Ataque de pudicícia no fórum de Uberlândia.

 Ataque de pudicícia no fórum de Uberlândia.

Arthur Virmond de Lacerda Neto.

16.I.2015.

 

Em Uberlândia, quente cidade mineira, o juiz diretor do fórum local proibiu (em 2014) o acesso de qualquer mulher (funcionária, advogada, testemunha, parte, estagiária etc.) que envergue vestido de alças ou dos tipos tomara-que-caia e frente única; determinou que todos os funcionários do fórum vistam camisas de mangas compridas (com gravata), calças compridas e calcem sapatos fechados, em nome do “decoro e da austeridade”.

A Rede Globo (ignoro de que cidade) impede o acesso às suas instalações de homens que trajem bermuda e calcem chinelos; injunção igual vigorava, anos atrás, no fórum de Curitiba (quiçá permaneça). Em outras instituições da cidade do Rio de Janeiro, impunha-se idêntica proibição, como ainda em determinada bastilha de Salvador, administrada pelo Exército.

O traje destina-se a proteger o corpo da adversidade climática: se há frio, acrescentamos indumentos; se há calor, aligeiramo-los. Ele também corresponde à circunstância do seu usuário: vestimo-nos diversamente, consoante a situação social em que nos encontramos; por exemplo: em cerimônias nupciais, soe usarem os homens o que qualificamos de social completo, ao passo que nos estádios de futebol são adequados camiseta dos times que disputam a partida, bermuda, chinelos; em entrevistas de candidatos a empregos é desejável apresentação discreta e de bom gosto; na balada, os seus freqüentadores vestem o colorido e informal.

O diretor do fórum de Uberlândia, o da Rede Globo, os das mais entidades que regulam analogamente o traje dos seus freqüentadores, priorizam o velamento do corpo, ao menos o dos ombros, das costas e do colo feminino (no caso de Uberlândia), as pernas e os pés masculinos (nos demais exemplos).

Se se obriga a encobrir tais partes, é porque a sua exposição, nos recintos em causa, é indesejável por algum motivo. Serão ombros, costas, colo, pernas e pés partes indecentes, como, para muitos, o são o falo e as mamas? Indiscutivelmente, não. Serão ombros, costas, colo, pernas e pés eróticos e sexuais, como o é o pênis e, para muitos, as mamas? Certamente, não. Será a sua exposição excitante da apetência carnal, a ponto de transtornar a concentração, a atenção, o desempenho profissional das pessoas e ser indispensável o seu ocultamento? Decididamente, não. Serão ombros, costas, colo, pernas e pés feios, ao ponto em que seja imperioso poupar os demais da observação das respectivas fealdades? Indiscutivelmente, não.          Há corpos belos e outros, feios. Porém, o juízo estético é subjetivo e relativo: a feiúra de um não o será para outro, o belo que encanta a alguém mantém indiferente a outrem.

Supondo-se que todos os ombros, todas as costas, todos os colos, todas as pernas e todos os pés desagradem à vista, a sua fealdade será tão acentuada, provocará tamanha repugnância, ao ponto em que seja obrigatório encobri-los ?

Segundo o diretor do fórum de Uberlândia, este corresponde a recinto em que devem prevalecer austeridade e decoro, consideração segundo a qual ombros, costas, colo, pernas e pés, expostos, constituem indecorosidade e insulto à austeridade.

Por que a sua exposição seria indecorosa? O que há de indecente, de inapresentável nestas partes do corpo? Por que a ausência de encobrimento delas seria infensa à austeridade? Por que o fórum seria repartição em que devem imperar especiais decoro e austeridade?

O fórum é repartição como qualquer outra, em que funcionários laboram, em que se prestam serviços ao público, a que este acede, o mesmo público que circula pela cidade com os trajes admitidos pela generalidade das pessoas, ou seja, mulheres com os ombros, as costas, o colo expostos; homens com as pernas e os pés expostos, em exposição destituída de qualquer motivo de escândalo nem de inconveniência para ninguém.

As pessoas trajam-se assim e assim freqüentam lojas, farmácias, cinemas, centros comerciais, livrarias, consultórios, outras repartições públicas e privadas. Elas vestem-se conforme os padrões geralmente admitidos na sociedade, nomeadamente em cidades quentes, em que é normal, natural, confortável e saudável o despojamento.

Por que o fórum, as instalações da Rede Globo, a bastilha de Salvador e outras instituições excetuam a liberdade de vestir-se a gosto e em consonância com a temperatura, e obrigam ao uso de trajes encobridores?

Antanho, quatro, cinco, seis e mais décadas transactas, admito os padrões de moralidade então vigentes no Brasil coadunavam-se com a severidade no trajar. Por então, encobrir o corpo atendia à moral e aos bons costumes; expô-lo parcialmente suscitava a censura de muitos, o escândalo de alguns e a aceitação dos precursores da evolução de costumes: era o tempo do maiô e não o do biquíni, em que os homens expunham-se no exterior dos seus lares necessariamente de chapéu, paletó, colete e gravata e não de calças de brim e camiseta, bermudas e sandálias ou chinelos, malgrado a temperatura de trinta, trinta e dois, trinta e cinco graus e sensações térmicas superiores a estas em abundantes cidades do Brasil tropical e mesmo da sua região sul.

Era o tempo em que mulher de família casava-se virgem, e do tabu da sexualidade, ao passo que, atualmente, trivializou-se a volúpia pré-conjugal e sexualidade constitui assunto de que se fala e escreve com liberdade (salvo nas famílias religiosas e dentre a gente velha).

O tempo fluiu, os costumes evoluíram, as mentalidades modificaram-se. Hodiernamente, a exposição austera do corpo não obriga, como padrão de moralidade; esta não mais envolve o recato acentuado, como envolvia antanho. Do pudor intenso, os costumes progrediram em direção ao seu abrandamento e, com isto, mais e mais dissociou-se do corpo o estigma com se lhe marcava a exposição.

Por isto, a justificativa do juiz de Uberlândia representa, no mínimo, arcaísmo axiológico e de costumes: nos dias atuais, a austeridade e o decoro não mais exigem o encobrimento do corpo, como o exigiam há quatro ou cinco décadas. Vivemos em 2014 e não mais em 1970, 1960 ou antes.[1]

Espera-se que os diretores dos fóruns, das repartições, das empresas, atuem com bom senso e sentido de realidade, que saibam reconhecer a atualidade social e discernir os valores arcaicos dos contemporâneos. Não foi o caso do juiz de Uberlândia, que impôs conceito de austeridade e de decoro ultrapassados pelos costumes.

Demais, ao contrário do que entende o magistrado em questão, o fórum não é repartição que exija decoro e austeridade especiais. Nenhuma razão existe porque ele constitua local de trabalho diferente dos demais, como que isolado da restante sociedade e em cujo interior as pessoas devam trajar-se austeramente, como se se tratasse de igrejas evangélicas. Nenhuma justificativa existe para que, nele, o decoro envolva a recusa dos padrões de indumentária normalmente empregados pela sociedade coeva.

Nenhuns fóruns acham-se acima ou aparte da sociedade. O público que lhes acede constitui-se de pessoas normais, que se trajam como tal, que se ressentem do calor, que adequam as suas vestimentas à temperatura, que compartilham da medida de rigor moral mediana e não de medidas extremas.

Não, no fórum, em nenhum fórum, faz sentido nenhum a imposição de trajes alegadamente austeros, ou seja, encobridores de partes do corpo que é inocente, confortável e digno expor.

A determinação do juiz de Uberlândia carece, no mínimo, de bom senso e representa, quiçá, em alguma medida, vezo do pessoal jurídico, com a sua empáfia de vestuário: é como se, impressionado com as becas negras, com o uso invariável dos paletós e das gravatas, dos sapatos pretos, ele deduzisse que, por extensão, todo o pessoal jurídico e os freqüentadores do fórum devessem trajar-se no mesmo sentido.

É, todavia, ilação arbitrária e gratuita. Trajam-se, os juízes, de paletó e gravata, por costume e não em honra às suas elevadas funções de dispensadores da justiça. Em Foz do Iguaçu, por exemplo, compareci a audiência em que o juiz vestia camisa polo e toda a gente mirava-me (certamente com estranheza) por ser eu o único que trajava… camisa (branca) de mangas compridas e gravata. Fazia trinta e seis graus centígrados.

Imposições desta natureza contêm três problemas: a) inadequação climática, b) desrespeito pela liberdade individual, c) pudicícia.

a) Há inadequação climática no traje que impinge ao seu usuário desconforto térmico, seja porque o revestimento é insuficiente e passa-se frio, seja porque, no caso oposto, ele é demasiado e sente-se calor.

Em dias quentes, em cidades de temperaturas elevadas, é evidentemente inadequado o indumento que provoque retenção calórica. É óbvio que, nestas situações, deve-se aliviar o traje. É naturalíssimo que, então, as pessoas prefiram vestidos de alças e bermudas e chinelos, confortáveis e saudáveis. Qualquer indivíduo normal e sensato percebe-o. É moral e conforme os bons costumes.

Sob vinte e oito, trinta, trinta e dois e mais graus e sensação térmica porventura superior a tais valores, é incompreensível, é insano, é realmente absurdo que se proíba, onde quer que seja, o uso de trajes correspondentes a eles.

Não faz sentido as regras administrativas proibirem o uso de vestes compatíveis com a temperatura e imporem-nos termicamente opressivos.

b) Tais regras transgridem a liberdade de escolha do vestuário: no exercício da soberania individual, em que cada pessoa governa a si própria, cada um é e deve ser livre de eleger o traje que prefira, em termos de cor, tecido, justeza, modelo, marca, preço, correspondência ao clima e à temperatura. Vestimo-nos conforme a nossa decisão pessoal, quer ela contenha idiossincrasias e gostos pessoalíssimos, quer ela se identifique com os usos da maioria e com as modas.

A liberdade de as mulheres usarem vestidos que lhes exponham os ombros, as costas, o colo; de os homens exporem as pernas e os pés, é liberdade valiosa, que compõe o espectro das decisões pessoais e que deve ser mantida, na medida em que nenhum prejuízo ela causa. Um homem que calce chinelos e uma mulher que vista tomara-que-caia não causam dano a nada nem a ninguém, não interferem no normal funcionamento das instituições judiciais, televisivas, militares nem de nenhuma outra; não provocam escândalo em outrem nem estigma nos próprios; não atentam contra o pudor nem se desviam da moral e dos bons costumes, não antagonizam com a “defesa da vida, da família nem do futuro das crianças deste país” (loqüela de evangélicos pudibundos).

Admito a autoridade dos diretores de repartições públicas e privadas de obrigarem os seus subalternos a certos padrões de indumentária; recuso-lhes a autoridade de fazê-lo para além do sensato e do razoável, como limites cuja extrapolação inquina-lhes as determinações de abusivas e reprováveis. Assim, por exemplo, no fórum, é abusivo impor aos seus funcionários a obrigação do uso de sapatos fechados e de calças compridas ao invés de facultar-se-lhes o uso de bermudas e tênis ou sandálias; é excessiva a obrigação de as mulheres velarem os ombros, o colo e as costas.

Também o fardamento das empresas, dos organismos públicos e das escolas deve reger-se por igual critério: o uniforme escolar deve, sim, permitir camisetas de tipo regata, bermudas, tênis, sandálias, chinelos; o das empresas deve, sim, consentir em trajes que, equivalentemente, se coadunem com o clima e com a liberdade individual.

Prevaleça o bom senso.

 

c) As situações em causa comungam da obrigação de ocultar o corpo.

Velamento obrigatório do corpo e antagonismo à sua exposição parcial constituem expressões típicas do pudor ou pudicícia, sentimento de vergonha do corpo, de ser visto desnudo, de expor-lhe partes supostamente vergonhosas (pênis, vulva, mamas). Em estado exacerbado, que se desdobra em manifestações como as da Rede Globo, do fórum de Uberlândia, da bastilha de Salvador, há pudomania ou pudibundaria, mentalidade preconceituosa segundo a qual a exposição do corpo repugna, conota-se com imoralidade e sexualidade, impõe-se o seu velamento tanto quanto possível.

O pudor provém dos povos asiáticos da antigüidade e contrastava com a mentalidade grega, em que o corpo não constituía motivo de vergonha, não se lhe reconheciam partes vergonhosas e a nudez não pejava ninguém.

A mentalidade oriental ingressou no cristianismo, nele inveterou-se e acentuou-se. Com a obra de Agostinho de Hipona, de Tertuliano e de outros pais da igreja, as partes até então reputadas nobres (pela cultura grega), passaram a ser tachadas de especialmente vergonhosas como, demais, desdenhava-se do corpo humano na sua totalidade.

Tudo quanto fosse material recebeu nota de vileza e o desprezo da teologia, aviltamento e desdém que o catolicismo re-entranhou nos costumes ocidentais do século 16 por diante, em relação ao corpo e a sexualidade, pela censura enérgica a esta e ao quanto a recordasse, direta ou indiretamente, de perto ou de longe.

Da pudicícia foram agentes por excelência os jesuítas, no seu esforço por combater os seus dois inimigos de eleição, o protestantismo e a nudez.

País de formação católica, desde os nossos primórdios a presença jesuítica (José de Anchieta, Manoel da Nóbrega e outros) incutiu os seus valores de vergonha. A evangelização dos íncolas compreendeu, também, vestir quem andava nu há milênios e incutir-lhes vergonha do que não os envergonhara jamais. O mesmo “ethos” de pudor se reiterou nas populações brancas e perdurou por séculos a fio.

Desde, contudo, o século 13, as sociedades ocidentais vem encontrando novas fórmulas de moralidade e de convivência, valores e comportamentos progressivamente menos teocêntricos e crescentemente seculares. A moral antiga, religiosa, bíblica, proibidora, arcaizou-se e, em seu lugar, afirma-se, crescentemente, moralidade antropocêntrica, fundada nas realidades, interesses e conveniências humanas.

No progresso da moral, na evolução do sistema teológico, repressor e pudico para o humano, libertário e naturalista, o corpo transformou-se de objeto de vergonha em expressão de naturalidade; dissociaram-se da nudez a imoralidade e a sexualidade; cessou a vergonha de ver e de ser visto nu. Ao menos, assim é, há décadas, na Europa em geral; no Brasil de herança católica e, por isto, tardígrado em relação à liberdade de costumes e à abertura das mentalidades, vai sendo assim, máxime dentre as classes elevadas social e culturalmente.

Há, contudo, retardatários, pudicos em tempos de naturalidade, anacrônicos que ainda mantêm o modelo mental pudômano e envergonhador: os velhos que se aferram aos conceitos com que se formou a sua personalidade, nas suas infância e juventude, e os religiosos (sacerdotes e laicos) cujas confissões enfatizam tais valorações.

Eles mantêm-nas para si, como valores seus e, provavelmente, como orientadores dos seus usos pessoais, no que exercem, legitimamente, a sua liberdade individual. Porém não é legítimo que o imponham a terceiros, perante quem ele não é consensual, sobre quem não partilha desta ética.

A forma de trajar-se é análoga a tudo que respeita às opções e às liberdades individuais: cada qual proceda como julgar melhor para si, sem impor a outrem as suas soluções.Viva e deixe viver.

Traje-se austera e decorosamente, segundo o seu estalão de austeridade e decoro, quem assim o entender, porém não impinja o seu padrão de indumentária a quem não comunga dos seus valores exacerbados.

Outro motivo talvez concorra para originar proibições pudômanas: a aspiração de diretores e de superiores hierárquicos de exercer o seu poder.

Impor a forma de vestimenta ou proibir dados tipos dela corresponde a manifestação de poder, a exercício de autoridade pela qual o superior submete (institucionalmente) os seus subordinados (e, porventura, a terceiros) e interfere no próprio corpo deles. Afinal, o traje reveste o corpo e determinar o traje equivale a condicionar como outrem reveste o seu próprio corpo.

Há, porventura, o deleite inconfessado de dominar, a satisfação secreta em sujeitar, a expressão de frustrações, de raivas, de opressões, de sentimentos de inferioridade que o superior tenta exorcizar, o sofrimento porque ele anseia por se compensar (mediante a imposição, a outrem, de agruras).

Pela sua irracionalidade, pela sua desnecessidade, pela sua insensatez, são determinações que, possivelmente, contêm algo de mórbido.

São inaceitáveis as proibições de uso de trajes leves sob calor e mesmo fora dele; elas exprimem conservadorismo retrógrado, o que mantém usos injustificáveis em face do estado atual da civilização. De todo em todo arcaicas pelo lado dos valores que comportam, elas são inteiramente insanas em relação à adequação entre vestuário e clima, e negadoras da liberdade individual. Elas veiculam valores ultrapassados, impõem sofrimento térmico, contrariam os direitos humanos.

Elas são completamente estúpidas e devem ser rechaçadas; em seu lugar, deve introduzir-se o bom senso que, neste capítulo, respeite a liberdade de vestimenta, aceite trajes compatíveis com o clima, reja-se por valores coevos. Em lugar da pudomania obsoleta e careta, a liberdade e sensatez.

Tudo isto é-me óbvio, como o é para inúmeras outras pessoas. Escrevi-o para os refratários a tal obviedade.

 

[1] Cerca de 1980, o motorista do ônibus da linha Curitiba-Praia de Leste (no litoral do Paraná) obrigou-me a vestir calças para embarcar: era proibido fazê-lo de bermudas. Eu contava cerca de quatorze anos de idade. Hoje, viaja-se de ônibus e de avião de bermudas e chinelos.

As bermudas são proibidas ou ridicularias do Brasil: aqui.

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