A NECESSIDADE DE FALAR.

A NECESSIDADE DE FALAR.

Arthur Virmond de Lacerda Neto. Novembro de 2022.

A loquacidade é dado da natureza humana: o ser humano é falante, já monológica, já dialogicamente. Certas pessoas comprazem-se em palestrar com interlocutores com quem tratem de assuntos variegados, um tanto ao sabor da espontaneidade e da associação de ideias, ou de pontos específicos, consoante às experiências que lhes dizem respeito, às ideias de que cogitam, às pessoas de suas relações, aos sucessos de que houveram notícia. Tirante os introvertidos, os tímidos, os deprimidos, todos detemos alguma medida de loquacidade, como expressão da sociabilidade humana, suscetível de manifestar-se em determinadas ocasiões.

Se a maioria das pessoas cavaqueia, em diversas proporções, algumas necessitam de fazê-lo e até fazem-no demoradamente: tagarelam por 20, 30, 40, 50, 60 e mais minutos, ininterruptamente ou quase assim, sem consentir ou quase sem consentir em que o interlocutor intervenha. Há momentos em que homem deseja falar, ser escutado, desabafar; não deseja dialogar, senão precípua ou exclusivamente externar o quanto lhe vai n`alma: carece de ouvinte de seu monólogo, não de interlocutor em diálogo de ambos.

Semelhante espécie de loquacidade existe em homens e mulheres. Per se, ela não é errada, tampouco sempre molesta, nem será inevitavelmente desagradável o locutor manter monólogo, porquanto o ouvinte poderá interessar-se por apenas ou principalmente ouvi-lo, se a audição for-lhe por algumas forma interessante.   

Será molesta a tagarelice se o falante monopolizar o discurso e se este não interessar ao ouvinte: cacete não é inerentemente o monólogo (que não diálogo) nem o monólogo extenso (que não breve), senão o que desinteressa a quem o escuta, sejam quais forem o tema, o locutor e o ouvinte.

Tendencialmente, porém, o monólogo é suscetível de enfarar e maçar o ouvinte mais do que o diálogo, pois neste há reciprocidade, participação de ambos, em que cada qual exprime suas impressões, pensamentos, experiências, comoções, ao passo que no monólogo (que desinteresse ao ouvinte) dá-se espécie de parasitismo, em que o locutor serve-se de alguém para externar o quanto desejava comunicar e aproveita, para tal, a oportunidade de ter ouvinte.

Aparentemente qualquer pessoa é suscetível de produzir monólogos prolongados: ela tem muito que diga, abundantes pensamentos, sentimentos, impressões, reminiscências, inquietações, ansiedades, indignações, experiências, como que contidas, à espera de oportunidade de exprimirem-se, semelhantemente à barragem que contém massa de água que lhe força as paredes e irrompe de súbito, por entre fresta que se alarga: a fresta é a oportunidade em que homem encontra ouvinte, a ruptura da barragem corresponde ao fluxo monológico de quem necessitava de ouvinte, de algum ouvinte (não forçosamente  do que teve então). É humano; será errado, por inconveniente e inoportuno, à medida que ocupa o tempo, a atenção e até a disponibilidade emocional de outrem para mais da medida em que o ouvinte está disponível para escutar atenta e silentemente.

Momentos há em que homem está bem-disposto, comunicativo, bem consigo próprio e com sua vida, tem assunto e torna-se facundo: “está com a corda toda” (por analogia com a corda do relógio, que o faz funcionar demoradamente). Contudo também há momentos, ocasiões, dias, ciclos da vida, de introversão; há temperamentos introvertidos, gente naturalmente pouco propensa à comunicação; há ambientes ou circunstantes que não nos estimulam ao diálogo e até no-lo inibem; em contrapartida, há momentos, ambientes, circunstantes, ouvintes que ensejam as descargas de logorreia, o que, por sua vez, tem seu lado positivo, revelador de que o locutor sente-se bem naquele momento, naquele ambiente, em presença daquele circunstante, perante aquele ouvinte: ele está à vontade e desinibido para falar o quanto fala. Poderia não ser assim, poderia o locutor não estar facundo naquele momento, naquele ambiente, em presença daquele circunstante, perante aquele ouvinte e a propósito das matérias que lhe constituem o discurso.

Ainda que maçante, a verborragia importa em abertura de espírito do locutor para com seu ouvinte: aquele, de certa forma, escolheu a este, como tal, abriu-se-lhe, em lugar de fechar-se-lhe e calar ou escassamente falar-lhe: com outrem ter-se-ia, talvez, conservado silencioso ou pouco falante.

Dadas circunstâncias pessoais, familiares, profissionais, afetivas, especialmente emotivas, suscitarão necessidade de desabafar, de externizar-se em jeito de alívio psicológico: escutá-lo ser-lhe-á benfazejo e caridoso; tratar-se-á de escutar quem necessita de quem o escute: humanitariamente, podemos fazê-lo como gesto de bondade. A palavra que dizemos liberta-nos de nossas tensões emocionais.

Em outras situações, o ouvinte não tem pachorra, tempo, interesse, disponibilidade emocional de escutar o locutor, e sujeitá-lo, este, a seu discurso, ser-lhe-á incômodo e indesejável, pelo menos a contar de certa altura do monólogo ou de sua recorrência.

Tudo tem seus conformes e cada caso é um caso; assim como assim, é molesta a logorreia recorrente, o locutor que habitualmente sujeita outrem a tagarelices alongadas: daí ser de bom tato o locutor sempre achar-se receptivo a intervenções (e, portanto, a constituir diálogos), saber escutar e saber refrear-se: há momento em que deve saber calar-se.

Possivelmente as descargas de loquacidade acometem locutores destituídos de interlocutores habituais, com quem palestrem regularmente: solitários, separados, solteiros, viúvos, gente sem amigos. Em lugar de se exprimirem aos bocados, a pouco e pouco, em vários diálogos mais alongados ou menos, cronicamente, estão privados de companhia com quem os desenvolvam e deitam verborragia aguda, como se em 40, 50, 60, 70, 80 minutos, comunicassem em fluxo único o quanto estiveram privados de distribuir por entre vários.

Nestas situações, o locutor deseja falar, não dialogar nem ouvir: se lhe formos pacientes, se dispusermos de tempo, se a matéria interessar-nos (e ainda que nos desinteresse), é deixá-lo deitar sua verborragia, com renúncia ao diálogo. Ouvintes presenciais atentos estimulam-lhes a facúndia e há locutores quase imparáveis, que falam tanto quanto se lhes escuta, e que é de mister saber interromper, já porque o ouvinte deles fartou-se, já porque deve ir à sua vida: hemos de pôr-lhes termo à loquacidade.

Ninguém está obrigado a ser ouvinte de semelhantes tagarelices: a muitos elas enfararão e desinteressarão, casos em que os boquirrotos tornam-se cacetes, chatos, até indesejáveis. É normal homem praticar momentos de loquacidade monológica, ao mesmo tempo em que devemos exercer auto-crítica, ter tato na vida social, evitarmo-la como defeito de conversação; é mister de saber limitar o tempo do discurso, saber encerrá-lo, a fim de não maçar o ouvinte nem lhe subtrair demasiado tempo. A arte da conversação implica a consciência, do locutor, de que seu monólogo deve ser limitado no tempo, há de conter fecho (e, possivelmente, desfecho), não deve conter minúcias inúteis, que o alonguem sem o enriquecer. Diga logo o que interessa. Não queira contar tudo tintim por tintim.

Em contrapartida, há interlocutores incapazes, isto é, silenciosos, escassamente intervenientes, mais ouvintes, com quem o diálogo torna-se monótono ou quase monólogo por falta de reciprocidade, seja à conta do feitio retraído do interlocutor, seja porque passe por momento de introversão, porque o assunto não lhe interesse ou não se sinta à vontade com o locutor.

Nada disto se aplica a discursos propriamente monológicos, como a conferência, a aula expositiva, o sermão, a resposta a pergunta, certas consultas com psicólogos, tampouco a matérias “per se” volumosas, em que de facto temos muito que dizer, cuja expressão demanda tempo alargado: certas pessoas, em dados momentos, para certos ouvintes, sobre dadas matérias, têm muito que lhes digam, e é proveitoso ouvir quem nos acrescenta, enriquece, elucida, amplia-nos espiritualmente: vale a pena escutar facundos que tais. Serem os discursos atraentes ou paus depende de quem diz o que, para quem, quando e como.

Em Os Maias, de Eça de Queiroz, há descrição de facúndia alegre:

No Lawrence o jantar prolongou-se até as oito horas, com luzes; e o Alencar falou sempre. Tinha esquecido nesse dia as desilusões da vida, todos os rancores literários, estava numa via excelente; e foram histórias dos velhos tempos de Sintra, recordações da sua famosa ida a Paris, coisas picantes de mulheres, bocados da crônica íntima da Regeneração… Tudo isto com estridências de voz, e filhos isto! e rapazes aquilo! e gestos que faziam oscilar as chamas das velas, e grandes copos de Colares emborcados de um trago. Do outro lado da mesa, os dois ingleses, corretos nos seus fraques negros, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar embaraçado a que se misturava desdém, para esta desordenada exuberância de meridional. (LP&M, Porto Alegre, 2001, pág. 162).

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