A degradação da língua portuguesa
2004
É fato observável diariamente que a forma falada do português no Brasil vem sofrendo um declínio crescente em sua qualidade. A um vocabulário dramaticamente pobre, somam-se a perda dos plurais, da preposição “de”, da terminação “mente” nos advérbios de modo, a ausência de concordância de gênero e modo, o desuso dos acentos e dos sinais gráficos, notadamente as vírgulas, a proliferação dos modismos e das gírias, a incapacidade, mesmo de estudantes universitários, de redigirem corretamente, a introdução da sintaxe do idioma inglês (como a predominância equivocada do advérbio “para” e o gerúndio após o infinitivo).
Nada disto se verifica em Portugal, cujo linguajar apresenta diferenças vocabulares, de que o viajante brasileiro facilmente se apercebe e exagera com freqüência, a exemplo de “peão” por “pedestre”, “bica” por “cafezinho”, “guarda-redes” por “goleiro”.
Brasileirismos de um lado, lusitanismos de outro, a existência de uns e de outros indica apenas a de termos que se desenvolveram em lugares geográficos específicos, no âmbito do idioma comum aos dois países. Cuidam-se de localismos incapazes de caracterizar uma língua “brasileira”, em contraste com o “português de Portugal”, da mesma forma como os do Rio Grande do Sul ou da Bahia não autorizam cogitar-se de um idioma gaúcho nem de um baiano.
Idiomas distintos são, por exemplo, o português face ao russo e este perante o chinês, jamais o português empregado entre nós defronte ao vigente em Portugal: qualquer brasileiro percebe José Saramago e qualquer português entende as telenovelas brasileiras.
Lá e cá, o idioma consiste precisamente no mesmo, com distinções suaves de vocabulário e de sintaxe, e mais agudas de pronúncia, que encarnam meras variantes do uso de uma só língua.
Entre estas variações há, porém, uma diferença radical, na verdade a única: a qualidade com que se emprega o idioma aquém e além-mar. Enquanto o português médio, inclusivamente as crianças, sabe a língua e empenha-se por empregá-la corretamente, no Brasil passa-se de regra o inverso: não correspondendo entre nós o idioma a um valor cultural, prevalecem face a ele o descaso e o desleixo, e impera a lei do menor esforço.
Não se diga que nisto exatamente radica a nossa peculiaridade idiomática: as gírias, os modismos, os estrangeirismos, a tolerância dos mais crassos erros, a negligência gramatical, representam formas de um povo inferiorizar-se face a si próprio e perante o estrangeiro, e não de adquirir qualidades com que afirme o seu valor.
Inferiorizamo-nos face a nós próprios, porquanto em décadas anteriores falou-se no Brasil com uma qualidade da qual decaímos; perante o estrangeiro, pois, cotejado o desempenho lingüístico do brasileiro médio com o do português em geral, o resultado evidentemente desfavorece-nos.
Que nos falta aos brasileiros em matéria de idioma? As convicções de encarnar ele um bem cultural pelo qual é preciso zelar, a de que sabê-lo a sério representa uma forma de qualificação pessoal e a de que utilizá-lo competentemente é útil e vantajoso para ser-se entendido com exatidão.
Tal quadro agrava-se com a distinção especiosa entre as formas oral e escrita da língua, em que alegadamente deveria a segunda reger-se gramaticalmente, à primeira consentindo-se todas as liberdades. Representariam, a primeira, a modalidade coloquial do idioma; a segunda, a culta.
Ora, a maioria esmagadora das comunicações entre as pessoas desenvolvendo-se oralmente e não por escrito, deve-se antes saber-se falar corretamente, do que escrever-se literariamente. Há um verdadeiro contra-senso em considerar-se aceitável a desqualificação na forma por excelência de comunicação, aquela que as pessoas, sem exceção, praticam dia após dia ao longo de toda a sua vida, reputando-se, por outro lado, necessário o domínio gramatical do idioma somente ao empregamo-lo por escrito, caracterísica de algumas profissões apenas, como a advocacia, em que a inépcia lingüística evidencia-se nas gerações mais novas. Também nas mensagens eletrônicas, tão difundidas, multiplicam-se os erros, revelando a incapacidade do brasileiro médio de redigir algumas linhas com um mínimo de correção, como seria de esperar em pessoas alfabetizadas.
A associação entre forma oral e incorreção, por um lado, e entre forma escrita e correção por outro, é meramente descritiva, e não prescritiva. Ela descreve a realidade como a observamos no Brasil e não como ela poderia ou deveria apresentar-se. De constatarmos um certo estado de coisas, não se segue que nele se encontre o ideal, o desejável ou o melhor.
Ora, a falácia daqueles binômios consiste em admitir-se como prescritivo o que é apenas descritivo, em reputar-se que o que é, deve ser, atribuindo-se uma relação de inerência entre a oralidade e a má qualidade, como se por definição todo idioma fosse necessariamente mau falado, quando o desempenho dos europeus em geral, dos argentinos, dos chilenos (e de outros povos certamente) demonstra exatamente o inverso disto.
Definir o falar como mau falar equivale a coonestar a ignorância e de conseqüência mantê-la, sob a ilusão de que o estado normal da atuação idiomática de um povo é aquele em que ela se nivela por baixo, em que a ignorância assume a condição de fatalidade ou de naturalidade ao invés de consistir em um mal a combater.
De alguns anos a esta parte despontou, é fato, um certo interesse pelo aprendizado da norma culta do idioma, origem de programas televisivos, livros e artigos em diários, voltados ao seu ensino. Reconheceu o brasileiro a sua insuficiência no bem falar e no bem redigir, que procura sanar, embora fosse preferível que não tivessemos chegado a esta situação, cuja origem encontra-se: 1º) na ausência do hábito da leitura, ou seja, na inexistência de contato permanente com a utilização melhor do idioma, com aquela que destina-se naturalmente a servir de exemplo, 2º) no surgimento de uma mentalidade favorável à mediocrização do uso da língua, resultante 2º-a) da distinção equivocada, já referida, entre as formas oral e escrita do uso idomático, adotada pelos professores de português nas escolas, que assim 2º-b) desencorajam a juventude a aplicar o que estuda e a induz a enxergar no conhecimento do idioma algo vazio de sentido e de conseqüência inútil, o que por sua vez 2º-c) conduz fatalmente à ignorância do idioma, ignorância que passa a entender-se como normal e portanto aceitável.
Tal realidade agrava-se com a convicção ideológica de que toda regra lingüística representa uma forma de dominação de certas classes sobre outras e que portanto desprezá-la permite ao dominado subtrair-se a esta mesma dominação, quando na verdade, a ser verdadeira a premissa, ocorre precisamente o inverso: quanto menos capazes idiomaticamente, mais dominados serão os que já o são, pois tanto menos compreenderão os textos regidos pelas regras que desdenham. Assim converter-se-ão os dominados em dominados ignorantes e portanto, mais facilmente domináveis.
Ao desconhecimento das formas gramaticais é inversamente proporcional a compreensão dos livros em geral, fonte por excelência da cultura, a resultar em que: 1º) sofrendo dificuldades de entendimento, o leitor afasta-se da leitura e, já fracamente letrado, torna-se culturalmente limitado, 2º) para obterem leitores, alguns autores passam a rebaixar-se ao nível deles, submetendo-se à ignorância em lugar de contribuir para com a sua erradicação, 3º) certa literatura aproxima-se da fala coloquial ou mesmo a imita, para ser entendida e assegurar-se público leitor, bem assim porque certos escritores dispensam-se de um preparo mais rigoroso, pelo que 4º) a produção literária originada sob tais condições será compreendida restritamente por quantos comunguem da variante adotada pelo autor, o que por sua vez 5º) limita o âmbito de leitores ao qual ela vocaciona-se, tornando-a meramente circunstancial ao invés de universalizável.
Certa corrente no Brasil, ao enaltecer o coloquial, tacha de preconceituosos o purismo idiomático e o padrão culto da língua. Há preconceito, de fato, no entronizarem-se como aceitáveis todas as distorções, desde que de origem popular, entenda-se, desde que originárias dos que sabem menos o idioma, nivelando-o por baixo ao excluir o melhor pelo pior.
Daí: 1º) a substituição da noção de certo e de errado pela de que tudo é certo se proveniente da massa inculta, 2º) a constituição, implicitamente ao menos, de um “direito” à ignorância, 3º) a perda de um referencial comum (gramatical), em que todos os usuários do idioma compreendam-se, 4º) a formação de guetos idiomáticos correspondentes às variações específicas, no tempo e no espaço, ao uso vulgar do idioma.
Na raiz desta doutrina e da sua ampla obra de inversão axiológica e de aniquilamento da língua portuguesa, encontra-se a ideologia marxista, por inerência voltada ao popular e antipática às formas superiores da cultura, que reputa expressões dos valores da burguesia e da sua dominação social. “Durante cinqüenta anos a intelectualidade progressista martelou nos nossos ouvidos as seguintes máximas: (a) toda norma lingüística oficial é odioso instrumento de dominação política e de exclusão social; (b) os gramáticos e dicionaristas devem, portanto, limitar-se a registrar os usos lingüísticos da maioria, dizendo amén a todas as mudanças sensatas ou insensatas.
Hoje essa doutrina é ensinada em todas as escolas brasileiras, e quem quer que ouse contrariá-la se vê esmagado sob o peso de dois argumentos cientificamente irrefutáveis: (a) você é um reacionário; (b) cale a boca”.(CARVALHO, Olavo de, O imbecil coletivo II, Topbooks, 1998).
Expressão modelar de tal corrente encontra-se no opúsculo “Preconceito lingüístico”, de Marcos Bagno, que profliguei em “Bourdieu e “Preconceito lingüístico”: duas refutações”. Pedidos para o autor: arthurlacerda@onda.com.br .
Olá, senhor Lacerda. Gostaria de pedir-lhe que me permita narrar os seus artigos para o meu canal no YouTube que trata da língua portuguesa, latim e afins. Dar-lhe-ei todos os créditos e deixarei todas as fontes nas descrições dos vídeos. Caso o senhor mo permita, ficarei muitíssimo grato. Jesus abençoe-o. Bom sábado.
Bons-dias. Fica autorizado, com indicação de autoria e fonte. Saudações.