A declaração de Damares Alves.

 

A declaração de Damares Alves.

Arthur Virmond de Lacerda Neto. 9.I.2019.

Ao tomar posse como Ministra da Mulher e dos Direitos Humanos (em primeiro de janeiro de 2019), Damares Alves, pastora, exclamou, em meio a circunstantes que “meninos vestem azul e meninas vestem [cor-de-] rosa!”, declaração que lhe suscitou críticas até escárnios.

A seguir, o também pastor Silas Malafaia ironizou a esquerda e verberou os críticos de Damares pela invocação do nome das campanhas “Outubro azul” e “Novembro rosa”, de profilaxia dos tumores, respectivamente, de próstata e de mamas.

Os nomes das campanhas foram empregados apenas descritivamente ou sequer isto: eles limitaram-se a associar o azul com homens e o cor-de-rosa com mulheres, associação trivialmente efetuada pelas pessoas, ou seja, eles acompanharam o costume, ao passo que a pastora referiu-se às cores prescritivamente: meninos usam azul e meninas, cor-de-rosa contém a elipse do verbo dever: meninos devem usar azul e meninas, cor-de-rosa. Se não houve elipse, é mais do que óbvia a intenção da pastora de conotar cor e sexo com relação de inerência, de obrigação cultural, de pressuposto.

Para ser compreendida, a metáfora deve fazer sentido para o interlocutor (leitor ou ouvinte), ou seja, este deve estar a par do sentido denotativo a que a metáfora se refere, conotativamente. Para fazer sentido, o interlocutor deve saber haver uma realidade distinta da metáfora, de que ela é expressão como figura de linguagem. Nem sempre o interlocutor sabe existir tal realidade e não a compreende. Outra causa de incompreensão está na pobreza intelectual do interlocutor, no seu literatismo; é o caso do leitor, por exemplo, que interpreta a Bíblia literalmente e aceita (por exemplo) haver o mundo sido criado em seis dias e ter havido uma serpente que ofereceu uma fruta (não foi maçã) a Eva.

O asserto de que “meninas vestem cor-de-rosa e meninos, azul”, é metafórico como analogia ao combate à mal chamada ideologia de gênero que, por sua vez , compreende, em sentido próprio, que, de fato, para Damares e seguidores, o azul é a cor típica do vestuário masculino infantil e o cor-de-rosa, do vestuário feminino infantil.

Ela falou metaforicamente, em parte; em parte, denotativamente. Quem a entendeu literalmente, entendeu-a corretamente; quem a entendeu como metáfora, também a entendeu corretamente. Damares não vestiria as suas filhas de azul nem os seus meninos de cor-de-rosa; ela tomou posse trajada, inteiramente, de cor-de-rosa, aspecto em que a sua manifestação deu-se em sentido próprio e não figurado.

É ingenuidade pensar-se que ela falou apenas metaforicamente, como se ela não julgasse que as cores a que se referiu pertencem, tipicamente, a meninos e a meninos. Ainda que o seu aforismo cromático fosse apenas metafórico, não seja ingênuo: para Damares, o lugar por excelência da mulher, é em casa, sob a autoridade do marido e ambos, da de Cristo (interpretado pelos pastores, de que ela é uma): a tal corresponde a cosmovisão evangélica, essencialmente conservadora, em termos de família.

A suposta metáfora é rica de significados cristãos, conservadores, retrógrados; religiosos no que o cristianismo na versão da ministra tem de arcaizante e contrário, obviamente, à discussão de gênero, que consiste na análise racional, à luz da sociologia, da história, da psicologia, dos condicionamentos que a cultura constrói no papel desempenhado por homens e por mulheres.

Gostaria de saber como é que a pastora, agora ministra, concilia o seu entendimento conservador com a sua própria condição de mulher-extra-doméstica, em cargo público: creio tratar-se do que Olavo de Carvalho nomeia de paralaxe cognitiva, incoerência entre o que se apregoa e o que se vive, dissociação entre a experiência real e deliberada do sujeito e a sua construção teórica: se Damares fosse coerente, recolher-se-ia ao seu lar em vez de entregar-se à mundanidade. Se ela aceitou o cargo de ministra, julga que as mulheres não se devem limitar ao papel de mãe, de esposa e de dona-de-casa, porém podem assumir papéis tradicionalmente ocupados por homens: tal tipo de consideração corresponde precisamente ao tema da discussão de gênero. Discussão de gênero e não “ideologia de gênero”, como erradamente certos conservadores e evangélicos o apodam, inclusivamente Damares Alves, que se exprimiu mal. Disse ela, ao explicar a sua declaração:

“— Fiz uma metáfora contra a ideologia de gênero, mas meninos e meninas podem vestir azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhores.”

A declaração de Damares Alves contém três solecismos: um de pronome e dois de advérbio:
1) forma é “como” e não “que”: “forma como se sentir” e não “forma que se sentir”. Esta de “que” em lugar de “como” é primária e equivalente a “A pessoa que o pai dela morreu”.
2) ninguém se veste da forma como se sente “melhor”: alguém se sente bem ou sente-se mal com dado indumento. Quem se sente bem, pode sentir-se mais bem ou menos bem; quem se sente mal, pode sentir-se mais mal ou menos mal. Assim, a pessoa pode vestir da forma COMO se sinta MAIS BEM.
Ainda que fosse correto o emprego da adjetivo “melhores”, deveria ter sido usado no singular, em vez de no plural.

Forma é forma COMO e jamais forma QUE. “Forma que” é coisa de gente pobre de cultura.

Sente-se bem, mais bem, menos bem; mal, mais mal, menos mal e não pior nem melhor. Isto de pior e melhor é coisa de gente que não percebe a lógica do idioma.
Se a ministra fosse esquerdista, far-lhe-ia as mesmas observações. Acho pior o erro em quem é (?) leitora da Bíblia, que no Brasil foi otimamente traduzida, e sua pregadora. Ao menos, estivesse acostumada com o que lê e o repetisse. Não o está e não o fez.

 

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