A pandemia em Curitiba.

 A pandemia em Curitiba.

Arthur Virmond de Lacerda Neto.

9.IV.2020.

O insulamento profilático preconizado pelo Ministério da Saúde e imposto (em finais de março) em Curitiba originou situação inédita nesta cidade: a do vazio quase total das ruas, do silêncio, do comércio majoritariamente cerrado. De súbito, Curitiba tornou-se como houvesse sido abandonada.

É espetáculo inviso no tempo de vida dos atuais viventes. Algum raro centenário terá, em criança, experimentado a pandemia de pneumônica, também nomeada de gripe espanhola, que vitimou centenas de milhares de doentes, até em Curitiba. Um século atrás era mais intensa a vulnerabilidade humana aos gérmens: rareavam as vacinas, inexistiam antibióticos, morria-se prematuramente (era-se velho aos 50 anos). Hoje, a humanidade exerce profilaxia e terapêutica de que não dispuseram as incontáveis gerações anteriores às atuais, porém testemunhamos o quão vulneráveis ainda somos.

Quem conhece Curitiba de 2020 e coteja-lhe o aspecto atual com o que foi o seu nos anos 1980 nota-lhe acréscimo de população, construções, veículos, movimento nas ruas e mais se pasma com o deserto ocasionado pela profilaxia atual: nos idos de 1980, Curitiba era menor, comparativamente pacata, sua população quase toda autóctone, o trânsito automobilístico muito menos intenso, e ágil; a segurança de pessoas e propriedades, real, sua gente mais sisuda. Se promovida há cinco décadas, a reclusão teria impressionado muito menos do que hoje: o contraste entre a atividade e sua ausência teria sido menor.

Quanto mais retrocedemos no tempo, tanto mais circunscrita era a agitação urbana em Curitiba: até meados do século XX limitava-se às ruas 15 de novembro, Marechal Deodoro, Marechal Floriano, Barão do Rio Branco, Riachuelo, Comendador Araújo e respectivas adjacências. A principal rua era a 15 de novembro, ainda viável por automóveis e que sediava o comércio elegante e caro; no século XIX, mais importante era a da Liberdade, atualmente Barão do Rio Branco, sede dos poderes executivo e legislativo. Rivalizava com a rua 15 de novembro.

O Mercado Municipal situava-se exatamente onde em 1916 foi inaugurado o paço municipal (na praça Generoso Marques), vizinho do antigo paço provincial (na rua 15 de novembro, canto da rua Riachuelo). Também eram movimentados o largo da Ordem, a praça Tiradentes, a rua Fechada (atual José Bonifácio).

Na região central concentravam-se o movimento mercantil, os serviços, as repartições públicas. Chamavam-na de “cidade” nos oitocentos, por diferença com os bairros. Circulava gente a pé e montada, e carros de tração animal, dentre os quais as célebres carroças com que agricultores das vizinhanças da cidade traziam seus produtos para venda e de que as derradeiras desapareceram nos anos de 1980, quando era corriqueiro o transeunte atravessar as ruas descuidadamente, com o desaviso de quem não julgava imperioso averiguar, sempre, se algum automóvel se aproximava.

Em décadas transactas, as vendas fechavam para almoço e reabriam às 13 h ou pouco mais do que isto; encerravam-se novamente às 18 h. Havia três emissoras televisivas, correspondentes aos canais 4, 6 e 12; suas programações terminavam às 22 h, quando o pessoal das respectivas instalações desligava todos os aparelhos e ia-se embora. Causou surpresa o prolongamento das emissões até a meia-noite: “Quem é que vai assistir até esta hora ?!” exclamavam os curitibanos.

Décadas atrás Curitiba era bonita, com suas copiosas vivendas de estilos variados, com jardins e muros baixos, quase simbólicos e jamais defensivos: perigo não havia. Abundavam casas de madeira, casarões e eram inúmeros os palacetes, de que remanescem raríssimos; passava-se frio na maioria deles. O meio humano era exíguo, as pessoas conheciam-se entre si e já eram tradicionais a frieza e a introversão dos famigerados curitibocas.

Com o volver dos tempos e graças à evolução do etos, avolumaram-se liberdades: das mulheres em relação a seus maridos e em geral; crescentes liberdades de escolha profissional, conjugal, de ser e estar, com proporcional declínio da preocupação com a vigilância alheia. “Que é que os outros vão dizer ? Que é que vão pensar ?” eram formas de auto-censura entranhadas nos costumes de muitos curitibanos, cientes da vigência de “sólidos princípios morais e éticos”, chavão equivalente a restrições, proibições,  tabus e influência da religião nas mentalidades e costumes. Após haver sido foco de intenso livre-pensamento, anti-clericalismo e ateísmo, em que vingaram positivistas, neo-pitagóricos e maçons de 1895 a 1930, Curitiba saiu da vanguarda do pensamento humanista e depressa (nas governações de Caetano Munhoz da Rocha e Getúlio Vargas) tornou-se meio intensamente católico. Abundante onomástica grega testemunha o período helenista: Apolo, Temístocles, Homero, Arquimedes, Ceres, Aristides, Epaminondas e outros, foram prenomes correntes na geração de filhos carolas.

Houve quem ironizasse a atual reclusão forçada em Curitiba: ele pouco afetou os curitibanos, já afeitos, com sua índole esquiva e macambúzia, a entrosarem-se menos e a negarem diálogo com estranhos (“Curitibano não fala com estranhos” é descrição de fato e, aqui, prescrição de comportamento), diferentemente dos brasileiros, em regra comunicativos e hospitaleiros. Em Curitiba o distanciamento social existe espontaneamente e suscitou o neologismo “curitiboca” para identificar-lhe os praticantes. “Já foi pior”, proclamam alguns com alívio ou para indiretamente mitigarem a frieza em cuja censura reconhecem razão, embora rarissimamente qualquer curitibano pratique o menor esforço para tornar o ambiente acolhedor e simpático. Ele melhorou graças aos forâneos que, no entanto, entrosam-se à custo com os autóctones que, por sua vez, invocam a cediça e hipócrita desculpa: “Há exceções”, como se elas fizessem alguma diferença.

O temperamento dos povos, sua escala de valores e desvalores, seus preconceitos e seu comportamento plasmam-se ao longo da história, ao sabor dos sucessos que lhes ocorrem. A reclusão profilática dos brasileiros (e não só) e dos curitibanos, possivelmente encareceu-lhes o valor da liberdade, graças às frustrações por que passamos; desejavelmente despertou o sentimento de dever de cada um para com todos, de responsabilidade de todos para com todos, na medida em que cada pessoa pode ser vetor do vírus e sua potencial vítima. São lições construtivas, notadamente a segunda: em sociedade afeita à afirmação de direitos na forma de exigências do indivíduo a que o Estado ou os demais devem satisfazer, é virtuosa a ênfase no dever, em forma de contribuição pessoal para o esforço comum.

Doutrina educadora, o Positivismo de Augusto Comte encarece os deveres, não como imposições opressivas e liberticidas do Estado ou da opinião pública sobre as pessoas, senão como contribuições úteis para o melhoramento do estado de coisas e retribuição individual pela cultura de que todos somos beneficiários, herdeiros e transmissores. A povos educados com sentido de dever cívico não urgem imposições legislativas nem cominações legais para se lhes obter dados comportamentos: as pessoas sabem como proceder, em favor próprio e dos demais. O senso de dever social corresponde a cada um zelar por si com os demais e não sem eles, a despeito deles ou até contra eles. O dever implica solidariedade. Temos direito à nossa saúde e o dever de protegermos a dos demais nos âmbitos da família, da pátria e da humanidade.

A pandemia de pneumônica não deixou memória que se perpetuasse entre curitibanos até ao presente: já lá vão quatro gerações e mais de século, os mortos esqueceram-se e na literatura há uma única manifestação, e tardia[1]. A do coronavírus deixará reminiscências por algum tempo. Oxalá também nos suscite a consciência de nos sabermos membros uns dos outros e, por alguma forma, responsáveis todos por todos; o enaltecimento pela dedicação sobre-humana de médicos e enfermeiros, que arduamente e até com sacrifício da própria vida, desvelaram-se por seus pacientes; a ênfase no senso de solidariedade e, com ele, o de dever que, no caso, é pessoal, familiar e cívico. Finalmente, consternação pelas milhares de mortes e empatia por quantos sofrem por situação que ninguém escolheu.

Insulados resistimos, em conjunto combatemos; dependemos uns dos outros e todos formamos a humanidade: que sejam estas, para Curitiba e restante mundo, as lições desta pandemia que, como todas, é passageira. Dias melhores vir-nos-ão.

[1] O mez da grippe, de Valêncio Xavier.

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