Bela, recatada e do lar ?

BELA, RECATADA E DO LAR ?

 

Arthur Virmond de Lacerda Neto.

21.IV.2016.

 

O título da entrevista da revista Veja, relativo à mulher do vice-presidente do Brasil, e que repeti para intitular este artigo, vem suscitando animadversões no público feminino.
Não reputo criticável uma mulher parecer bela, manter recato e votar-se ao seu lar, se ela escolheu assim. A reação que a matéria provocou está no pressuposto que transmite: o da imagem da mulher que se idealiza como bonita, pudica e doméstica (em parte, talvez, para contrapor-se a Dilma Roussef, atualmente em desgraça política, duvidosamente bela, não recatada nem do lar, sentido em que a fórmula do título contém, possivelmente, mensagem sub-liminar em que se compara a provável futura primeira-dama com a presidente).

Ainda que título e conteúdo não afirmem deverem as mulheres ser belas, recatadas e do lar, e limitem-se a caracterizar dada pessoa, a combinação dos três atributos não é aleatória: exprime o etos machista, em tempos em que muitas mulheres brasileiras recusam a estética de beleza ao serviço do olhar masculino, o recato como contenção da sua sexualidade, o lar como o seu lugar por excelência.

Toda mulher deve poder optar entre parecer bela ou não, recatar-se ou não, dedicar-se ao lar ou não, com graduações ou sem elas, porém sempre com liberdade de escolha: eis o que muitas mulheres afirmam, para aderirem ao tipo recatada e doméstica, para oporem-se-lhe, para combinarem tipos antitéticos.

Ao protestarem* tal liberdade, muitas insurgem-se contra o modelo que “bela, recatada e do lar” supõe: machista, arcaico e excludente, vetor de ranço religioso (porquanto o machismo e a subalternização feminina constituem o etos típico das religiões cristãs, muçulmana e judaica), típico de décadas transactas, em que as mães, avós e bisavós das jovens foram criadas e formadas, e que estas recusam, em nome da sua autonomia de ser e de estar, diversamente da obrigação de parecer, ser e estar consoante os desejos ou os moldes com que os homens almejam plasmá-las.

Estão em causa a liberdade de as mulheres optarem por parecer, ser e estar ao seu modo, como pessoas livres e, a contrapelo, a sujeição a padrões e a valores de matriz masculina, subalternizadores da mulher e que geram assimetria entre homens e mulheres, quanto à auto-determinação de que uns e outras devem dispor nas suas relações mútuas, no destino das suas vidas, no seu papel na sociedade.

Não nego valor ao papel da mulher como companheira do seu marido e formadora dos seus filhos; tampouco a possibilidade e a importância da sua realização naquelas condições, nem a legitimidade destes papéis, se quem os exerce fá-lo por decisão própria e convicção. Nada mais frustrante para um marido do que esposa indiferente; nada mais decepcionante para um filho do que mãe negligente. Melhor: nada mais amesquinhador para uma mulher, do que viver em costumes que a reduzam ao recato e ao lar, e subtraiam-lhe, em maior ou menor medida, possibilidades outras de existência, de atuação, de realização.

Também a esposa e a mãe podem ser felizes como tal, condições (isolada ou conjuntamente) a que mulher pode se devotar, com gratificação emocional para si própria, para o seu marido e para os seus filhos, cooperando na construção de família coesa e harmoniosa.

O lar e a família certamente importam; também eles compreendem âmbitos de existência, de convivência, de papel social e de felicidade possíveis, em que a mulher pode exercer função útil, altruísta, importante na transmissão de valores e na educação da sua prole, e relevante como apoiadora e interlocutura do seu marido.

É meritório ser boa esposa (e bom marido) e boa mãe (e bom pai). Não, contudo, como única possibilidade existencial, porém como uma delas, entre outras; não por obrigação ou por ausência de alternativas, e sim por escolha.

Os costumes atuais divorciaram-se dos de antanho, em que a mulher ideal e louvável correspondia à que continha ou negava a sua sexualidade (recato) e limitava o seu horizonte existencial ao recinto doméstico e à vida de família (do lar). Vai longe o tempo das nossas avós, reprimidas na sua sexualidade, envergonhadas de exercê-la; cuja vida se limitava a servir ao marido e aos filhos, na privação de perspectivas diversas de realização pessoal, de exercício profissional, de formação intelectual e de presença social. Servas do lar, dependentes dos seus maridos, minoradas nas suas possibilidades de realização, excluídas da instrução superior e da maioria dos trabalhos extra-domésticos, viviam destinos amiúde tacanhos, realidade que, a pouco e pouco, os costumes vem revertendo: no presente, a liberdade de opção feminina já constitui dado adquirido, perante a qual a fórmula “bela, recatada e do lar” surgiu com visos de saudosismo retrógrado.

As mulheres de gerações pretéritas diferem das atuais na sujeição daquelas ao homem, à existência limitada e quase exclusivamente familiar; na liberdade, destas, de optarem por vida larga ou limitada, somente familiar ou não apenas familiar, por dependência do homem ou por companheirismo com ele.

A insurgência das mulheres visa a afirmar a sua liberdade e a sua autonomia em face das vistas masculinas, e vistas já arcaicas. Fora eu mulher, aderiria à sua insurgência; sendo homem, adiro-lhe também. Prefiro a liberdade ao invés da sujeição, seja da mulher ao homem, seja do homem à mulher.

*Protestar significa, aqui, afirmar com veêmencia.

 

 

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