas, contistas, memorialistas, biógrafos, poetas; de exprimirem os seus conteúdos em romances, contos, memórias, poemas; de sacrificarem a descrição da fatos e a sua interpretação à imaginação própria de ficcionistas nem de exprimirem-nas em jeito de retrospectiva pessoal. Trata-se de familiarizarem-se com as formas literariamente superiores, com o idioma tal como nele redigiram os seus expoentes, cuja leitura ensine, espontaneamente, a perceber-se o que é texto dotado de beleza, clareza e destreza, qualidades que o cientista e o técnico aplicarão nos seus textos científicos e técnicos, o que, por sua vez, resultará em textos científicos e técnicos de qualidade na sua forma. Que o mestre e o doutor eduquem-se como redatores, assim como educaram-se como pesquisadores.

            A seleção de candidatos ao mestrado e ao doutorado, bem como as bancas de defesa de mestrado e de doutoramento, devem atentar também na perfeição do texto do candidato e do concluinte, à luz da sua forma e da sua correção gramatical. Se já o fazem, que assim persistam; se não o fazem, é desejável adotarem este critério, indispensável a quem escreve e a quem produz literatura correspondente aos graus acadêmicos excelsos.

       É horrível ler teses em que o doutor escreveu: “[…] ao afirmar a estrutura que O permitirá […]”. É horrível ouvir professores-doutores dizerem: “Quero agradecê-LO”. É horrível ler coisas como: “A fará” ou “Estava interessado SOBRE tal tema.”. É horrível encontrar construções doutorais como: “Lembro que era isto” (em lugar de “Lembro-me de que era isto”). É lastimável ler coisas do tipo de “Me pareceu” ou “Os amigos se encontrariam”, em lugar de “Pareceu-me” e de “Os amigos encontrar-se-iam”.

         É falacioso pretender-se que o idioma alterou-se e que a evidência disto está precisamente na redação doutoral: afinal, trata-se de doutores (e não do vulgo ignaro), que se exprimem consoante a norma culta. É diferente o autor praticar pequenas inovações, ao sabor do seu estilo, do câmbio da acepção das vozes, dos usos correntes de, por outro lado, errar por ignorância ou mal conhecimento da norma culta.

            Supõe-se que o doutor conheça, a contento, as regras do seu idioma natural e as aplique; espera-se que ele escreva e fale melhor do que o vulgo; que a sua expressão revele o estado do uso culto do idioma; que, enfim, os doutores sejam redatores à altura do seu doutorado. Porém não é assim: os fatos desmentem tais expectativas, com freqüência suficiente para justificar-lhe a generalização (ressalvadas as exceções).

            Décadas atrás, os autores e os tradutores brasileiros, os professores, os jornalistas, os estudantes e o público em geral, conheciam as regras do idioma com mais propriedade e as usavam mais do que nos últimos cerca de quarenta anos. Havia bem menos doutores do que hoje e os não-doutores redigiam com beleza e escorreição, sem os defeitos dos nossos jovens acadêmicos. É vergonhoso que o estado do idioma no Brasil seja de mudança para pior.

            Estudar a gramática é importante e usá-la é valioso, em favor da precisão e da clareza da comunicação. Na sua maioria, a nova geração doutorada cursou, no ensino ginasial, a disciplina de Língua Portuguesa, em que sofreu certamente, inculcação da sócio-lingüística, de doutrinas segundo as quais a gramática constitui-se de regras opressoras, arcaicas, lusitanas, que urge reformar e inovar. Somem-se as idéias, falaciosa, da existência do idioma brasileiro; tola, da independência lingüística brasileira: elas criaram ambiente mental justificador do envilecimento do idioma e não apenas da incorporação, legítima, de fraseologia, de vocabulário, de localismos brasileiros. Combinadas tais influências com o menor esforço (critério de todo medíocre), o resultado é o de certo desdém pela forma realmente culta do vernáculo e a aceitação do seu rebaixamento, males que os doutores não transcendem como seria de esperar da elevação dos seus estudos e do seu grau.[4]Parte superior do formulário

            Defeito grave, já grafopatia (doença de redação) endêmica, é o (cafona) duplo sujeito: “João Bodin analisou os governos do tempo do autor, embora houvesse análises diferentes das do filósofo político. O analista francês recebeu elogios.” Haja paciência para aturar tal tipo de excrescência !          A mesma frase, expurgada do defeito: “João Bodin analisou os governos do seu tempo, embora houvesse análises diferentes das suas. Ele recebeu elogios.”.

            Não é desaconselhável repetir-se diretamente o sujeito; evita-se-lhe a repetição pelos pronomes, cuja função consiste precisamente em substitui-lo. Em vez de os maus redatores valerem-se deles, empregam perífrases com que multiplicam, irracionalmente, o sujeito, em detrimento da clareza e da concisão do seu texto. Acadêmicos, jornalistas, juristas, tornarem-se exímios nesta aberração que conduz à dubiedade no texto. Baldos de tirocínio suficiente com que atinem na estupidez que é a duplicação do sujeito e de autonomia estilística com que redijam fora da fórmula de redação que ele representa, os doutores cometem-no, tal qual os piores escrevinhadores.[5]     

            Evitam a repetição do sujeito e o vício do duplo sujeito os pronomes ele, eles, ela, elas, o, a, os, as, te, to, ta, tos, tas, vos, vo-lo, vo-la, vo-los, vo-las, nos, no-lo, no-la, no-los, no-las, lhe, lhes, lho, lha, lhos, lhas, cujo, cuja, cujos, cujas, dele, dela, deles, delas, seu, sua, seus, suas, vosso, vossas, que existem precisamente para isto; tal é a sua função.

            O seu emprego não causa nenhuma confusão, a não ser que o texto haja sido mal redigido ao ponto de havê-la, caso em que o defeito não radica no pronome e sim na inépcia do autor. Bons redatores empregam, vantajosamente, os pronomes; maus redatores usam, desvantajosamente, o duplo sujeito e desconhecem o valor dos pronomes.

  Aceda à totalidade do texto, em PDF, por aqui:

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