O homem solitário

                                                                                O homem solitário

                                                                                        2.VI.2005

 

Arthur Virmond de Lacerda Neto

 

            O homem solitário levava uma vida isolada e paupérrima no tocante a relações sociais: ele escassamente procurava os seus amigos, fraca ou nenhumamente mantinha vida social e rarissimamente era procurado, por quem fosse, para o que fosse e quando fosse.

            Festas de aniversário e de outros tipos, convescotes, bodas, batizados, jantares, correspondiam a eventos que, freqüentes na vida de terceiros, achavam-se ausentes da sua, que, circunscrita aos seus afazeres profissionais e  às atividades pessoais porque interessava-se e de que se ocupava, limitava-se ao ambiente humano a elas associado, sem incluir convívio com terceiros desligados de uns e outras, em uma rotina em que a sua vida de relação restringia-se ao meramente circunstancial. Convidado, acedia sempre ao convite: jamais, porém, o invitaram durante os largos anos da sua solidão que, aliás, consistia, em parte e também, precisamente nisto.

            Embora sozinho, nem sempre sentiu-se solitário: bastava-se, ao sentir-se acompanhado de si próprio. Sem ser autista, era auto-suficiente, traço que lhe recordava a descrição da mentalidade anglo-saxã, a cujo respeito lera em Camilo Desmoulins. Acostumou-se a achar-se na sua própria companhia, o que lhe evitou o sentimento de solidão até que ele lhe surgisse.

            A auto-suficiência levou-o, imediatamente, a um estado de inércia quanto ao cultivo de relações sociais e, em particular,  as dos seus amigos, de que, durante longo tempo, não necessitou e de que nenhuma falta padeceu.  Recordava-se da frase de S. Francisco de Assis: “De pouco tenho e deste pouco, pouco preciso”:  foi o seu mal, visto que, deixando de procurar a quem poderia fazê-lo, acabou, insensivelmente, por isolar-se e por ingressar em uma solidão que  havendo, de  começo, encarnado um estado de fato apenas, passou, em certo momento, a sê-lo, também, de espírito e de desconforto interior.

            Foi assim sempre, enquanto estudante e ao deixar de sê-lo: enquanto o foi, relacionou-se fácil e abundantemente  no convívio com os seus condiscípulos, o que representou-lhe uma verdadeira delícia existencial, embora não procurasse os seus amigos (exceto um único) fora do ambiente estudantil, ao contrário de muitos deles, que o faziam entre si; já ex-aluno, prosseguiu sem os procurar: a sua solidão constituiu-se como estado de fato ao perder a sua condição estudantil.

            Interrogou-se até que ponto o seu descaso por procurar os seus amigos configurava  um aspecto da sua natureza: respondeu a si próprio negando que ele lho representasse, porém admitindo que lhe equivalesse a um verdadeiro modo de vida.

            O  sentimento de solidão acometia-o por intervalos, em que, para dele refugiar-se, procurava os amigos, cuja companhia buscou ocasionalmente, conquanto vezes várias fracassadamente, o que desestimulou-o a novas tentativas o que, por sua vez, agravou-lhe o isolamento que o tornou, em larga medida, alheio ao quanto contém o convívio social: transformou-se em um excluído, para quem não houvera o que pudera haver.

            Incompreendia, a ponto de representar-lhe um verdadeiro mistério pessoal, que o angustiava, porque os outros eram procurados pelos amigos respectivos, enquanto, a ele,  ninguém o procurava, a despeito de facilmente relacionável: fora-lhe assim sempre. Suspeitou de que assim fosse devido aos traços peculiares da sua individualidade, o que sem demora excluiu como explicação, porquanto eles em nada constituíam obstáculo ao seu relacionamento com o seu semelhante; no máximo, induziam-no à inércia, o que explicava metade da sua situação, vale dizer, aquilo em que ela decorria dele, sem elucidar aquilo em que ela decorria dos outros, na medida em que todo relacionamento supõe bilateralidade.

Ter amigos equivale a ser  lembrado e procurado: era-o, de onde em onde, com uma rareza equivalente a um jamais: neste sentido, não tinha amigos e tampouco integrava nenhum círculo habitual de amigos comuns. Inexistiam-lhe companheiros, habituais e mesmo esporádicos: observava os outros em companhia recíproca e a si próprio na de ninguém, e assim transcorriam-lhe os dias, as semanas, os meses, os anos.

Descobriu-se profundamente solitário, o que julgou de todo em todo anormal e mesmo aberrante, na vida diversa,  nisto ao menos, da que concebera para si, em moço, e da do comum das pessoas. “A vida toma às vezes um rumo diferente do que se pensa”, ponderaram-lhe, certa feita, a propósito diverso, observação que  aplicou a si, a este. Enquanto o comum das pessoas usufruía de vida social, perplexava-o que ela inexistisse-lhe: o que para outrem equivalia a um aspecto da existência que natural e espontaneamente se apresentava, no caso dele representava-lhe o oposto disso. Fora teológico (era ateu), chamaria a isto de maldição diabólica.

Se os amigos nos ligam ao mundo (o que leu em um livro), e se este equivale à restante sociedade, viveu, por anos a fio, à margem e fora dela. Não correspondeu ao melhor amigo de ninguém e se devesse nomear o seu melhor amigo, nenhum nome enunciaria. Morresse, poucos disto saberiam; raros lamentar-se-iam; ninguém lhe sentiria a falta, exceto, provavelmente, uma só pessoa, que morreu.

            O círculo de conhecimentos pessoais (asseriram-lhe mais de vez) alarga-se mercê do relacionamento com  amigos que, por sua vez, propiciam  contacto com terceiros: era o que negava-se no caso dele, cujos amigos ignoravam-no e, ainda menos, criavam situações de contacto com pessoas comuns. Assistia aquele fenômeno verificar-se com os demais, na perplexidade de encarnar ele uma sua exceção, em cujos motivos era incapaz de atinar.

            Representava-lhe uma ironia existencial que, levando uma vida isolada e solitária, fora dos amigos, fosse, em contrapartida, pronunciadamente afetuoso com alguns deles e largamente sensível à amizade como fenômeno humano: mais sentiu-as e meditou sobre elas (e mesmo sobre elas escreveu), do que as viveu. Ansiava por ter amigos, ou amigo, um que fosse, que lhe preenchesse o vazio representado pela sua solidão: recordou-se, por vezes, de Diógenes Laércio, que andava pela Grécia em busca de um homem: andava ele em busca de um amigo.

            Acompanhava a lição de Ortega (no seu elogio  das virtudes da mocidade) de que  a solidão supera-se pela amizade, enquanto confiança e confidência, em um como repousar no amigo e sentir-se identificado com ele enquanto pessoa, e pelo amor correspondido:  era adepto do casamento como amizade especialmente profunda e particularmente afetuosa (aderira à opinião de André Maurois). Por ironia, conservava-se solteiro, a contragosto, o que qualificava de estado constituído e permanente de solidão, antes porque assim o sentisse do que por assim  concebê-lo racionalmente. Desejara casar-se desde os seus 19 anos, idade  na qual sentenciara que “um homem solteiro é um homem errado”, prolóquio a que se manteve fiel: fosse casado em uma boda feliz, e não seria solitário, ao menos não concebia que um casamento exitoso pudesse, por forma nenhuma, compreender nenhuma solidão. Mais avançado em idade, desinteressou-se pelo matrimônio: aspirava a ter companhia e a realizar-se afetivamente: à ausência da primeira e à frustração da segunda correspondiam-lhe, ao fim e ao cabo, a essência da sua solidão.

 

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5 respostas para O homem solitário

  1. Felipe disse:

    Muito interessante, lendo esse texto percebo que se parece bastante comigo, com apenas 20 anos, sei bem como é isto. Desde sempre tenho só um amigo ou outro, amigo que vem e vai fácil. Mas tempos atrás, descobri que tenho muitos amigos, amigos que não me deixam na mão, amigos que sempre estão perto e me dão conforto, que me enchem de histórias incríveis e me fazem ficar acordado até tarde, os meus livros.

  2. Rafael disse:

    é… com certeza esse ae sou eu… meus livros tbm me ajudam bastante.

  3. Leoncito Metódico disse:

    Sempre quis ter amigos, desde a infância, nos moldes das amizades que eu via nos personagens de desenhos animados, mas a falta de reciprocidade e a observação da maldade humana alimentada por minha mãe me podaram todas as chances de ter amigos, mas a vontade sempre esteve letárgica. hoje tenho amigos mas moram muito longe, é só nos e-mails.

  4. Luis disse:

    Uma vez experimentada essa solidão profunda, o indivíduo torna-se incapaz de livrar-se dela? O que acham?

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