A passagem do ano. Positivismo.

A passagem do ano

28.XII.2008

                                                                        

                                                                                       Arthur Virmond de Lacerda Neto

                                                                              arthurlacerda@onda.com.br

 

            No dia 31 de dezembro, derradeiro de cada ano, a maioria das pessoas comemora o término do ano e o advento do que o segue. Há espetáculos de fogos de artifício, alegria, garrafas de champanhe que se abrem, consoada, votos por um ano melhor.

            Nenhum mal vejo, ao contrário, nas ocasiões em que as pessoas encontrem-se, alegrem-se e celebrem alguma efeméride ou algum acontecimento significativo. Nenhum sentido vejo, por outro lado, nas festividades relativas à transição de um ano para outro: trata-se, apenas, da sucessão, puramente convencional, dos anos, fato, em si, que nenhuma alteração introduz na vida das pessoas; que não corresponde a um acontecimento excepcional, na biografia dos celebrantes nem na história dos povos; que nenhum motivo justificável contém de alegria e de comemoração; que se repete, idêntico, ano após ano.

             São motivos de celebração as datas que, na vida individual ou coletiva, assinalam acontecimentos decisivos, como a do natalício ou a do aniversário de casamento, a do descobrimento do território nacional ou a da instauração do regime político. Daí as celebrações dos aniversários e os feriados nacionais, em que o (suposto) gáudio justifica-se por um fato identificável e digno de comemoração.

            Na transição de 31 de dezembro para primeiro de janeiro, nada disto se passa. Nem a data anterior, nem a posterior,  assinalam qualquer efeméride; tampouco se comemora qualquer acontecimento notável na vida individual ou coletiva.

            Cada ano novo pode ser  igual, melhor ou pior do que o findante, conforme as circunstâncias em que a vida de cada qual se desenvolve, da forma como cada um atua e reaje em face das situações da vida, ao longo do tempo, independentemente do reinício, repetitivo e monótono, da contagem do tempo segundo o calendário júlio-gregoriano.

            É peculiar, mesmo estranho, que milhares de pessoas aguardem o momento exato da meia-noite, rejubilem-se com o início do ano e que exultem de alegria, como se houvesse motivo para alegrar-se, como se se tratasse da libertação de um mal, encarnado no ano findante, e do advento de uma era promissora. É irracional e ilusório.

            Se algo há que nos mereça a comemoração, sob uma justificativa racional, é a celebração instituída por Augusto Comte, fundador do Positivismo e autor do lema "Ordem e progresso", relativa à data de primeiro de janeiro: neste dia, comemora-se a Humanidade.

            A Humanidade corresponde à todos os seres humanos que, ao longo dos tempos, têm contribuído útilmente em benefício das demais pessoas. Trata-se de uma concepção e também de uma realidade: a Humanidade existe, porque existem, no presente, existiram, no passado e existirão, no futuro, pessoas que, por uma forma ou outra, uns mais, outros menos, colaboraram com o seu semelhante, produziram resultados benéficos para alguém, desempenharam um papel positivo nas suas vidas, desde o mais humilde varredor de rua até o estadista mais influente.

            A Humanidade envolve todos os âmbitos de realizações: a ciência, a arte, a indústria, a literatura, a filosofia, a política, em que, ao longo de gerações incontáveis, a atividade humana foi se desenvolvendo e se acumulando. Cada geração torna-se herdeira e beneficiária do produto das suas predecessoras.

            Social por excelência, o ser humano tudo deve aos seus semelhantes: cada homem, individualmente considerado, é o beneficiário direto da Humanidade, que integra e em meio à qual vive. Disto é ilustrativo o romance  "Robinson Crusoé", cujo protagonista, por falta de Humanidade, viu-se reduzido à uma condição de primitivismo total na ilha em que viveu solitáriamente.

            Na humanidade real, composta por todos os homens, encontram-se o bem e o mal: as virtudes, a moralidade, a generosidade, a correção de caráter, a moderação, a inteligência, a atividade, a afetividade, a humildade, o perdão, a gratidão, a harmonia, a verdade, a lealdade; também os vícios, as imoralidades, o egoísmo, a falta de caráter, o descomedimento, a estupidez, a desídia, a frieza, a arrogância, a ingratidão, o conflito, a mentira, a traição.

            Não é esta humanidade que os positivistas festejam: não se justifica louvar o ser humano também no seu pior, a humanidade maligna. Eles rejubilam-se com a Humanidade benigna, com o ser humano no seu melhor, com o bem e o bom presentes em todas as pessoas, que merecem ser averiguados, recordados, louvados e cultivados.

            Na festa da Humanidade, os positivistas recordam-se da série ininterrupta de gerações pretéritas de que o presente é o resultado; celebram o acumular incessante de benefícios de que cada tempo é o herdeiro; lembram-se dos tesouros de sabedoria, de virtude, de conhecimento, de arte, de realizações de todos os tipos; sentem-se estimulados a contribuir, na medida do possível de cada um, na obra coletiva do progresso humano.

            Por isto, no dia primeiro de janeiro de cada ano, os adeptos do Positivismo têm o que comemorar e com que se alegrar: comemoram as qualidades humanas e os melhores homens, alegram-se por participarem desta Humanidade benfazeja, a que todos pertencem, inclusivamente quantos não se apercebem do valor desta comemoração e folgam com a insignificância da mudança da numeração do calendário.

           

 

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