Cura-“gay” reposta no Brasil.

   Cura-“gay” reposta no Brasil.

1973 – A Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da lista de transtornos mentais.
1975 – A Associação Americana de Psicologia adotou a mesma posição, orientando os profissionais a não mais patologizarem a homossexualidade de seus pacientes.
1985 – O Conselho Federal de Psicologia brasileiro, antes mesmo da OMS, adotou o entendimento de que homossexualidade não é doença.
1990: A Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou homossexualidade da lista de doenças.
2017: um juiz de Brasília determinou que o Conselho Federal de Psicologia abstenha-se de interpretar a sua resolução de número 1, de 1999 (proibidora das terapias de (re) orientação sexual) de modo que impeça os psicólogos de dispensarem atendimento profissional, destinada à (re) orientação sexual, ou seja, a ordem judicial, na prática, autorizou as terapias de re-orientação sexual.

O juiz interpretou a resolução do Conselho Federal de Psicologia, no sentido de “não privar o psicólogo” de estudar ou de atender a quem o procure, voluntariamente, “em busca de orientação acerca da sua sexualidade”. Ora, sempre foi possível procurarem-se os psicólogos, voluntariamente, em busca de orientação acerca da sexualidade, sentido em que a liminar, teoricamente, nada inovou em relação à disponibilidade profissional dos psicólogos.

A resolução em causa, dispõe:

“Art. 3º – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.”

A decisão não revogou tal artigo, não considerou patológica a homossexualidade, não autorizou os psicólogos a proporem tratamento e cura das homossexualidades, porém interpretou tais dizeres no sentido de “não privar” os psicólogos de atenderem a quem, voluntariamente, os procure, em busca de “(re) orientação acerca da sua sexualidade.”.

Seria ingenuidade pensar-se que, nestes termos, a liminar limitou-se a permitir que os psicólogos atendam a pacientes necessitados de orientação sexual. Ora, jamais a resolução interpretada privou-os desta possibilidade. Se assim é, então por que Rosângela Justino, psicóloga cristã, punida pelo Conselho de Psicologia por oferecer a cura da homossexualidade, propôs a ação que propôs ? Não foi para que o juiz, na sua hermenêutica, declarasse o óbvio. Ainda que ele declarasse o óbvio e ainda que a liminar mantenha intacto, na sua forma, o parágrafo do artigo terceiro (segundo o qual os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento da homossexualidade), ela o descaracterizou no seu fundo: mantém-se a vedação de tratamento da homossexualidade; afirma-se, contudo, a possibilidade da prestação de serviços de atendimento de orientação ou reorientação.

“Orientação” e “reorientação” aqui, são eufemismos que dissimulam o que, coloquialmente, se designa pela malfadada locução “cura-gay”. Ainda que o juiz não visasse especificamente a tal resultado, é a ele que, plausivelmente, visava a autora da ação e é nele que redundará a aplicação prática da decisão.

Tal decisão deu-se, até aqui, por liminar (decisão passível de cancelamento) e após a oitiva do Conselho Federal de Psicologia; a decisão final do processo (seja qual for) é suscetível de recurso para o tribunal de justiça. Ela permite que os psicólogos pratiquem terapias de “reorientação” sexual, ou seja, de “conversão” do homossexual em heterossexual.

A liminar encorajará dados psicólogos a atenderem pacientes egodistônicos (insatisfeitos com a sua sexualidade) que, por sua vez, existem como resultado do preconceito ambiente que a própria liminar, indiretamente, fomenta: há pessoas insatisfeitas com a sua homossexualidade porque há preconceito (cuja erradicação vem se fazendo a pouco e pouco, pelo mundo afora); haverá mais preconceito também graças aos efeitos práticos desta liminar.

Na prática, a liminar estimulará a que pais preconceituosos, a que gente desinformada, a fiéis das religiões que se julgam em pecado de homossexualidade, procurem terapias de “reorientação”, sabidamente inúteis, contrapoducentes e deletérias. São inúteis pois homossexualidade não se “reverte”; não há ex-“gay”. Contrapoducentes pois induzem a sofrimentos. Deletérias pois corroboram a homofobia.

Por fim, a liminar serve aos interesses das seitas evangélicas, tão insistentes em verberar a homossexualidade como pecaminosa. Elas exploram o sofrimento dos seus fiéis e lucram, financeiramente, com ele. A liminar propicia-lhes novo argumento em prol da condenação da homossexualidade e, com isto, no sentido do sofrimento dos seus fiéis homossexuais, o que, por sua vez, redunda-lhes no enriquecimento financeiro. A homofobia religiosa é lucrativa; as igrejas evangélicas grassam, no Brasil, enormemente e enriquecem, às custas, também, da ignorância do seu público.

Cria-se o problema para se lhe oferecer, aos “problemáticos”, a solução. Não se criasse o problema e não haveria o que solucionar.

Sem revogar nem negar vigência ao artigo terceiro da resolução, a liminar inovou com hermenêutica, com circunlóquios, com jogos de palavras. O artigo da resolução, explícito, foi interpretado pelo juiz; sê-lo-á, também, pela autora da ação: o texto diz A; segundo o juiz, diz B; a autora usará B para justificar C, em que C corresponde,na prática, à cura-“gay”. O pedido da autora, que o juiz deferiu, é perceptivelmente capcioso; ela usou o Poder Judiciário para criar a possibilidade jurídica de, por via oblíqua, legitimar o que não se chamou, na ação, de cura, porém de (re) orientação: a semântica é secundária; foi primacial obter a legitimação do que, na prática, resultará em esforços por “corrigir” a homossexualidade dos pacientes, fortalecer a homofobia como por incrementar a neurose dos milhares de homossexuais neurotizados pelo cristianismo, mormente pelas seitas neo-pentecostais (com exceções).

Outros pedidos da autora da ação mereceram indeferimento. Que pedidos eram ? Que mais ela pretendeu e o juiz negou-lhe ?

Uma das autoras da ação em que se deu a liminar é evangélica e psicóloga, o que é significativo. Tratou-se, já, da terceira ação deste tipo. Dias atrás, o banco Santander encerrou (precipitadamente) exposição em que grupos (com alarme desnecessário) vislumbraram, com exagero, inexistentes incitamentos à pedofilia e à zoofilia. Também dias atrás, a PUC Pr cancelou, em Londrina, evento relativo ao meio lgbt (estava no seu direito fazê-lo. Entre exercê-lo e não o exercer, optou pela primeira alternativa). A Universidade Presbiteriana Mackenzie oficiou ao banco Santander, em antagonismo à exposição.

São sinais dos tempos; sinais de reação conservadora e retrógrada, dos meios religiosos (certamente, com a aprovação ou, no mínimo, complacência dos setores políticos a eles afins), como pressão tendente a coibir a liberdade artística (foi o caso da exposição do banco Santander), a re-instaurar-se a homossexualidade como patologia (se não teoricamente, porém, sim, na prática) e a contrariar o esforço de décadas e de gerações, por erradicar-se a homofobia, preconceito responsável por sofrimentos desnecessários e inúteis de que padeceram e ainda padecem incontáveis pessoas. Pelas amostras, prosseguirão, muitos, a padecer-lhes.

Em tempo: escusa de ser-se homossexual para contrariar-se a homofobia. Recusá-la é questão de informação, de esclarecimento, de humanidade; aceitá-la, praticá-la e fomentá-la são produtos da ignorância, do machismo e, comumente, máxime no Brasil, da pregação religiosa.

Em tempo número 2: a Gazeta do Povo, de Curitiba, visivelmente retrógrada.

O texto da liminar (ata da audiência): aqui.

Texto de entrevista de Rozângela Justino (autora da ação), em que advoga, explicitamente que 1) ninguém é homossexual, porém está homossexual; 2) que a homossexualidade é reversível; 3) que o seu atendimento não se destina a promover a auto-aceitação dos seus pacientes homossexuais, senão a reorientação da sua homossexualidade, ou seja, nesta capítulo ela pratica, e pratica exclusivamente, a trivialmente nominada “cura-gay”. Leia-lhe a entrevista aqui.

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