Envergonhar-se do próprio corpo é obrigatório ?! Prédica nudista. Teologia da nudez.

I)   Para os pudômanos , é obrigatório sentirmos vergonha do próprio corpo.

“Ter vergonha do seu próprio corpo é lei obrigatória para todos?”, artigo pelo qual acederá por esta ligação:

http://www.jornalolhonu.com/jornais/olhonu_n_114/polemica.html

(Jornal Olho Nu, número 114).

II)  Anedota verdadeira: o sujeito dividia apartamento com um amigo, há quase quatro anos. Na canícula, o amigo, dono da casa, passou a andar nu em casa. O sujeito revoltou-se com ele e mudou-se: era evangélico e a sua religião proibia-lhe ver a nudez alheia; falava-lhe com semblante carrancudo e desviando-lhe o olhar, quando o dono da casa estava desnudo.

Ainda bem que se foi: na própria casa, cada um anda como quer e não como os outros querem, ainda menos segundo os princípios evangélicos – o dono da casa é ateu e pouco se lhe dá o que a Bíblia manda ou deixa de mandar, diz ou deixa de dizer.

Outra: o professor falava de nudez natural. O aluno, crente, disse, em voz audível: “- Não vou ser doutrinado pelo diabo” e retirou-se da sala.

III) Sermão nudista. A fé em favor da nudez.

“Irmãos na nudez !! Irmãs na nudez!! Elevemos os nossos corações e os nossos corpos pelados aos céus e contemplemos a verdade nua com que deus derrama as suas graças sobre nós.

Se deus, Sol brilhantíssimo [heliolatria], Demiurgo infalível [Platão], Criador Onipotente [judeus], Motor Imóvel [Voltaire, se não erro], Causa Primeira [Aristóteles], pai da Humanidade [Positivista], Mão Invisível [economia de mercado], Supremo Arquiteto do Universo [maçonaria] quisesse que andassemos vestidos, teria criado as roupas para Adão e Eva. Eis que, em seis dias de afanosas invenções, criou o mundo, o sol, as estrelas, os mares, os ares, os animais, as plantas, o dia, a noite; criou muito, não criou as roupas e criara-as, se o quisera: não o quis. Deus Onipotente, Júpiter cristão, Zeus cristão, Sol do mundo, Criador do céu e da Terra, havendo podido criar as roupas, não o fez. Não as quis criar: elas não pertencem ao plano da criação, da salvação, da redenção. A nudez, sim, inclui-se no plano da criação, da salvação, da redenção. Criado nu, para ser salvo nu, por um redentor nu na cruz, sois criaturas nuas de deus nudista, ó irmãos nus, ó irmãs nuas!!! Nus e nuas, oremos!!!

Deus, nosso criador era nudista; o Paraíso, criatura, era campo de nudistas; Adão e Eva, criaturas, nus, eram nudistas, criados por um nudista e instalados em um paraíso nudista.

Por isto, irmãos nus e irmãs nuas, as praias e os campos de nudismo são realizações, santas e piedosas, pelas quais o homem aproxima-se do estado que a divindade atribuiu-lhe. Quem os freqüenta, aproxima-se de deus; quem se escandaliza da nudez, acha-se desorientado e perdido dos caminhos que levam à graça do senhor.

Os anjos estão nus: não nos revoltemos contra a obra do Senhor, como fez Lúcifer, o Diabo. Amemo-la na nudez dos nossos corpos; honremo-la sendo como os anjos, inocentes e puros no seu desnudamento. Desnudemo-nos na inocência angelical; nus, perseveremos na pureza com que deus nos abençoa.

No plano da criação, achavam-se o Homem, os animais, os vegetais, o tempo e os céus, porém não as roupas.

Irmãos nus e irmãs nuas, repudieis a lógica dos que se envergonham da obra da criação: deus não se envergonhou de criar o falo, o escroto, os pentelhos, as nádegas, o cu, as mamas, a vagina. Com que autoridade os humanos, as criaturas, envergonham-se da obra do criador? Fazê-lo é pecar contra a grandeza de deus, é aviltar a sabedoria do altíssimo, é ultrajar a obra da criação!!! Sabei disto, irmãos!!! Zelais pelos vossos sentimentos e pelas vossas equivocações !!

Os que se envergonham do pinto, da bunda, do cu, dos caralhos, dos peitos, da vagina, cometem o pecado da soberba, em que se julgam capazes de condenar a obra maravilhosissíma da criação dos vossos corpos, feitos à imagem e semelhança de deus!!!! Pretendem, tais irmãos desgarrados,  que deus, o próprio deus, varão e macho, homem e masculino, tenha pênis vergonhoso, escroto vergonhoso, nádegas vergonhosas, cu vergonhoso !!!!! Em deus tudo é belo, tudo é luz, tudo é maravilha, tudo é perfeição: são belos, luzentes, maravilhosos, perfeitos, o pinto, os pentenhos, o escroto, a bunda e o cu de deus !!!

Tremei, pecadores-soberbos- pudibundos-endemoninhados-envergonhados!!!!  A cólera de deus desabará sobre vós !!!!!  Ardereis eternamente no fogo infernal por encobrirdes as vossas partes !!!!! Morrereis mortes horrendas por vos envergonhardes do que, em vós, foi feito à imagem e semelhança do que é em deus !!!! Aprendei que o Apocalipse se vos destina!!!!

Honrai a deus nos vossos corpos, exortava s. Paulo. Amai a deus no que sois: sois a obra cardeal, principal, magna, da obra da criação. Honrai-vos de vossa anatomia, de vossas vísceras, de vosso exterior. Homens, honrai o vosso pinto flácido, o vosso pinto ereto; ejaculais longe; urinais ainda além; orgulhai-vos de vosso escroto; zelai pelos vossos caralhos. Mulheres, honrais a porta do vosso interior; regozijai-vos de vossas menstruações; congratulai-vos das vossas mamas, fonte de alimento e de vida.

Homens e mulheres, sabei que a redondez das vossas bundas simboliza a perfeição da redondez dos astros e, com isto, a redondez da brandura, da paciência, da tolerância, da compaixão, virtudes redondas porque destituídas de asperezas.

Homens, sabei que no retilíneo dos vossos “phalus erectus” deus simbolizou a perfeição das linhas retas e, com isto, a retidão do crente, do piedoso, do fiel, em face do tortuoso do ímpio, do cruel, do desleal.

Mulheres, sabei que no vosso par de tetas, deus simbolizou a duplicidade da vida e da morte, do bem e do mal, da virtude e do vício, do homem e da mulher, do antes e do depois, da criança e do velho, do rico e do pobre, do ignorante e do sábio, do crente e do ateu, do pecador e do santo.

Exponde vossas tetas, irmãs!!!! Exponde vossos falos, irmãos!!! Exponde vossas nádegas, irmãos e irmãs!!!

Ressurecto, Jesus apareceu a Pedro, quando este achava-se nu: ou Jesus queria vê-lo assim, porque era homossexual ou não o era e não lhe importava a nudez alheia. Ou, segundo pensam os brasileiros, entre homens, não faz mal que se exponha a nudez masculina. Ou Pedro não lhe fazia o tipo. Homoafetivo ou heteroafetivo, fizesse-lhe o tipo ou preferisse mulheres a homens, Cristo não se constrangeu de ver as nádegas, o escroto, o falo e o mais de Pedro.  E Pedro não se pejou de que Jesus lhe visse o falo, o escroto, as nádegas e o mais.

Jesus apareceu a Pedro, achando-se este  nu: por que os cristãos não seguem o exemplo do seu mestre ? Porque a Bíblia ordena “não verás a nudez” do teu pai, do teu não sei o quê e não sei mais quem ? Entre os dizeres do Velho Testamento e as práticas (este substantivo já se tornou cediço na boca dos pastores) de Cristo, vós,  cristãos evangélicos ou católicos ou protestantes, optais pelos primeiros e não pelas segundas ? O que vos vale mais, o exemplo de Jesus, deus e filho de deus, ou textos sem pé nem cabeça, velhos de quatro mil anos e dedicados a contextos inteiramente diversos do de Jesus ????

Na lenda de Adão e Eva, eles taparam as respectivas genitálias não para ocultarem-nas, porém para externizarem, de modo visível, a sua vergonha por haverem desobedecido à deus. Poderiam haver encoberto a cabeça, as mãos, os pés: o sentido teria sido idêntico, a saber, a de assinalar a consciência do erro por desobediência. Poderiam haver amarrado um lacinho no pescoço, usado um anel, um brinco, uma pulseira. Como, por desgraça, taparam a genitália, os cristãos fundamentalistas julgam ser necessário a civilização ocidental encobrir o pênis e o escroto, o clitóris e a vagina, as mamas. Desiludi-vos, irmãos, sensatos; desenganai-vos cristãos esclarecidos: a Bíblia fala por metáforas, não diz o que diz e diz o que não diz; dizemos nós por ela e dizemos o que queremos que ela diga e não o que deus nos disse. Nós dizemos, não nos disse deus: calou-se ele para todo o sempre, falamos nós sempre o que a nós nos convêm dizer e do que nos convêm convencer-vos, ó irmãos ouvintes!!! Eis a verdade, digo-vos eu e ela libertar-vos-á.

Adão e Eva como critério da moral e dos bons costumes? Não há coisa melhor, irmãos pecadores??? Não se vos arranjou lenda melhor, foi só o que havia, irmãos crédulos !!! Cada um se arranja com o que tem, irmãos nus !!!

E nos dez mandamentos, onde consta “Não andarás nu”?? Ou “Não verás a nudez do próximo” ?? Não há tal!! Glória a deus!!! Louvemos ao senhor, que não nos manda vestirmo-nos, não nos proíbe despirmo-nos!!! Vamos-nos todos, irmãos na nudez, à praia de nudismo, folgar, e dançar, e gozar, e bronzearmo-nos com os nossos irmãos ateus, os índios do nosso Brasil, nus sem deus, nus sem Cristo, cristãos na sua inocência, inocentes na sua nudez.

Por três anos, o profeta Isaías andou pelado. Foi nu em pelo que recebeu a inspiração de deus; foi de pinto a baloiçar, de bunda de fora que divulgou a revelação divina. Deus escolheu um nu como seu porta-voz. Deus ama os nus; para ele, eles são bem vistos e abençoados. Sejamos como Isaías, sigamos-lhe o exemplo: nus em casa, nus fora de casa, nus na rua, nus nas praças, nus nos parques, nus nos ônibus, nus a pé, nus de pé, nus sentados, nus como Zequinha das balas !!!! Nus sempre, até se nos completar o álbum e nus de álbum completo e nus até sem álbum, que todos os nus serão bem-aventurados!!!

Nus estais debaixo das vossas roupas que vos falseiam; nus sem as roupas, estareis dentro da verdade dos vossos corpos.  Lembrai-vos de que deus julga pelas verdades e não se deixa enganar pela aparência com que o Demônio vos reveste, como armadilhas que lança à fraqueza dos homens para induzi-los ao pecado da soberba, como tentação com que vos confunda e que vos leva a ocultar a obra do criador mediante a obra do pecado.

Nus, estais na obra divina; vestidos, recobri-vos do artifício; envergonhados dos vossos corpos e ocultados eles ou parte deles pelos vossos vestidos, caístes em tentação, fostes esmagados pela pata de Satanás; negastes, pelo pudor dos vossos pintos, dos vossos caralhos, das vossas bundas, dos vossos peitos, a obra do criador, a imagem e a semelhança de deus!!!!

Amai a nudez, irmãos!!!! Libertai-vos dos vossos falsos conceitos, dos vossos pudores demoníacos; resisti à tentação de Satanáz que vos confunde e que perverte a obra da criação!!! Reconhecei, irmãos, a beleza dos vossos corpos, a sabedoria da vossa anatomia; lançai para longe a vergonha com que o Demônio afasta-vos da sublimíssima obra da criação!!!  Aceitai os vossos corpos como testemunhos do poder do deus dos impossíveis!!! Sede fiéis a deus, assim como ele o é para vós!!! Despi-vos!!! Desnudai-vos!!!!  Amai a nudez !!!! Contemplai sem pejos a nudez do vosso semelhante!!!! Deixai o vosso semelhante contemplar, no vosso corpo, a imagem do criador!!

Amai-vos uns aos outros na verdade nua dos vossos corpos despidos de malícia, de soberba, de pecado, de tentações, de roupas, de cuecas, de calcinhas, de sustentadores de mamas, de fios dentais ridículos, de sungas farisaicas, de biquinis heréticos, de maiôs vergonhosos, de tapa-sexos demoníacos!!!!  Amai-vos pelas vossas almas, pelas vossas virtudes, pela vossa temperança, pela vossa fortaleza, pela vossa sabedoria, pela vossa justiça; não vos amais pelos vossos revestimentos, pelas vossas aparências!!!

Sede honestos e justos pela retidão das vossas obras e não pela vergonha dos vossos pintos e dos vossos peitos; envergonhai-vos de trair, de mentir, de falsear, de furtar, de desprezar, de discriminar e não de expor-vos como sois na glória do salvador!!!

Amai nos vossos corpos pelados a vossa família e as vossas crianças: nus em família, será no seio dela que honrareis a obra divina; será pela familiaridade com que os inocentes verão os sexos que afastareis as tentações com que o Demônio instiga a curiosidade pelo que é proibido, tapado, ocultado, calado, mentido. Sede verdadeiros, sede naturais, sede falantes acerca da origem da vida dos homens; não calai sobre ela, não vos enrubesceis acerca dela, não tergiverseis quando indagados pelos vossos rebentos: mostrai-lhes os instrumentos e os processos da obediência à ordem inexorável de crescer e multiplicar-vos!!!!

Protegei as vossas famílias e as vossas crianças: protegei-as de caírem na armadilha do pudor, no engano da vergonha. Livrai-as dos valores falsos, dos preconceitos com que o Diabo vos afasta da beleza da criação, com que ele, Satã maligno, serpente sinuosa, porco refocilante, burro de falo imenso, bode fedorento, olho do cu, perverte as crianças, incutindo-lhes, desde pequenos, a reconhecer partes obscenas e a envergonhar-se delas. Protegei o futuro das crianças da vossa família: mantende-as na brancura da santidade; repeli para longe a negrura do vestir-se em casa, de fechar a porta para banhar-se, de esquivar-se da visão bendita dos corpos nus dos seus pai, mãe e irmãos. Protegei as vossas crianças: aproximai-as de deus, ensinando-lhes a naturalidade do corpo humano, ensinando-lhes que todo o corpo, obra por inteiro da sabedoria divina, é belo, puro e admirável. Protegei-as dos pecadores que vos rodeiam e que vos assediam com a idéia para sempre maldita de que no corpo há partes vergonhosas, que crianças e adultos devem encobrir e ocultar. Livrai-as de todo o mal, livrai-as sobretudo deste, agora e antes da hora das vossas mortes. Assim, sereis cheios de graça e o senhor será convosco.

Façais dos campos de nudismo e das praias de nudismo centros das bençãos do altíssimo, em que, pela vossa nudez, sereis benditos e estareis em pureza, como Adão e Eva antes da queda. E puros conservai-vos; nus estareis, sem cobiçar a mulher do próximo, sem vos ruborizar por ver as partes do vosso semelhante, sem vos esquivar dos olhares dos homens e das mulheres, das crianças e dos velhos, dos formosos e dos desfigurados, que todos sois criaturas do mesmo deus, sois todos iguais como obra do senhor que vos ama pelos vossos méritos e não pelas marcas dos vossos trajes nem pelo preço que eles vos custaram nem pelas cuequinhas, sunguinhas, biquinizinhos e mais diminutivos com que apequenais, amesquinhais, reduzis a grandeza imensa dos templos do Espírito Santo, dos receptáculos da alma imortal que são os vossos corpos.

Aprendei, na nudez, a  virtude da humildade, a beleza dos corações; aprendei, na nudez, a desdenhar das aparências e a conhecer o espírito e o coração de quem vos rodeia. Nus, encontrareis o caminho do conhecimento do homem; vestidos, entrareis no caminho errado de julgar pelo parecer e não pelo ser.

E sereis benditos e ressucitareis nus, e nus gozareis das delícias infinitas do Céu, na companhia de deus, nosso criador e de Jesus Cristo, nosso senhor e salvador!!!!

E todos vós, reunidos aos anjos nus, em companhia do deus nudista, de Pedro pelado, de Isaías despido, e de Jesus Cristo que nos verá a todos, assim como viu a Pedro, celebraremos o triunfo sobre Satanáz, pela benção infinita da eterna libertação da vergonha do corpo!!!!!!

Nus em deus!!! Nus no Céu!!!! Nus na Terra!!! Nus, nus, nus, elevemos nossos corações aos céus!!! Nus, irmãos !!!

Amén, irmãos !”

Esta suposta prédica é da minha autoria. É satírica;  contém, no entanto, muita verdade. “Castigat ridendo mores”, dizia Juvenal ou Marcial: castigamos os costumes rindo deles.

A lição principal do “sermão” é a de que a mesma invocação de motivos teológicos, que fundamentou o pudor e a vergonha do corpo, pode, perfeitamente, legitimar a tese contrária: o mesmo deus, a mesma Bíblia, a mesma teologia que justifica a tese, permite coonestar a antítese. Imagine que o autor dele não fora eu, porém um padre ou um pastor: tudo quanto eu escrevi é perfeitamente aceitável, pelo que a nudez é, sim, justificável religiosamente, para mais de haver todos os motivos porque o seja laicamente. Se você é religioso, evangélico, católico, preste bem atenção no meu texto: concluirá que eu tenho razão.

Já passou da hora de o brasileiro deixar de ser preconceituoso em relação ao corpo, à nudez, às praias de nudismo, ao “atentado ao pudor”, ao “topless”. Mais liberdade e menos caretice.

Sermão em PDF: Sermão da nudez.docx

III) TEOLOGIA DA NUDEZ, POR UM NUDISTA.

Teologia da nudez, por um nudista.[1]

Arthur Virmond de Laceda Neto

6.XII.2014.

            Introdução

Chama-se de nudista quem pratica o nudismo, ou seja, a nudação, isolada ou socialmente. Isoladamente, é-se nudista mormente na liberdade do lar, em que se habita sozinho; é nudez social a que se pratica em presença de terceiros, os próprios familiares (no lar ou nos campos ou nas praias) ou estranhos (nos campos e praias nudistas).

Transcendendo o simples fato de estar-se descoberto, o nudismo constitui sistema ético laico e humanista, fundamentado na naturalidade do corpo, na inocência da sua exposição socialmente (perante outrem), na recusa da qualificação de partes dele como indecentes ou obscenas, na dissociação entre nudez e sexualidade, na afirmação da soberania sobre o próprio corpo como exercício da liberdade.

Também designado de gimnosofia (do grego gimnadzein, exercitar-se nu, e outra vez do grego sofia, sabedoria), o nudismo encerra a sabedoria da nudez e prescinde, inteiramente, de qualquer fundamento teológico, com o qual, aliás, antagoniza: enquanto a pudibundaria resulta, diretamente, da teologia cristã, que afirma a existência do pecado original, como pressuposto, e a vergonha do corpo, como seu corolário, o nudismo, ao contrário, sem se contrapor explicitamente à teologia (mesmo porque houve padres e pastores gimnosofistas) dispensa a idéia daquele pecado ou, pelo menos, interpreta-o em sentido não sexual, o que desarma a origem teológica do pudor.

É factível, sim, construírem-se valores, convicções, prescrições e proibições em função do ser humano, do que o beneficia e do que o prejudica, dos seus interesses individuais e coletivos. É possível a constituição de éticas antropocêntricas, apartadas, completamente, das formas religiosas tradicionais de valorar os comportamentos e inspiradas, inteiramente, na consideração autônoma do humano como centro de toda construção axiológica: eis porque a teologia da nudez, qualquer que seja, é inteiramente dispiscienda. Em seu lugar, a antropologia da nudez ou o humanismo da nudez.

Enquanto a teologia da nudez recusa o nu, a antropologia da nudez valoriza-o; enquanto aquela envilece o corpo, esta engrandece-o; enquanto a primeira justifica a vergonha do corpo, esta fundamenta a aceitação dele. Enquanto aquela provém da exegese de textos, esta resulta da análise da realidade humana.

Admitindo-se, contudo, a possibilidade de interpretações teológicas fundamentarem cosmovisões e costumes, elas são justificam a naturalidade da nudez e a negação do pudor (assim como interpretações outras militam em sentido oposto). Sim, deus repele o pudor e ama a nudez – eis interpretação possível da Bíblia.

Irreleva o que a igreja, as igrejas, alguma igreja de culto sobrenatural assere, em qualquer sentido, acerca do corpo e da sua exposição. Importa produzir valores, mentalidades e comportamentos centrados, exclusivamente, no humano e não no divino.

Dada, entretanto, a existência de teologia anti-nudez, é edificante empregar a própria teologia para demonstrar que ela possibilita a nudez.

Ao invés de se contrariar o pudor, produto da teologia, com argumentos alheios a ela, trata-se de usar a própria para desmenti-lo: filho espúrio de teologia arrevesada, criatura indesejável de criadora inepta, cabe-lhe a ela redimir-se e gerar filho bem-vindo de mãe já agora esclarecida. À teologia de antanho, pudibunda, sucede-se a nova, nudista.

Demais, na própria igreja católica, tão avessa à nudez, as interpretações cambiam: o certo de ontem é o errado de hoje e vice-versa. A ortodoxia católica é, sim, versátil e multiforme, ao invés de definitiva, ao contrário do que entende o senso-comum. Ao longo da sua história, ela variou de orientação mais de vez acerca de temas relevantes como a misoginia, o celibato dos padres, o repúdio do protestantismo, o ecumenismo. Já vai abandonando o seu conservadorismo em relação à homossexualidade e à contracepção artificial. Oxalá que cesse de amaldiçoar a nudez e passe a abençoá-la. (Demais, as variações de pensamento católico, como expressão da vontade divina, demonstram que deus nada quer em definitivo nem nada prescreveu de uma vez para sempre. Ele quer o que os seus intérpretes lhe atribuem; não nos disse ele, dizem-nos por ele. Deus é o grande mudo, mesmo porque o que ele alegadamente revelou, na Bíblia, foi-o para os destinatários diretos dela e não para a posteridade humana: a Bíblia terá tido valor de autoridade para os coevos de cada um dos seus textos e para as sociedades a que se destinou. Para qualquer outro leitor, diverso no tempo e no espaço, ela constitui literatura e nada mais. Por isto, inexiste vontade divina atual, embora houvesse existido, em momentos distintos e para gentes diversas, vontade que, alegadamente, exprimiu-se e que lhes impôs determinações. Nada na Bíblia apresenta valor de prescrição nem de obrigação atual).

Embora eu recuse qualquer revelação sobrenatural, interpretei as passagens do Gênesis, dos evangelhos e não só, usados pelos teológicos para condenar o nudismo, em sentido inverso ao deles. Os mesmos textos servem em dado sentido como no que lhe antagoniza. Com a Bíblia, prova-se e a tese e a antítese.

Deus quis a nudez.

O deus cristão talvez fosse nudista[2]; desconhecemos se o era ou não, se se vestia ou não (sabemos, contudo, que os deuses olímpicos andavam nus). Conhecemos o desnudamento dos anjos ou, quando menos, todos são figurados nus, indício de que, no céu e em presença de deus, inexistiam vexações quanto à nudez. Se deus não andava nu, ao menos, aparentemente, havia quem praticasse o nudismo na sua presença, sob consentimento seu e, quiçá, com aprazimento seu; caso contrário, os anjos andariam vestidos.

Certo é que deus criou o primeiro campo nudista e os primeiros nudistas da Humanidade, a saber, o Paraíso e Adão e Eva. Ele criou os dois primeiros humanos da história e os manteve nus.

Antes da queda, ambos viveram despidos e desnecessitados de qualquer traje: o de nudez correspondia-lhes ao estado natural, ao estado instituído pelo criador.

Deus criou o céu, a terra, a luz e as trevas, os astros, os mares, os animais, as plantas, o homem e a mulher; criou tudo quanto quis e como quis, dentro da sua onipotência e do exercício inteiramente livre da sua vontade ilimitada.

Teria produzido as roupas, se a tal correspondera a sua vontade; não o fez porque não quis. Os trajes não integraram o plano da criação, a vontade do criador, que, ao engendrar tudo quanto fez, não fez roupa nenhuma.

Mais: após a criação de Adão e Eva, não lhes ordenou, jamais, que fabricassem trajes nem que se vestissem. Recomendou-lhes que procriassem porém não que se cobrissem.

O desnudamento dos dois primeiros humanos, obra direta de deus, exprimiu-lhe o entendimento e vontade: para ele, a nudez era irrelevante, indiferente, não lhe era problemática. Deus não era pudico, não se constrangia com a nudez alheia; ao contrário, aceitava-a com naturalidade. A nudez pertence à mentalidade do criador, é obra divina, foi por ele instituída.

Adão e Eva teriam vivido sempre nus, não fora o pecado original, após o qual e em razão do qual cobriram as respectivas genitálias, o que originou a vergonha delas.

Deus criou a nudez; o homem, pecador, criou o traje; vestiu-se porque pecou.

Vestido, o homem rememora o pecado dos seus patriarcas; nu, ele rememora o estado em que deus os criou. Vestido onde esteja, o homem porta sobre si, consigo e em si o estigma da queda; nu, ele semelha aos seus patriarcas no estado em que deus os criou.

Nu, o homem pratica a santidade porque vive conforme o querer divino; vestido, ele patenteia o malfeito de Adão e Eva, a fraqueza de ambos, a malícia do Demônio. Vestido, ele assinala o erro e a conspurcação da obra divina pela fraqueza humana e pela intervenção do demônio; nu, ele evoca a obra divina e a pureza dos nossos pais primevos antes de fraquejarem e antes de sucumbirem-lhe à influência. Nus, inspiramo-nos pela pureza, pela obediência a deus, pela obra da criação sem o demônio; vestidos, memoramos a desobediência a deus, o pecado, o triunfo de Satanaz.

A nudez é bendita, evoca-nos o Paraíso e aproxima-nos de deus. O traje homenageia o êxito satânico. O homem que se despe com a convição de que a nudez foi desejada por deus e por ele instituída, é santo na sua nudez; não assim o vestido.

O pecado original não foi erótico.

Constitui dogma do cristianismo o do pecado original, passível de duas interpretações: a sexual e a desobediente.

Pela primeira, toda a descendência de Adão e Eva porta o estigma produzido por ele, a saber, a sujeição das pessoas à concupiscência; a presença, nelas, do apetite genesíaco, que se produz antes de ser contido pela razão. Por isto, se a nudez não é intrinsecamente má deve, contudo, ser geralmente proibida, porque perigosa para o nudista e para outrem[3], do que provêm dois corolários: é proibido expor-se inutilmente a perigo de pecado grave; é proibido escandalizar a outrem.

Segundo tal hermenêutica, o pecado original apresentava natureza sexual e correspondeu à cópula de Adão e Eva. Ela é falsa.

É falsa porque gratuita: o relato do Gênesis omite qualquer alusão a relações sexuais; não afirma nem insinua que Adão e Eva copularam ao comerem o fruto[4]; não associa o fruto proibido nem a árvore à sexualidade. Longe disto, deus nomina a árvore como sendo a do “conhecimento do Bem e do Mal” e não a do “conhecimento da luxúria” ou da sexualidade, da concupiscência, da carne.

Por isto, é completamente infundada qualquer relação da árvore, do fruto respectivo e do pecado original com a sexualidade. O pecado original não foi o do coito nem o do desejo sexual que porventura sentisse Adão por Eva nem vice-versa, mesmo porque, antes de o cometerem, eles achavam-se já desposados e jungidos a procriar, ou seja, a copularem; ao pecarem, deus já lhes legitimara a libido, a volúpia, o coito. Ora, o pecado não poderia corresponder ao que deus legitimara.

É errado, hermeneuticamente, atribuir ao texto o que ele não exprime textualmente, não insinua nem permite deduzir. Qualquer ilação nestas condições, falsa e gratuita, manifesta o entendimento do intérprete para além do teor do texto.     Ao invés de haver-lhe entendimento e a extração, dele, do seu sentido, há a imputação, a ele, do entendimento do leitor.

É o caso: não se averigüou haver a ação pecaminosa se constituído do coito ou do despertar da concupiscência,conforme resultasse do próprio texto, e não se averigüou nem se poderia averigüar neste sentido porque a escritura omite qualquer informação que o permitisse fazer.

Malgrado a ausência de qualquer elemento erótico, foi a sexualidade que se imputou ao pecado original, que passou a ser, falsamente, o que jamais foi. Ao invés de o exegeta encontrar no texto uma informação, imputou-lhe a sua imaginação e com isto falsificou-lhe o conteúdo.

A igreja católica recusou, permanentemente, a interpretação gratuita, falsa e popular, do pecado original como erótico, mesmo porque não poderia ser pecaminoso o ato que atendia à vontade divina, como instrumento da procriação, o apetite que leva a ele ou a sensação que dele se origina.

            O pecado original foi de desobediência.

Dos frutos das árvores do Paraíso, deus permitiu que Adão e Eva comessem todos, salvo o da árvore da ciência do bem e do mal. Havia uma permissão com exceção ou, por outra, o consentimento de ambos alimentarem-se dos frutos das árvores em geral, e a proibição de fazerem-no em relação a determinada árvore.

Eis que ambos servem-se do fruto dela, ou seja, desobedecem à deidade: praticaram o proibido, cônscios da proibição e da infração. Na desobediência consistiu o pecado original.

Após provarem o fruto proibido, conheceram a sua nudez; conhecendo-a, ocultaram-se para não serem vistos nus por deus e com folhas de figueira fizeram tapa-sexos.

Se o pecado não se relacionava com a sexualidade, por que, então as folhas encobriam a genitália, região, no homem e na mulher, destinada ao congresso sexual?

Não houve motivo identificável na escolha da genitália. Ela foi aleatória. Eles encobriram-na como símbolo da sua vergonha e do seu arrependimento pela sua desobediência e não por vergonha da genitália em si nem do erotismo.

Adão e Eva apuseram as folhas de figueira como exteriorização, perante deus, da perturbação que lhes suscitara haverem-lhe infringido a proibição e não por pejo de que ele lhes visse o pênis ou a vulva, ou seja, por pudor.

Encobriram a genitália como poderiam haver encoberto qualquer outra parte do corpo, total ou parcialmente: a cabeça, as mãos, os dedos, um dedo, mais de um dedo; as orelhas ou uma delas; o pescoço ou parte dele; o abdômen, o umbigo; os joelhos ou um deles; as pernas ou uma delas; os pés ou um deles; as nádegas; as costas, ou algumas destas partes, combinadamente. Velariam a parte eleita por meio de chapéu, solidéu, colar, pulseira, bracelete, anel, brinco, luvas, meias ou qualquer outro artifício.

Se assim fora, as populações cristãs teriam passado os últimos mil e setecentos anos envergonhados da orelha, da cabeça, da mão, do dedo, do joelho, do umbigo, do pescoço, do pé, da nádega ou de qualquer outra região corporal.

Porque o símbolo do arrependimento localizou-se na genitália, na mentalidade cristã incorporou-se a vergonha dela e a identificação de moralidade com o seu ocultamento, sem que, em si e intrinsecamente, a exposição das partes que eles ocultaram fosse vergonhosa; sem que, em si e intrinsecamente, o velamento delas fosse meritório.

Nem vergonhosa nem meritório, apenas simbólico. Logo, em si e intrinsecamente, a genitália é inocente.

Erótico ou de desobediência, o pecado, cometido pelos patriarcas, neles se esgotou: Adão e Eva foram os seus agentes e como tal sofreram a punição da expulsão do Paraíso. Deus aplicou a justiça retributiva, tão justamente aplicada pelos homens: pune-se o autor do crime e ninguém mais além dele. O pecado havendo sido cometido por aquele casal, sobre ele recaiu o castigo, que não se transmitiu a ninguém mais, vale dizer, a nenhum dos seus descendentes, seja como objetos de novas punições.

Na sua justiça plena, jamais deus teria tornado hereditária a culpa dos patriarcas da Humanidade: a descendência de Adão e Eva não cometeu o pecado original, logo não pode ser punida por ele. Se Adão e Eva encobriram as suas genitálias como símbolo do seu vexame, não faz sentido que tal símbolo se transmitisse a quem não sofreu o vexame porque não cometeu o pecado original.

Adão e Eva havendo sido expulsos do Paraíso, os seus descendentes deveriam haver sido nele instalados, o que, todavia, criaria dificuldades práticas porquanto, nascidos Caim e Abel, necessitavam de Eva para amamentá-los e dos seus pais para criá-los. Ou deus repunha a estes no Paraíso, em razão da inocência dos seus filhos, ou mantinha os quatro lá para onde expulsou aqueles: prevaleceu a segunda decisão, pela qual nenhum humano voltou a residir no Paraíso.

Inexiste responsabilidade hereditária na Bíblia, pela qual Adão e Eva, havendo formado tapa-sexos com folhas de figueira, eles devessem ser usados pelos seus descendentes. Encobrir a genitália não constituía obrigação para a sua posteridade.

Ao contrário, Ezequiel nega expressamente, em nome de deus, a transmissão genealógica das culpas, ausente na pregação de Cristo e que Agostinho de Hipona introduziu no cristianismo, ao adotá-la de Platão, por sua vez, pré-cristão e, portanto, não cristão. Assim, uma doutrina atéia (em relação ao deus cristão) ingressou no cristianismo, desnaturou-o e transformou-se em fonte de mentalidade e costumes dos cristãos.

É inaceitável uma doutrina alheia às fontes do cristianismo determinar-lhe dogmas e usos: dogmas e usos espúrios.

Cometido pelos patriarcas da humanidade, o pecado original produziu efeitos que se limitaram a eles (a expulsão do Paraíso, a vergonha da desobediência, a tanga de folhas como símbolo da vergonha) e outros, que se estenderam à sua posteridade e a Cristo (que morreu devido a ele), porém nenhum sinal visível se transmitiu a esta, como memória daquele, pelo que a vestimenta encobridora da genitália não pode ser admitida como efeito do pecado original.

Nenhum cristão deve sentir-se na necessidade de ocultar a sua genitália, de envergonhar-se dela, de reputar indecentes o falo, o escroto, as mamas, por conta do pecado de Adão e Eva. Nenhuma justificativa existe nas escrituras sagradas em favor do pudor e da pudibundaria, que não resultam de nenhuma verdade revelada nem de nenhuma sua interpretação lídima.

Apesar disto, inveterou-se, nos costumes ocidentais, o encobrimento do corpo e a vergonha da sua exposição, ao menos da genitália e das mamas; em muitos países, a exposição do corpo constituía crime ou ainda o constitui: são desdobramentos errados de hermenêutica falsa.

Com o transcorrer dos tempos e com a secularização das sociedades, decaiu do ethos da gente esclarecida a origem lendária do pudor, embora, no Brasil e na América Latina, ele se mantenha por espírito de rotina, de imitação, em face da transmissão acrítica de certos valores e de certos comportamentos, que é altura, de há muito, de abandonar inteiramente, à exemplo do que se pratica, há mais de um século, na generalidade da Europa e, entre nós, nas infelizmente raras praias de nudismo, abundantes lá.

A moral sexual laica não suprimiu o preconceito do pecado original, ao contrário: pôr-se nu em companhia dos seus semelhantes, no século 20 é, parece, ato de imoralidade incontestável, ato que não pode senão engendrar desgosto e desprezo mais profundos. Assim, o corpo e os orgãos da reprodução foram condenados a viver ocultados por motivos que não podem compreender os livre-culturistas acostumados a contemplá-los livremente, em plena luz, observava Marcelo Kienné de Mongeot[5], que percebeu a persistência dos atavismos axiológico e de costumes em relação ao pudor, mesmo em populações cujos valores libertaram-se das origens bíblicas dos seus costumes: esqueceram-se destas, porém mantiveram o sentimento da vergonha do corpo e os costumes de encobrir a genitália e as mamas (com os consectários legais da sua exposição em público), triste sinal da persistência, por mimese, de irracionalidades e de arcaísmos, ainda presentes no Brasil, em que as várias seitas protestantes avivam-nas dentre a gente mais intelectual e culturalmente tosca e, de conseqüência, crédula, impressionável e vulnerável à persuasão dos pastores.

            Pecado é o da recusa da obra divina.

Deus criou o homem à sua imagem e semelhança: no seu corpo, Adão reproduzia-lhe as formas, ou seja, deus é antropocêntrico, dotado de idênticas características anatômicas e, portanto, de pênis, escroto, pentenhos, ereção e capaz de ato sexual.[6]

Deus criou as partes sexuais no homem e na mulher, a cujo respeito disse, excelentemente, Clemente de Alexandria: Não devemos, jamais, nos envergonhar do que Deus não teve vergonha de criar[7].

De fato, ele criou tais partes; ele e não o demônio. Trata-se de partes que, como as mais dos corpos masculino e feminino, são obra divina, produto da vontade, do entendimento e da ação divinas, condição na qual não faz sentido a criatura pejar-se delas.

Fossem elas produtos diabólicos, houvessem elas sido inseridas por ação do demônio, para deslustrar a obra divina, afeá-la, desfigurá-la, seria compreensível que os humanos se pejassem de tê-las e de descobri-las. Porém não é assim. Ao contrário: por que a vergonha do que deus criou ?

Pecado de ofensa a deus é o homem ocultar, envergonhadamente, o que deus criou, como se parte da sua obra fosse vergonhosa.

Pecado de orgulho é o homem reputar vexatório o que deus criou, ou seja, na sua pequeneza, na sua insignificância de ente falível e defeituoso, julgar a obra maravilhosa da criação e a sapiência infinita do criador perfeito e infalível.

Aceitar, sem pejo, a obra do criador, na sua totalidade, o que inclui o corpo na sua inteireza, é louvar a deus e ser criatura digna da bondade infinita e da sapiência infindável de deus.

Se o diabo houvesse criado o pênis e a vagina e incutido nos homens e nas mulheres a libido para suscitar-lhes alguma gratidão ou simpatia por si e, conseqüentemente, desviá-los, em parte, ao menos, do amor de deus, então, genitália e sexualidade, obras diabólicas, mereceriam repúdio e ocultamento. O homem envergonhar-se-ia dos orgãos da tentação, da presença constante dos instrumentos com que o maligno pretenderia subtrair, em alguma medida, o homem do louvor que deve a deus.

Porém não é assim. Ao contrário: pênis e vagina, escroto e vulva, mamas, são orgãos normais, necessários, úteis, instituídos por deus para o exercício das funções normais do corpo e, sobretudo, para o cumprimento da sua ordem de multiplicar-se. Na sua sapiência, deus criou obra perfeita e emitiu mandamento exeqüível: dada a ordem de procriação, dotou os humanos dos instrumentos com que cumpri-la.

Na genitália acham-se os meios que deus criou para o homem poder obedecer-lhe. Tais meios são e só podem ser bem-vindos e benditos, jamais vergonhosos.

Se deus não sentiu vergonha de criar a genitália; se, ao contrário, dela dotou os homens para a sua utilidade e para a realização do mandamento de procriação; se o homem é teomórfico[8], então, nenhum humano deve envergonhar-se de expô-la.

Ao contrário: expô-lo equivale a patentear as formas do próprio deus, a revelar a outrem a obra divina, sem exceções. Por isto a nudez homenageia o criador; desnudar-se constitui forma de louvá-lo; os cristãos nudistas verdadeiramente amam a deus e louvam-no, na sua nudação; o nudismo doméstico, a sós e em família, o nudismo em praias e em campos corresponde a verdadeiro culto público, em que patenteamos a obra divina aos olhos próprios e alheios, ao passo que a vestimenta oculta-a, nega-a, sobrepõe à criação de deus a invenção dos homens.         Pior: envergonhar-se do corpo, especialmente de certas das suas regiões, de que outrem as veja, de que nos vejam nus; encobri-las como sendo o correto e o moral, são e só podem ser insídias com que o demônio nos confunde e nos perverte, por convencer-nos de que certo é ocultar a obra do criador e errado é expô-la, de que certo é envergonharmo-nos dela e errado é não o fazermos. Satanáz persuade-nos de que o certo é errado e vice-versa; por isso é mau cristão, é cristão em erro o que recusa a nudez; é bom cristão, é cristão livre do Demônio o que se desnuda sem pejo.

            Isaías, Miquéias e Saul nus.

Deus ordenou a Isaías que se despisse e despido e descalço ele andou por três anos, como sinal e advertência contra o Egito e a Etiópia. Para vergonha do Egito, o rei da Assíria levará nus e descalços os prisioneiros egípcios e os exilados etíopes, jovens e velhos, com as suas nádegas expostas (Isaías, 20, 2-3).

A nudez de Isaías foi ordenada por deus, como forma de advertir dois países; a nudez dos prisioneiros egípcios e os exilados etíopes foi forma de humilhá-los. Há, portanto, em Isaías, duas formas de nudez, a desejada por deus e a praticada pelos homens; pela primeira, ela serviu como símbolo de advertência, ao passo que pela segunda, funcionou como vilipêndio. A primeira, instrumento do Senhor, a segunda, dos homens.

Como instrumento do Senhor, a nudez não foi vergonhosa, senão honrosa, pois serviu aos desígnios dele; como instrumento dos homens, foi humilhante porque aplicada a prisioneiros e a exilados como expressão de humilhação.

A nudez imposta pelo vencedor ao submetido exprimiu tripúdio; a outra, ordenada pelo Senhor, exprimiu a sapiência divina.

Logo, a nudez não é intrinsecamente vergonhosa; ao contrário, pode ser excelsa. Dependerá das circunstâncias o seu valor positivo ou negativo. [9]

Miquéias (Miquéias 1,8) profetizou, nu e descalço, a ação vingadora de deus. O mensageiro divino divulgou as intenções de Jeová inteiramente despido.

No exercício da excelsa missão de atuar como porta-voz da própria divindade, ele julgou apropriado fazê-lo despido, ao invés de vestido. Longe de impróprio ou vergonhoso, o estado de nudez era digno da sua missão, tal como no caso de Isaías.

Dois profetas veiculam os propósitos do senhor, em desnudamento integral, com que se apresentam perante as gentes. Nus, exerceram a sua sublime missão; logo, a nudez não lhes era, não lhes poderia ser infamante nem censurável.

O rei Saul desnudou-se, de todo, e nu profetizou perante Samuel e assim conservou-se ao longo de todo o dia e a noite respectivos, motivo porque perguntaram se também ele era profeta (Samuel, 1,24).

Rei, não se inibiu Saul de se despir e de nu profetizar perante Samuel: expôs o seu corpo sem pudor e, despido, apresentou-se ante Samuel, igualmente fora de inibições. Igualmente sentiu-se confortável em manter-se desnudo durante o resto daquele dia e por toda a noite que se lhe seguiu.           Do seu desnudamento e dos vaticínios que expendeu resultou a cogitação acerca de se seria profeta ou não.

Conquanto rei, em nada se sentiu deslustrado com a nudação na presença de terceiro e em permanecer nu por várias horas a seguir: a nudez nada lhe importava de pejorativo. Ao contrário: rei nu, profeta nu, como se fora rei e profeta vestido, tão digno na sua nudez quão estava quando vestido. A nudez não envilece.

A nudez em Cristo.

Nada expendeu Cristo antagonicamente à nudez: não a condenou, não a recriminou, não a proibiu, não exprimiu preferência pelo estado de vestido, não desviou o seu olhar de nus. Por forma nenhuma exprimiu qualquer forma de suspeita, desagrado ou recusa da nudez.

Nenhum ensinamento nem nenhum exemplo seu justificam nenhum anti-nudismo. Ao contrário: ressurecto, ele apareceu perante Pedro, achando-se este nu, sem constrangimento para nenhum de ambos.

Dada a presença de Cristo, Pedro não se ruborizou, não se pejou, não se encobriu; Cristo não se sentiu embaraçado com a nudez dele, não lhe determinou nem pediu nem insinuou que se cobrisse. Comportaram-se ambos com indiferença em relação à nudez de Pedro, pelo que, para Cristo, a nudez de homem perante ele não continha valor negativo de obscenidade, de erotismo, de impudor.

A nudez de Pedro perante Cristo não foi indecorosa, porém indiferente: eis o exemplo do filho de deus e deus ele próprio, o de que a nudez masculina, entre homens, é irrelevante e não deve constituir motivo de pejo, da parte do nu, nem de embaraço, da parte de quem o vê.

Pejasse-se Pedro e ele haver-se-ia coberto, o que não fez. Embaraçasse a Cristo e ele teria desviado o seu olhar ou a própria presença de Pedro, o que tampouco fez. Ao contrário, apresentou-se diante de Pedro nu e nesta condição parolaram.

No evangelho de Tomás (capítulo 37), os discípulos indagaram a Jesus: “Quando você aparecer-nos-á e quando o veremos?”, ao que ele lhes ripostou: “Quando vocês se tornarem como crianças e desnudarem-se sem estar envergonhados e pegarem as vossas roupas e puserem-nas sob os vossos pés e pisarem-nas vigorosamente, poderão ver o reino de deus e não terão medo”.

Despir-se livre de pudor e calcar os trajes com vigor era a dupla condição sob a qual os cristãos contemplariam o reino de deus e Cristo ressurrecto. Não o vestir-se nem o ocultar o corpo nem especialmente a genitália, porém, ao revés, desvestir-se de todo, fora de qualquer constrangimento, e repudiar a indumentária: ausência de vergonha como sentimento e de roupa como revestimento, eis o estado moral e material em que Cristo apareceria aos seus sequazes e a estes deparar-se-ia o reino de deus.

Sem roupas e com desnudamento, Cristo e o reino dos céus. Com roupas e sem desnudamento, ausência de Cristo e afastamento do reino dos céus. Não há hesitações nem alternativas; a via é uma só, a da nudez.

A nudez natural era o pressuposto do advento do estado celestial e da convivência com Jesus: por isto, ela não apenas é bem-vinda, desejável sem mais condições nem limitações, bendita, como necessária ao bom cristão para aceder à presença de deus e de Cristo. No céu, os cristãos estarão despidos ou, ao menos, poderão está-lo. O céu é campo de nudismo de nudez opcional, senão mesmo obrigatória.

O próprio Cristo apresentou-se nu, em público, duas vezes. Não há exemplo mais persuasivo do que este, o do próprio salvador exposto em pelo, perante outrem. Se Cristo apresentou-se pelado em público, autorizou, com o seu gesto e o seu exemplo, que os cristãos imitem-no; quando menos, desautorizou, com ambos, qualquer pudor e qualquer inibição.

Inibir-se da nudez contraria o exemplo de Cristo; envergonhar-se dela nega, diretamente, a prática dele. Sentir-se à vontade com a exposição do corpo, com a nudez natural, foi a sensação de Cristo, a sua prática, o seu exemplo, a sua lição.

O pudor contraria a mensagem evangélica; a naturalidade da nudez coaduna-se com ela. O verdadeiro cristão despe-se na consciência da naturalidade e da inocência da sua nudação; o mau cristão perverte a lição de Cristo; o bom cristão reproduz, nos seus costumes e na sua vida, os dele; o mau cristão nega-os por procedimentos contrários aos dele, como no caso do nudismo.

Cristo nudista; logo, cristãos nudistas. Cristãos pudicos, logo cristãos negadores da lição de Cristo, cristãos pecadores, cristãos confundidos pelo erro e praticantes do errado.[10]

Opiniões.

Nada em nós pode ser impuro, afirmou S.Atanásio.[11]

            Não temo que esta liberdade [de nudez] propague a imoralidade. Havelock Ellis disse, com muita audácia: “Um dia, talvez, um novo reformador da moral, um grande apóstolo da pureza, aparecerá entre nós, com vergalho na mão e entrará nos nossos teatros e salas de música para purificá-los. Não é a nudez que ele expulsará; será, antes, a vestimenta! – assim opinou W.R.Inge, decano da igreja de S. Paulo, em Londres.[12]

Já o padre Sertillanges disse:“O nu, em si, é casto como a natureza; ele é santo, sendo de Deus e não cabe ocultar que o é”.[13]

Aos oitenta anos de idade, o pastor Henrique (Henri) Huchet acedeu ao pedido de Marcelo Kienné de Mongeot, de prefaciar o seu gracioso e instrutivo romance “O abade entre os nudistas”. Dentre mais, expendeu o prefaciador: “Se atendi ao desejo do meu amigo, Kienné de Mongeot, foi, antes, de tudo, como cristão; creio na palavra do Evangelho que proclama pela boca do Mestre: “Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á” (João, VIII, 32). A verdade verdadeira, a verdade toda nua deve libertar-nos, antes de tudo, da escravidão, da superstição do vestuário que se ensaiou justificar por uma interpretação arbitrária e falsa dos primeiros capítulos do Gênesis, em que se encontra narrada a criação de Adão e Eva” (p. 9).

Carlos Wojtyla, então bispo de Cracóvia, depois papa João Paulo II, em seu livro “Amor e responsabilidade”, doutrinou que “o decoro sexual não pode, de nenhuma forma, ser associado ao uso de vestuário, nem a vergonha com a ausência de roupa, a total ou parcial nudez…” [14]

  1. Quartara, em “As leis do amor livre” (Les Lois du libre amour), citado por Marcelo Kienné de Mongeot, em “A beleza e a livre cultura” (La beauté et libre-culture), escreveu: “O direito canônico dos cristãos reduz-se a uma lenta destruição da doutrina de Jesus Cristo. Abissus abissum nivocat![15]

            […] para o crente, há poucas misérias neste mundo que o perturbem tanto quanto a leitura do direito canônico da Igreja romana. Ele contém a maior ofensa a Deus, desnatura a palavra de Jesus Cristo, acabrunha com os seus desprezos a natureza criada por Deus e degrada os orgãos genitais dados por ele à mulher e ao homem para desfrutarem sãmente da vida, por um desenvolvimento físico e intelectual apropriado pelo amor, mediante o crescimento e a multiplicação.

            […]

            A história do direito canônico, das suas origens a hoje, manifesta essa regressão constante: quanto mais passa o tempo desde a morte de Jesus Cristo, tanto mais o direito canônico afasta-se dos seus mandamentos morais, divinos e jamais ultrapassados.

            […]

            No desprezo da natureza, do nu, da sã satisfação dos sentidos, a mentalidade teocrática amontoou aberração sobre aberração, destruiu o cristianismo”.[16]

 

            Pondera o médico espanhol J. Palacios: “El desnudo jamás es obsceno; puede ser o no estético, pero por si es perfectamente moral”[17]. Acrescenta: “Este daño, el de considerar la desnudez y su contemplación como un pecado, se debe al catolicismo; pero esta idea debe desterrarse en bien de la bondad, de la moral y de la belleza”.[18]

           

            Origem do gimnofobia.[19]       

                  A recusa da nudez (gimnofobia), a vergonha do corpo (pudibundaria) e o velamento da genitália (pudor), todos três afins entre si e, na verdade, sinônimos uns dos outros, em graus diversos,

inveteraram-se nos costumes ocidentais graças ao cristianismo, sem que nenhum deles provenha, originariamente, dele. Ao contrário, os cristãos primevos aceitavam a nudação; a igreja cambiou de opinião e passou a repudiar o corpo e aborrecer a nudez nos séculos segundo e terceiro, com a patrística.

Inexiste censura à nudez nos evangelhos; Cristo ressurecto apareceu perante Pedro, achando-se este nu, sem constrangimento do primeiro em ver o segundo assim nem deste em ser visto despido por aquele.

Em pelota, Cristo acha-se representado em um sarcófago do século quarto, exposto no museu de Latrão; em uma cadeira de Ravena (do século sexto); no batistério dos Arianos e no da catedral de Ravena; em um baixo-relevo na catedral de Monza (do século sétimo); em uma pintura no cemitério de Pontien (do século oitavo) e não só.[20]

Crucificado nu, nu deveria ser representado, asseria santo Ambrósio, porquanto era uso romano despir totalmente os condenados. É falsa a presença da tanga com que se tornou usual representá-lo.

Nas catacumbas cristãs havia numerosas pinturas de nus: personagens bíblicas, como Adão e Eva, Jonas, Isac, Daniel, Tobias, Cristo infante e batizado, bem assim as representações de figuras fantásticas, como os gênios, os amores e as estações do ano.

Para mais disto, os primeiros cristãos associavam a nudez à cerimônias purificadoras.        Malgrado se introduzissem os batistérios a partir de Constantino (313), até os primórdios do século 13 batizava-se por imersão e em total desnudamento, nos rios e nas fontes. Assim, João Batista fê-lo no rio Jordão; Paulo batizou Lídia, mercadora de púrpura, nas proximidades da vila de Felipes; na Inglaterra, Agostinho e Paulino batizaram em rios. Apolinário e Vitor, à beira-mar.

De Constantino por diante, batizavam-se os adultos, duas vezes por ano, na porção ocidental do império romano, na Páscoa e em Pentecostes, o que provocava aglomerações de homens e mulheres desnudos, conquanto separados por sexo. Apesar disto, Agilulfo, rei dos lombardos, e sua mulher Teodelina, foram batizados na mesma tina.

Em pintura exposta em Reims, do século 15, Clóvis, batizando, acha-se despido e acompanhado por francos, igualmente nus.

Após a imersão, ungiam-se os batizandos com óleo santo, à maneira dos atletas gregos, informa João Crisóstomo; segundo Cirilo de Jerusalém a unção recobria-lhes a totalidade do corpo, pelo que havia nudez e toque da genitália.

Na Cidade de Deus (capítulo XIV), Agostinho expõe porque as partes viris, qualificadas de nobres pelos antigos, deveriam, ao revés, ser designadas de vergonhosas: por não as dirigir a vontade, porém o instinto. Por tal lógica, o coração, o fígado, os rins, as glândulas e a maior parte dos orgãos humanos deveriam igualmente envergonhar porque da mesma forma subtraídos à ação da vontade.

Em fins do século segundo despontaram inúmeras heresias, que culpavam a matéria (o corpo sendo material) como causa de todo mal. Satúrnio, Montano, Marcião, Taciano exaltavam a virgindade; à ordem de crescer e multiplicar-se, Marcião opunha um deus bom, proibidor das relações sexuais; Nassenes, Perates, Sethiens, Maniqueu, recomendavam o celibato. Eram doutrinadores em alguma medida persuadidos pelo dualismo persa.

Embora a igreja reprimisse tais doutrinas e conquanto se executassem os seus aderentes, persistiu-lhes a moral do ódio do corpo e o desprezo por ele e, máxime, da sexualidade e da mulher, que se entranhou nos primeiros teólogos (Clemente de Alexandria, Tertuliano, Cipriano, Atanásio, Agostinho, este possivelmente o mais maléfico de todos, porque mais duradoura a influência das suas concepções, ao longo de toda a história ocidental posterior).

Alguns cristãos, por outro lado, os adamitas, enalteciam a nudez. Coeva de Agostinho, os adesos ao adamismo reuniam-se despidos, estado em que ouviam leituras, rezavam e celebravam os sacramentos.

Uma passagem de Heródoto permite desvendar a origem do pudor: “Entre os lídios, como entre quase todo o resto das nações bárbaras, é um opóbrio, mesmo para um homem, aparecer nu”.

A mesma informação exprime-a Platão, na sua República: “[…] após haver-lhes recordado que não faz muito tempo que os gregos, exatamente como a maior parte dos bárbaros, reputavam vergonhoso e risível que os homens fossem vistos nus e que no dia em que principiou a prática da nudez, no ginásio, primeiramente em Creta e depois na Lacedemônia, havia assunto para as pessoas divertidas gracejarem!… Mas, quanto ao uso, pareceu-lhes, penso, que é preferível despojar-se das suas vestimentas em todos os exercícios deste gênero, a estar completamente vestido; então, o que era ridículo, para os olhos, desapareceu sob a ação do que, pela racionalidade, mostrou-se melhor… Só os povos bárbaros acreditam que a vista de um homem nu é espetáculo vergonhoso e horrível”.

( Tradução minha, do francês: “[…] après leur avoir rappelé qu´il ne s´est pás écoulé beaucoup de temps depuis l´époque oú les Grecs, exactement comme le plus grand nombre des barbares, jugeaient honteux et risible que des hommes se fissent voir tout nus, e que le jour oú la pratique de la nudité au gymnase fut inaugurée, d´abord en Crète puis à Lacédémone, Il y avait matière pour les gens spirituels d´alors à tourner tout cela en farce!… Mais, lorqu´à l´usage, Il leur fut apparu, je pense, qu´il est préférable de se dépouiller de ses vêtements pour tous les exercices de ce genre, plutôt que d´en être complètement enveloppé, alors ce qui était risible, pour les yeux en vérité, disparut sous l´action de ce qui pour le raisonnement, s´était revele le meilleur… Il n ´y a que les peuples barbares pour croire que la vue d ´um homme nu est un spetacle honteux et affreux”, in “Tout em NU de A à Z”, p. 249, João Lucas (Jean-Luc) Bouland.)

A Lídia compreendia região da Asia Menor, na atual Turquia; por bárbaros, os gregos designavam os povos do antigo império Aquemênida, vale dizer, persa que, no período da sua máxima extensão, conglobava os atuais Turquia, Irão, Paquistão, Trácia, Macedônia, Afeganistão, Iraque, norte da Arábia Saudita, Israel, Jordânia, Líbano, Síria, Egito e Líbia.

Em suma, na Asia antiga, em geral, reprovava-se a nudez perante outrem, ao contrário da Grécia, em que não apenas não se reprochava, como, ao contrário, era ela bem-vinda e bem vista: por cerca de seiscentos anos, os atletas gregos disputavam as Olimpíadas nus (desde a décima quinta, em 716 antes da era atual, até a derradeira, em 382); também nus praticavam ginástica (vocábulo originário do grego gimnadzein, exercitar-se nu); a estatuária grega e, a seguir, greco-romana, figurava as personagens nuas; Zeus estava despido; sob Licurgo, rapazes e raparigas apresentavam-se costumeiramente despidos nas ruas de Esparta.

Duas mentalidades coexistiram, acerca da nudez: a grega e a oriental, das quais a primeira entendia o corpo e a sua exposição com naturalidade, dissociados de erotismo, de qualquer nota pejorativa e de qualquer sentimento vergonhoso. A segunda reprovava a exposição do corpo e foi ela que se inveterou no ocidente, em conseqüência da sua penentração no cristianismo que, inicialmente simpático ou ao menos indiferente à nudez, cambiou de entendimento e passou a, veementemente, detestar o corpo e com ele a sexualidade, o asseio e o desnudamento.

Maniqueu, teólogo cristão do século terceiro, combinou o dualismo persa com o cristianismo e originou a heresia do maniqueísmo, segundo a qual há dois poderes no mundo: Deus e o Diabo, a que correspondem, respectivamente, o bom e o espírito, o mau e a matéria. Nesta, inclui-se o corpo.

Malgrado reprimido pela igreja oficial, o maniqueísmo perdurou e despontou na heresia dos albigenses; mais do que isto, a sua concepção entranhou-se nos teólogos dos séculos segundo e terceiro e transmitiu-se ao cristianismo posterior.

Admitia-se, na Lídia, haver um ser supremo, o tempo eterno, de que provinham dois princípios antagônicos, em combate perpétuo e autores de componentes opostos do mundo: de Arimão, princípio do bem, provinham as almas imateriais, as forças e as energias salutares; do princípio do mal originaram-se a matéria, as trevas, os poderes maléficos e o corpo humano.

Do dualismo de princípios originou-se o estigma do corpo, o ódio da carne e dos orgãos sexuais, que se espraiou em Sippar, na Babilônia, em Assur, Nínive, Rhagés, Ectabana, Tiro e Jerusalém. Daí a dissimulação do corpo sob roupagens espessas; o horror da carne abominável; a vergonha do corpo patente nos livros sagrados respectivos.

Natural de Ur, na Caldéia, Abraão aderiu ao dualismo e à sua repulsa do corpo; no Pentateuco, notam-se ambos, como usos e mentalidade do povo de Israel.

O texto do Gênesis relata a criação do homem e da mulher, aquele à imagem e semelhança do criador. Se o homem é dotado de pênis e escroto, logo, deus é masculino e aparelhado com os mesmos orgãos.

Ao invés de glorificar-se o corpo, masculino ao menos, como imagem do divino, deu-se o oposto, mercê da interpretação maligna, dualista, da lenda de Adão e Eva, em que se identificou o pecado original com o congresso sexual entre ambos, quando a leitura atenta da Bíblia desmente-a: o pecado original não decorreu da atividade sexual deles, porém, ao contrário, primeiramente houve o pecado, a seguir, a expulsão do Paraíso e, finalmente, já expulsos, Adão e Eva copularam.

Conquanto recusada pela igreja, a interpretação que associa a queda à sexualidade perpetuou-se e difundiu-se.

No Exodo (20:26), deus ordena a Moisés: E tu não subirás ao meu altar pelos degraus, de medo de que a tua nudez seja descoberta ao subi-los, o que se confirma alhures, como, por exemplo, no capítulo 28, versículo 42, em que deus dispõe o feitio do traje dos sacrificadores: E tu far-lhes-ás calções de linho para cobrir a sua nudez, que se estenderão dos rins até a parte inferior das pernas.

Tais mandamentos explicariam, por generalização, a idéia de impudor que as populações cristãs associam à nudez da genitália e justificar-lhes-iam os costumes e mentalidade. É explicação, contudo, que a observação histórica desmente e que a teologia nega.

A teologia nega porquanto deus emitiu aquelas ordens para destinatários específicos e não para a totalidade dos seus fiéis. No primeiro caso, proibiu a ascenção por degraus – que se usassem rampas ou veículos; no segundo, os sacerdotes deveriam trajar calças curtas, como indumento ritual próprio deles, cujo uso deus não estendeu à generalidade das pessoas.

A observação histórica desmente que tais ordens suscitassem o pudor porquanto, na estatuária egípcia, o surgimento do tapa-sexo coincide com a chegada dos judeus na região do rio Nilo, cerca de 1650 anos antes da era atual. Simultaneamente, desaparecem da ornamentação dos templos e dos hipogeus a figuração do pênis, sob forma de obeliscos e de estilizações, bem assim as flores de lírio, estilização do sexo feminino.

O preconceito contra a genitália não resultou das prescrições divinas no Exodo, emitidas ao retirarem-se os judeus do Egito; ao contrário, eles já o adotavam ao lá chegarem. Deus não lhes teria ordenado práticas que eles já empregavam; o legislador, contudo, atribuiu-lhes origem divina, mesmo porque, evidentemente, inexiste revelação divina.

Inexiste deus nenhum que prescreva ou proíba seja lá o que for a seja lá quem for. São fantásticas e evidentemente fictícias e mentirosas todas as narrativas bíblicas segundo as quais a divindade comunicou-se com os humanos, prescreveu-lhes comportamentos e incutiu-lhes idéias, valores e concepções.

Cerca de cinco séculos após a partida dos judeus ressurgiu, na arte egípcia, a ornamentação sexual, sintoma, por sua vez, da duradoura persistência da influência deles.

Se o cristianismo, ao tornar-se culturalmente dominante no ocidente, formou o ethos das populações em que prevaleceu e incutiu-lhes a pudibundaria, a vergonha da exposição da genitália, a repressão acentuada da sexualidade, tais traços não lhe foram, contudo, originais, não resultaram diretamente da sua doutrina, porém ingressaram nela por contaminação do pensamento oriental, como, demais, sincrético, o seu corpo doutrinário mesclou diversos elementos asiáticos e alheios aos dois testamentos. Uma vez, todavia, persuadido o cristianismo da mentalidade pudômana, ele a manteve e a vem mantendo ao longo da sua existência; acentuou-a o jesuitismo, que, no seu combate à reforma luterana, investiu contra dois inimigos: o protestantismo e a nudez.

Pudibundos os asiáticos dualistas, tornaram-se pudibundos os cristãos dos séculos segundo e terceiro por diante; pudibundos os cristãos, os jesuítas enfatizaram-lhes a pudibundaria.

Com isto, o preconceito anti-nudez, originalmente asiático e alheio ao cristianismo, tornou-se cristão e, a seguir, especialmente jesuítico.

O ocidente cristianizado, longe de herdar a mentalidade helena, aberta ao corpo, simpática à sua naturalidade, receptiva à sexualidade como componente normal e natural do ser humano, desconhecedora do pudor, favorável à nudez e admiradora do nu belo, incorporou a mentalidade asiática, fechada ao corpo, antipática à sua naturalidade, recusadora da sexualidade, afirmadora do pudor, hostil à nudez e cega à beleza do nu.

No seu sincretismo, o cristianismo incorporou o dualismo asiático, em detrimento da mentalidade grega e, malgrado o deus cristão houvesse criado toda a matéria e o corpo humano, ao invés de louvá-las como obras divinas, o cristianismo reprovou o corpo, o seu uso, o seu asseio (ao menos em séculos anteriores) e a sua exposição. Ao fazê-lo, formou, ao longo de incontáveis gerações e de mil e setecentos anos, uma tradição cultural de repressão intensa da sexualidade, de vergonha do corpo, de repúdio da nudez. Ele esqueceu-se da sua raiz (em parte) asiática e condenou o maniqueísmo, porém afirmou-os nas mentalidades e impô-los nos costumes.

Hoje, a Europa esclarecida e secularizada abandonou, já há cerca de 120 anos, o pudor do corpo. O europeu atual não se peja do seu corpo; a sua mentalidade é grega.

Hoje, as classes brasileiras cultural e economicamente superiores vão se tornando receptivas à naturalidade do corpo, embora mantenham timidez em expô-lo. As classes baixas (intelectual e economicamente) aferram-se à gimnofobia e à pudibundaria, no seu temor de deus e na sua obediência à Bíblia.

Como dizia Augusto Comte, as pessoas são desigualmente contemporâneas, desigualdade que se acentua com as dessemelhanças de classe social e de lugar: os europeus, de mentalidade novamente grega, vivem, há gerações e décadas, a liberdade e o secularismo; as classes brasileiras elevadas aproximam-se do estado mental europeu. Enquanto isto, as classes brasileiras reles mantêm o dualismo persa e o ethos arcaico de várias gerações e décadas.

[1] Datado de 30 de abril de 2008, o militante teológico Júlio Severo publicou, no seu blogue (www.juliosevero.com), artigo homônimo, que eu desconhecia até produzir o meu, com o qual o dele antagoniza e cujo conteúdo patenteia, com veemência, a hostilidade dos religiosos mais tacanhos e reacionários à nudez natural. Ainda há, no Brasil e nos E.U.A., setores religiosos arcaicos em entendimento e costumes. São os agentes hodiernos da pudibundaria.

[2] A idéia do deus cristão nudista pertence a João (Jean) Deste, em “O nudismo” (“Le nudisme”), 1961.

[3] MONGEOT, M. K. de.1936. La nudité ou dix ans de lutte contre les prejugés que tuent., p. 50-51.

[4] Fruto, que não maçã: pomum, fruta em latim, e não pomme, maçã em francês (MONGEOT, 1931, p. 73).

[5] MONGEOT, M. K. de.1931. Beauté et libre-culture, p. 76.

[6] Note-se o celibato forçado a que se acha submetido o deus cristão. Dotado de forma masculina e, portanto, apto ao exercício de funções reprodutoras, inexiste deusa com quem copule (heterossexualmente) nem outro deus com quem o faça (homoafetivamente), malgrado, como ser onipotente, pudesse criar um ou outro, ou ambos, ou, ainda, copular com humanos. Ignora-se se ele o fez, porquanto as escrituras calam-se a respeito. É misteriosa a vida sexual de deus.

[7] MONGEOT, M. K. de. 1931. Beauté et libre-culture, p. 63.

[8] Ou seja, com forma de deus, dotado de corpo equivalente ao de deus, posto que este os criou à sua imagem e semelhança.

[9] No capítulo 32, versículo 11, Isaías ordena às mulheres que se dispam, ponham-se nuas e cinjam os seus lombos com sacos, ou seja, que se desnudem do que envergavam e substituam-no por sacos. Não lhes determina a nudez, porém a substituição dos seus indumentos.

[10] A informação de que Cristo apareceu em público, nu, duas vezes, acha-se em NADEL, H. La nudité et la morale, p. 12

[11] Citado por Marcelo Kienné de Mongeot, em Beleza e livre cultura (Beauté et libre culture), p. 77.

[12] Citado por Marcelo Kienné de Mongeot, em Beleza e livre cultura (Beauté et libre culture), p. 115.

[13] Citado pelo pastor Henrique (Henri) Huchet , no prefácio a O abade entre os nudistas (L´abbé chez les nudistes).

[14] História do Naturismo, da autoria da Federação Portuguesa de Naturismo, in Verdades que as roupas escondem, de Evandro Telles, p. 195. Nele o seu organizador, Evandro Telles, colige artigos seus e de outros autores, laicos, e um de um professor de teologia, J. C. Conninghan (“Espiritualidade, nudismo e roupa”). É livro merecedor de leitura e reflexão, bem assim Corpos nus, de Paulo Pereira da Silva.

[15] Um abismo chama outro. Salmo 42, 7 (nota de Arthur Virmond de Lacerda Neto).

[16] P. 190-194.

[17] El desnudismo, la salud y el arte, p. 10. Madri (1931?).

[18] Idem, p. 22.

[19] Para este tópico vide, de Fougerat de David de Lastours, L´homme et la lumière, Garches (França), 1946, e Morale et nudité, Paris, 1929.

[20] NADEL, H. La nudité à travers les âges. 1929, p. 24.

A “Teologia da nudez” acha-se exposta na gazeta Olho Nu, em 3 partes, respectivamente em junho, julho e agosto de 2015:

http://www.jornalolhonu.com/jornais/olhonu_n_175/reflex.html

http://www.jornalolhonu.com/jornais/olhonu_n_176/reflex.html

VI) Artigos meus, a favor do nudismo, com fotografias de nu natural, neste blogue, abaixo.

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Uma resposta para Envergonhar-se do próprio corpo é obrigatório ?! Prédica nudista. Teologia da nudez.

  1. Acassio disse:

    O texto é bastante esclarecedor. Traz a tona um ideário de liberdade plena da alma.É muito dificil desnudar-se do preconceito anti-nudez.

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