Influência do cristianismo.

Extrato de “Da irritação e da loucura”, de Francisco José Broussais, segunda edição, 1839, Paris, vol. I, páginas 588 e seguintes, acerca da contribuição do cristianismo. Traduzi eu em dezembro de 2008.

“A personificação do sentimento da causa suprema [deus] e da alma, causa secundária, leva à intolerância e à cólera contra os que não pensam como nós [como os que aceitam deus e a alma]. Ela engendra a raiva e o desprezo pela sua pessoa: ela vai até a eliminá-los da classe dos homens, a apagar todo sentimento de justiça, porque se faz disto caso de consciência, pela comparação deles com os animais; ela justifica o roubo e a usurpação das suas propriedades, ao mesmo tempo em que remove todo escrúpulo quanto à sua destruição. Esta personificação põe em movimento os sentimentos e os instintos mais baixos e produz todos os males que os instintos podem produzir quando são os únicos móveis das nossas ações. A personificação de Deus e da alma não é, então, isenta de graves inconvenientes e pode ser muito prejudicial à ordem social.

Contra esta asserção tão bem demonstrada, não se deixará de levantar uma objeção que parecerá a algumas pessoas poderosíssima, peremptória, talvez, a de que o cristianismo, que é todo fundado na dupla personificação de que se trata, presidiu ao melhoramento dos costumes e a fez nascerem e a triunfarem os sentimentos de justiça, de benevolência, em uma palavra, todas as virtudes.

Para que esta objeção tivesse valor, seria necessário que o cristianismo houvesse feito tudo isto por sua força própria e que  houvesse atuado com tanto mais eficácia quanto  se houvesse tornado mais forte, mais geral e mais frequentemente o principal móvel das ações dos governos e dos particulares. Ora, a experiência demonstra precisamente o contrário, como é fácil de provar, sempre pela história.

Quando o cristianismo era nascente, fraco, perseguido, ele não podia opor a força à perseguição; ele deveu, então, empregar outros meios. Ora, estes meios foram de dois tipos:  invocou os sentimentos superiores e sobretudo os da justiça e da bondade, e foi a isto conduzido pela experiência material que tinha de todos os males que podem produzir os instintos e os sentimentos inferiores de que era vítima; em segundo lugar,  recorreu à circunspecção, à astúcia, à dissimulação, recursos que a natureza propicia igualmente ao homem para subtrair-se à força e à violência. Enquanto estas armas foram os seus principais meios de ação, enquanto ele sugeriu à inteligência que se exercesse na demonstração dos abusos da força do poder, ele foi útil à sociedade e contribuiu-lhe para com os progressos. Logo, porém, que ele investiu-se no poder, seja nos monarcas, seja nos cidadãos,  desprezou o fingimento, que custa à maioria dos homens; ele deixou-se arrebatar pelo orgulho que a pretensa elevação do seu papel lhe inspirava e do orgulho, passou à cólera, à destruição e a todos os tipos de injúrias.

O cristianismo terminou então, por destruir o bem que fez. Ora, isto se concebe facilmente, porque o bem não provinha de si próprio, ou seja, da realização das duas causas mencionadas [deus e alma], porém da inteligência e dos sentimentos de justiça, de afetividade e de bondade cujo desenvolvimento ele ocasionara. Os primeiros cristãos foram infelizes perseguidos por causa de sentimentos que ter-se-ia devido respeitar; saturados e supersaturados, portanto descontentes da dominação dos instintos e dos sentimentos inferiores, conduzidos pelos seus gostos a exercer a sua inteligência, a demonstrar os inconvenientes destes impulsos e forçados, pelo mesmo motivo, a produzir efeitos contrários nos homens, pela entrega às sugestões dos sentimentos mais distintos, entre eles a veneração, bem dirigida, só podia ter ótimos resultados, porque ela é o primeiro cimento da ordem social. A justiça devia marchar em conjunto; o orgulho achava-se forçado a rebaixar-se, a firmeza, a aplicar-se ao bem; a bondade devia secundar, maravilhosamente, todos estes esforços. Os segundos cristãos eram fortes e poderosos; o orgulho podia, entre eles, desenvolver-se, a firmeza, aplicar-se a tudo que não ao bem, a afetividade e a benevolência dirigirem-se apenas aos seus correligionários e  amigos; a cólera e a destruição deviam, ao mesmo tempo, elevar-se contra tudo o que pudesse ferir a alta estima que eles tinham de si próprios. Não houvera, então, ainda, freio ao transbordar das más paixões.

Em vão alegar-se-á que o seu legislador [Cristo] recomenda doçura, bondade, afeição, justiça  e todos os sentimentos mais vantajosos à felicidade privada e à ordem social; esta recomendação, feita em tempos de sofrimento e de pobreza, de abjeção e de humilhações sempre renascentes, era apoiada por fatos patentes. Conformar-se-lhes era uma necessidade. Estes fatos de perseguição não existindo mais, o sentimento de fraqueza fora substituído pelo seu oposto; a inteligência não tinha mais o recurso das representações reais para dirigir as ações no sentido prescrito pelo seu legislador. Não restava, então, para apoiá-lo, senão o desenvolvimento suficiente da justiça, da benevolência, da afeição como funções da fisiologia cerebral, e elas não tinham excitantes suficientes para atuarem o bastante porquanto, de que vale a lembrança de um legislador morto há muito tempo? Daí o motivo porque os cristãos não ofereceram senão uma minoria de justos em meio a uma multidão imensa de ambiciosos, de ávidos, de cruéis mesmo (a inquisição), de sensuais etc., todos pouco mais ou menos orgulhosos, e todos necessariamente hipócritas, porque o interesse da dissimulação, da astúcia, da surpresa, era o único que lhes restava para não caírem em contradição muito evidente com a posição que eles se atribuíam de intérpretes de Deus e de dispensadores de todos os bens. Mas, em suma, os que eram bons e probos no cristianismo e os que ainda o são, em nossos dias, não tinham necessidade das personificações das duas causas superiores [alma e deus] para serem-no. Outros motivos, apreendidos pela inteligência nos móveis da ordem social, teriam bastado para desenvolver e tornar reguladores do seu comportamento os sentimentos superiores que predominavam na sua organização.”

Esse post foi publicado em Broussais., Cristianismo. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário