Entrevista a Pedra de Toque.

Concedi entrefala ao blogue Pedra de Toque, do escritor e tradutor João Rosa de Castro, exposta em primeiro de abril de 2018. Ei-la:

ARTHUR DE LACERDA E A CIVILIZAÇÃO DESNUDA

 April 1, 2018|

Rosa Castro Autor

(Pedra de Toque): Quais são suas fontes de pesquisa criativa e produtiva? Onde vai buscar mais ideias para o seu trabalho? Vêm de outros livros e autores ou da própria vivência? O que predomina?

(Arthur de Lacerda): Parte provém de autores variados, parte provém da minha vivência: de muitas leituras e das reflexões que elas me propiciaram, formei cosmovisão e adquiri conteúdo intelectual; da minha experiência existencial, de alguma parte do que observo e do quanto vivi e vivo (nos limites, estreitos e condicionados da vida que cada um experimenta) aproveito situações humanas, geralmente verídicas, como inspiração ou motivo de análises de situações, valores, comportamentos, reações. Assim, por exemplo, artigos relativos à nudez, resultaram do exame do etos do brasileiro médio e dos seus padrões de moralidade, como produto parcial da leitura de vários autores que se dedicaram ao tema; já dois livretos (Dilema em Braga e Memórias de duas amizades), são autobiográficos. Semelhantemente, muita da minha poesia fundamenta-se em observações e experiências pessoais, de envolta com reflexões.

Com isto, na minha produção predomina o repertório de conhecimentos que acumulei e vou acumulando, mercê de ininterruptas leituras, que aproveito como materiais em que exerço tino pessoal.

(Pedra de Toque): Sabemos que você repudia as paixões e a política imediatista. Mas restou-lhe uma paixão, presente em muito de sua obra escrita impressa e digital: o positivismo de Augusto Comte. Fale um pouco dele.

(Arthur de Lacerda): O Positivismo de Comte (que não se deve confundir com o mal apelidado positivismo jurídico) correspondeu-me à descoberta intelectual da minha juventude. Com cerca de 18 anos de idade, andava à procura de doutrina que, emancipada de sobrenatural, combinasse o conhecimento científico e o antropocentrismo. O Positivismo é isento de sobrenatural (sentido em que é ateu), pauta-se pelo espírito positivo (que transcende o mero conhecimento da ciência), a que associa o humanismo, em que o humano preside aos valores, às motivações, às ações e ao sentido da vida.

Dos meus 18 anos para cá, persisti, invariavelmente, positivista, na convicção da qualidade dos seus ideais de paz, engrazamento entre as pessoas, afetividade como inspiração e racionalidade como critério de ação, conhecimento das realidades, espírito público, apreço pela alta cultura.

Existe, no Positivismo, mensagem construtiva e socialmente útil, na medida em que ele inspira sentimentos, comportamentos e políticas voltados ao melhoramento da condição de vida das pessoas, ao mesmo tempo em que dispensa qualquer sobrenatural, ou seja, voltado ao social, fundamenta-se no real.

(Pedra de Toque): Vemos hoje nas redes sociais através dos movimentos de restabelecimento da monarquia parlamentar no Brasil que “o positivismo foi crucial para o desmonte da monarquia”. É por isso que não lhe agrada tratar de política? Acha que, apesar de ter feito muito bem ao mundo como um todo, o positivismo não fez muito bem ao Brasil?

(Arthur de Lacerda): O meu desinteresse por toda política do presente, de qualquer presente, no que ela contém de imediatista e efêmero, advém-me de idiossincrasia pessoal e não de atitude intelectual originária do Positivismo nem de juízo acerca do acerca do Positivismo, no seu papel político, no Brasil.

A vida política é imediatista, efêmera e mutável, o que não me atrai. Atraem-me os conteúdos culturais já incorporados, de modo estável, ao patrimônio humano: literatura, filosofia, história, ciência, arte, que prefiro conhecer a ocupar-me em acompanhar os embates políticos do dia a dia, sem, todavia, lhes negar importância, porquanto nos atingem, a todos, em alguma medida.

O Positivismo contribuiu para a derrocada da monarquia e para a organização da república, sentido em que o seu papel foi, primeiro, de cooperar para a eliminação do regime já caduco; a seguir, obrar na construção do regime que o Positivismo enaltece. A contribuição dos positivistas foi assinalável, na pessoa de Teixeira Mendes, de Benjamin Constant, de Demétrio Ribeiro, de Júlio de Castilhos, de Borges de Medeiros e não só, como na inserção de inúmeras sugestões dos positivistas na constituição de 1891.

A influência positivista foi benéfica, com o seu repúdio à guerra, à violência em qualquer das suas expressões, com a sua solidariedade pelos trabalhadores, com a sua ênfase na regência moral da política, com o seu espírito público, com a afirmação das liberdades de expressão, opinião, participação política e de escolha pessoal, com a valorização da laicidade do estado, da instrução geral da população, com a dignificação da mulher.

Um positivista mineiro, já falecido, Rubem Descartes de Garcia Paula observou haver faltado Positivismo na vida política brasileira, inclusivamente no lapso de 1964 a 1982: o ideário positivista teria, por meio dos seus adeptos, influenciado no sentido de se evitar ou mitigar excessos de autoritarismo e até de violência dos governos.

Faltou Positivismo de 1930 por diante, com a adversidade do regime de Getúlio Vargas a ele, em simbiose com a igreja católica, ambos coligados em deprimi-lo (e exaltar o catolicismo). Com mais Positivismo e, por conseguinte, mais laicidade, mais instrução, mais humanismo, menos sobrenatural, menos obscurantismo, menos conservadorismo de costumes; mais destinação social da riqueza e, por conseqüência, menos pobreza; com o mesmo espírito de retidão na vida pública que o Positivismo valoriza e, destarte, menos corrupção (ou nenhuma), o quadro da vida coletiva nacional seria bem melhor do que o é.

(Pedra de Toque: Como considera a “homossexualidade”? Parece apoiar o direito ao casamento civil (incluindo a adoção de crianças) de pessoas de mesmo sexo. Não crê que o culto da “homossexualidade”, assim como o da sexualidade livre como um todo, deixaria de ter o mesmo valor ou ofereceria uma menor “glamourização” aos indivíduos se se politizasse, entre os exemplos, na união civil citada?

(Arthur de Lacerda): Considero a homossexualidade (bem como a bissexualidade e a trans-sexualidade) como inerente ao ser humano: ela sempre existiu, em todos os tempos e lugares. Sempiterna e ubíqua, é onipresente, é constante da natureza humana e como tal foi aceitada por várias civilizações até o advento do cristianismo, não somente co-responsável pelo transtorno do etos romano e pela aceleração do fim da civilização romana, como introdutor de inúmeros males morais
da civilização ocidental, dentre eles a homofobia. Não que o cristianismo o criasse, porém fortaleceu-a, do século 13 a esta parte.
Apoio o casamento entre iguais ou casamento homossexual, para homens e mulheres, com adoção: trata-se de escolha individual, que afeta aos dois envolvidos, nas respectivas privacidades. Aos demais cabe o dever de respeitar a escolha, se ela for este e a possibilidade de não se casar, se for o caso, seja com alguém do mesmo sexo, seja com quem for.

A adoção por casais homo propiciará acolhimento a crianças que, sem ela, ficariam ou prosseguiriam em desamparo. É irrelevante não haver pai e mãe; é relevante haver pai, um ou dois, ou mãe, uma ou duas, e preferível isto a não haver nem um nem outro. A criança adotada certamente pensa mais no seu presente e no seu futuro do que na tacanhice de certos adultos. Penso que a união civil, como casamento, de homossexuais, corresponde a acréscimo de felicidade para parcela significativa da população brasileira: há mais famílias, mais gente com a possibilidade de realizar-se ao seu modo, ao invés de ser fadada a ser infeliz ou a fingir felicidade ao modo alheio.

O andar implica modificações de etos, de sensibilidade, de instituições e de costumes. Vivemos tempos bonançosos, de aceitação da natureza humana e de liberdade de costumes. Tem sido assim nas últimas décadas: feminismo, revolução sexual, liberdade sexual, divórcio, casamento homo, adoção por casais homo, tudo isto se afasta do modo antigo, arcaico, de ser, das pessoas, e de julgar moralmente, modo originário, quer me parecer, em sensível medida, da pregação religiosa. Por outro lado, as modificações que citei importam em mais liberdade e em ética antropocêntrica, alheia a tabus e a condicionamentos direta ou indiretamente teológicos. No fundo, trata-se do movimento espontâneo das sociedades em direção às manifestações da natureza humana, fora de dogmas religiosos. Considero desejável que seja assim.

(Pedra de Toque): Cite dois autores que mais lhe inspiram na sua criação e na sua produção. Fale um pouco deles e da relação mimética da obra deles com a sua.

(Arthur de Lacerda): Inspiraram-me Augusto Comte e Ortega y Gasset. Na verdade, não há mimese entre eles e mim, no sentido de que não os imito, porém no Positivismo encontrei e encontro motivos de reflexão e análise. Em Ortega encontrei reflexões, análises, conhecimentos de amplo espectro, que me forneceram certa capacidade de pensar, certo tirocínio intelectual, que me valeu como (passe a expressão) treinamento de saber pensar, e como fonte de cultura.

O sentido de moral antropocêntrica, a valorização dos bons sentimentos, o desdém pela teologia, o respeito pelo legado humano que se transmite ao longo das gerações, o espírito público, a preocupação social, são traços do Positivismo que me movem e formas da presença de Comte no meu espírito.

Em relação a Ortega, dele assimilei a lição fundamental de reconhecer o homem-massa e diferenciar-se dele.

A combinação das lições de Ortega com o espírito positivo incrementaram-me o senso de independência intelectual que já me reconhecia, antes de os conhecer, vale dizer, a capacidade de pensar autônoma e, sobretudo, independentemente das idéias estabelecidas ou do pensamento majoritário.

(Pedra de Toque): Tente resumir cada um de seus livros em ordem cronológica. De que trata cada um?

(Arthur de Lacerda): Os meus livros principais tratam: “Provocações” comunica algumas reflexões relativas a costumes, tipos humanos, Positivismo, estrangeirismos no idioma.

“Pequena história da desinformação” esclarece alguns mitos circulantes, no Brasil, à volta do Positivismo; nele comprovo que Comte não ensandeceu, que o Positivismo não é burguês nem autoritário, que os regimes de Getúlio Vargas e de 1964 não eram positivistas.

“A república positivista” analisa o projeto político republicano de Comte e a sua aplicação no Brasil.

“Memórias de duas amizades” narra, quase dia por dia, a história de duas amizades que tive.

No âmbito da história do Direito, “As ouvidorias do Brasil colônia” contém a biografia parcial de um ouvidor colonial, Rafael Pires Pardinho; “Breve história das codificações jurídicas” expõe a gênese dos códigos jurídicos modernos.

“Estudos de Direito Romano” e “Novos Estudos de Direito Romano” ocupam-se de aspectos da história do Direito, relativas ao direito da antiga Roma e à sua inserção no curso da evolução do direito ocidental.

(Pedra de Toque): Lemos críticas suas, aliás, bastante jocosas, sobre alguns habitantes de Curitiba, para os quais você usa o gentílico crítico “curitiboca”. Não se orgulha de Paulo Leminski, Dalton Trevisan, e muita gente boa nascida por aí?

(Arthur de Lacerda): Do primeiro que nomeou, não me orgulho; do segundo, digo nada; alguns outros, como Dario Veloso e David Carneiro, admiro-os e orgulho-me de ser-lhes concidadão, porém prefiro ser cauteloso ao orgulhar-me de alguém, como concidadão. Prefiro admirar certos vultos, pela sua grandeza pessoal, pelo seu papel social, pelo seu legado aos seus coevos, a orgulhar-me de pessoas, devido à circunstância acidental de havermos nascido na mesma cidade. O papel das pessoas transcende, muitas vezes, o perímetro da sua cidade e o ambiente dos seus vizinhos; sem desdenhar dos que atuaram, positivamente, no ambiente curitibano, o meu estalão de admiração é outro.

Simultaneamente, em nada me ufano de ser natural de cidade cujo povo, em geral e tradicionalmente, apresenta etos e patos já famigerados e que o gentílico curitiboca (não é da minha autoria) caracteriza pelo seu lado pejorativo. Não me orgulho de pertencer ao corpo de cidadãos em que parte quase se jacta de sentir-se alheio ao concerto dos demais brasileiros, alheio no sentido, quiçá sobranceiro, de arrogar-se pretensa condição europeia e culta e, com isto, superior, quando os traços do curitiboca consistem no ensimesmamento, na introversão, na escassez de alegria e de espontaneidade, sentido em que o curitibano não é brasileiro, no que este apresenta de simpático e aberto ao próximo e aos estranhos.

(Pedra de Toque): Qual será o p(l)ano de fundo quando você condena os estrangeirismos na língua portuguesa? Preservar uma tradição de caráter Português ou valorizar e revalorizar os produtos e serviços oferecidos na nossa língua, seja aqui, seja em Portugal, seja em Moçambique, Angola, etc.? Sua preocupação é comercial ou cultural?

(Arthur de Lacerda): Minha preocupação jamais foi comercial e sempre foi cultural e idiomática. Condeno os estrangeirismos na medida em que representam elementos alienígenas e amiúde desnecessários; se para alguns, eles enriquecem o português, considero que eles o intumescem sem, necessariamente, melhorá-lo. Entre vernacularismo e um peregrinismo, julgo sempre desejável o que já pertence ao vernáculo e indesejável o que, sem necessidade, nele se imiscui.

Não se cuida de preservar tradições lingüísticas de caráter português, porém de zelar pelo nosso idioma e pela sua pureza, cujo mínimo indispensável consiste em usar expressões, recursos, sintaxe e léxico do português em vez dos homólogos estrangeiros.

(Pedra de Toque): Se não nos enganamos, estudou pós-graduação em Portugal, de onde lhe permanecem costumes. Como compara o Direito em Portugal e no Brasil, com cujos costumes, quer linguísticos, quer culturais você precisará conviver e precisará ajudar a transformar enquanto residir por aqui?

(Arthur de Lacerda): O direito civil de lá e de cá é, essencialmente, o mesmo, com poucas diferenças, mais acentuadas em outros ramos do direito, como o constitucional, à vista do sistema, no Brasil, ser presidencialista, e parlamentarista, em Portugal.

Um contraste existe entre o direito português e o nosso, no que toca ao casamento homossexual, lá já existente como produto de alteração no Código Civil, que entre nós vai tardando.

Ambos direitos, por outro lado, são, por assim dizer, irmãos, porquanto provêm da mesma origem, a saber, as Ordenações Filipinas (pré-codigo que vigeu em Portugal e nas suas colônias, o que incluiu o Brasil) e as que as antecederam. Ambos partilham, também, do direito romano e do código de Napoleão, como fontes que os irmanam.

(Pedra de Toque): Arthur, o que é a vida?

(Arthur de Lacerda): A vida é o que é para quem a define como o faz: cada um a define, interpreta e entende ao seu modo, com o que, resposta a tal pergunta é subjetiva e vale tanto como expressão de idiossincrasia e de experiências, como produto de reflexão. Ela é o esforço contínuo do indivíduo, como agente do seu próprio destino, em realizar o programa de futuro que concebeu para si ou em constituir estado de coisas que lhe seja confortável (que, por sua vez, poderá coincidir com o seu planejamento existencial), em meio ao ambiente humano e cosmológico que condiciona, para bem ou para mal, a atividade individual. Neste aspecto, vida é interação entre o indivíduo e o meio; interação equivale a ações e a reações entre ambos, e não em insulamento. Ao fim e ao cabo, a vida se traduz no movimento contínuo entre cada um e os demais e o mais que existe à nossa volta. Viver é existir, em meio às coisas, e conviver, em meio aos outros.

(Pedra de Toque): Receba aquele abraço, que é a única coisa falsa deste blogue.

Os livros de Arthur Virmond de Lacerda Neto podem ser adquiridos na Editora Juruá (www.jurua.com.br) e na Estante Virtual (www.estantevirutal.com.br).

 

O original da entrevista aqui: https://www.pedradetoque.com/post-unico/2018/04/01/ARTHUR-DE-LACERDA-E-A-CIVILIZA%C3%87%C3%83O-DESNUDA

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