Lugares-comuns de linguagem.

Muitos jornalistas, juristas e acadêmicos usam lugares-comuns de redação, que é aconselhável evitar. Aqui, os examino e aponto alguns: Lugares-comuns de linguagem.

 

LUGARES-COMUNS DE LINGUAGEM.

Arthur Virmond de Lacerda Neto.

Abril de 2019.

 

Muitas pessoas falam consoante o que ouvem, por imitação: como os outros falam, falam eles, como nos meios juvenil, acadêmico, e em ambientes alheios à leitura dos bons autores vernaculares. Daí a célere propagação de modismos, lugares-comuns e erros que, amiúde, convertem-se em cacoetes de redação,

Por exemplo: critica-se algo ou alguém; principia-se a frase acusadora com a locução “O problema [da pessoa, da idéia, da instituição] é que […]”. Assim: “O problema com os liberais é que são poucos.”; “O problema do Brasil é que nele há calor.”.  A pessoa, a idéia, a instituição contém “problema”.

Outro: constrói-se a frase com fórmula fixa: o advérbio quem, seguido de verbo; este, de complemento (ou não); este, do verbo ser no passado : “Quem disse isto foi fulano”, “Quem nos deu informações foi o tio”.

Tais construções são corretas. Contudo, a sua repetição, como meio de expressão recorrente, com exclusão de alternativas de fraseologia e de estilo, demonstra pobreza de recursos de quem as emprega e transformam-nas em cacoetes de redação, em automatismos, em expressões-ônibus e palavras-ônibus,  que denunciam ausência de autonomia estética, espírito de rotina, sub-capacidade de se exprimir sem o quase-jargão que elas demonstram.

Também é o caso dos verbos ganhar e dialogar, de uso metafórico, abusivo, pobre e empobrecedor, corrente no Brasil, nos últimos anos: “O Brasil ganhou dois pontos nos índices de desenvolvimento humano”; “A Bíblia ganhará nova tradução”; “No livro de fulano, Marx dialoga com Platão.”

Na academia (entenda-se: o pessoal universitário), muitos aplicam o verbo dialogar para referir-se ao exame que um autor faz de outro ou às citações que dele faz, o que, evidentemente, não corresponde a dialogar nem os textos reproduzem diálogos de interlocutores (do autor com outros autores): é metáfora desnecessária, cuja recorrência desnatura a acepção lídima deste verbo e constitui cacoete, o que é inaceitável em bons textos.

Ganhar e dialogar têm sentidos próprios; espera-se que o texto jornalístico e acadêmico descreva situações; ao invés, os jornalistas especialmente, mantêm o cacoete de empregarem tais verbos em sentido conotativo, ou seja, oposto ao descritivo: escrevem mal; praticam mau jornalismo, quer no emprego destas metáforas, quer na insistência do seu uso.

É viciosa e contém solecismo este tipo de construção: “Ler livros é hábito. O que propicia cultura.”; “Vieram muitas pessoas. O que me contentou.”; “Leônidas venceu a batalha. O que salvou a Grécia.” Separam-se em frases orações concernentes ao mesmo período, que devem estar unidas, pois contém complementos: “Ler livros é hábito, o que propicia cultura.”; “Vieram muitas pessoas, o que me contentou”; “Leônidas venceu a batalha, o que salvou a Grécia”.
Tal tipo de formulação é evidentemente errado, deselegante e manifesta inépcia na arte de redigir. Grassou nos anos de 2000 e persiste: algum inepto usou-a; outros incautos imitaram-na, um e outros sem nenhuma percepção da sua erronia e da sua deselegância.
Que o primeiro inepto a usasse, denuncia-lhe despreparo; que se difundisse o vezo, evidencia o quão despreparados se encontram os escreventes brasileiros.

Até certo ponto, o emprego dos recursos de comunicação são miméticos: as pessoas imitam-se entre si e penso que tanto mais imitam quanto mais pobres de cultura literária. É o que observava nos meus tempos de escola e de faculdade, entre dezenas de condiscípulos que jamais haviam lido um livro sequer na vida ou, se tanto, os que a escola obrigava a ler. Todos expressavam-se com os prosaísmos do momento, todos empregavam modismos e gírias, e apresentavam pauperismo léxico.

Era eu o único que li (fiz questão disto) alguns clássicos da língua portuguesa durante o curso ginasial e jurídico: Eça de Queiroz quase inteiro, Joaquim Manoel de Macedo, Raul Pompéia, Euclides da Cunha, Antonio Vieira e não só; também Ortega y Gasset, no original; era leitor assíduo e constante. Eis porque sempre se notou e me observavam que eu “falo direitinho” (locução que empregavam; ela própria é sintoma da pobreza lingüística do locutor), ao que respondia: “Uso o que aprendi na escola e sempre li muito”. O interlocutor quedava-se mudo, paralisado, quiçá estupefacto, sem reação; fitava-me com a cara-de-bunda típica em Curitiba.

É valiosa a variedade léxica, bem assim saber-se variar a construção das frases e, portanto, dispor de riqueza de meios expressivos. Evitava e evito, cuidadosamente, os modismos, as vulgaridades, os lugares-comuns em curso, o que os meus circunstantes (colegas, amigos e mais gente) facilmente percebiam. Também evito o rebuscamento e a prolixidade, vezos típicos do pessoal jurídico (possivelmente já declinante, e ainda bem.). Cotejadas as minhas petições com as dos demais advogados, as minhas eram perceptivelmente diferentes, na sua redação: redatavam-nas, eles, em gíria jurídica e com prolixidade; eu as redigia como quem é dotado de cultura literária. E que diferença ! Não as redigia como quem escreve literatura; produzia peças técnicas; a diferença está no critério com que redige quem sabe o que é bom texto e o que é mau texto; com que evita prolixidade e jargão e emprega concisão, clareza e a (insubstituível) terminologia jurídica.

Ao pessoal jornalístico e universitário brasileiro, aos redatores brasileiros, desde décadas, falece cultura literária: ler bons autores do idioma (aliás, ela falta aos brasileiros, em geral). Se fossem leitores, saberiam, pelo menos, reconhecer textos mal escritos, prolixos, rebuscados e viciosos, e evitá-los. Ao invés, no meio jurídico o floreio inútil e a prolixidade constituem virtudes. No meio jornalístico, os cacoetes representam expedientes fáceis para escrevinhadores sub-preparados.

Há formandos, mestrandos, doutorandos, mestres, doutores, pós-doutores, professores-doutores e professores-pós-doutores praticantes de cacoetes, vícios, solecismos, de redação por fórmulas: escrevem por obrigação funcional, a maioria sem haver adquirido familiaridade com os bons escritores do idioma; daí o espetáculo de textos acadêmicos que, esteticamente, deveriam ser melhores.

Sintoma infalível de pauperismo léxico é o leitor incompreender duas ou três palavras do texto e tachá-lo de rebuscado: na certa ignora o que seja rebuscado, provavelmente é incapaz de consultar um dicionário (certamente sequer possui algum), tendencialmente resistirá a prosseguir a leitura. Não se privará de increpar o estilo “difícil” do autor nem se sentirá pejado da sua limitação vocabular.

 

Mostruário de lugares-comuns:
1) O excrescente, prolixo, redundante e ambíguo VÍCIO DA DUPLICIDADE. É urgente os escrevinhadores brasileiros convencerem-se de que quem o comete, escreve MAL. Por exemplo: “Augusto Comte, criador do Positivismo, escreveu livros; são bons os livros do francês”. Agora, sem o vício: “Augusto Comte, criador do Positivismo, escreveu livros, que são bons.” ou “Augusto Comte, criador do Positivismo, escreveu bons livros.”
Outro: “A UFPR tem vários professores que lecionam na entidade com 20 horas.”. Sem o vício: “A UFPR tem vários professores que nela lecionam com 20 horas.”. Mais um: “Não toque na pia. A peça é frágil”. Sem o vício: “Não toque na pia; ela é frágil.”.

Repetir o sujeito pode ser valioso e não é necessariamente defeituoso; é necessariamente defeituoso usar paráfrases que duplicam o sujeito (porventura, também o complemento), alongam a frase, tornam-na prolixa e dúbia. Evita-se a repetição do sujeito pelos pronomes: ele, eles, ela, elas, lhe, lho, lhos, lha, lhas. É escandaloso desconhecer-se a função dos pronomes e o seu uso.
2) Vício de “algo”: “Ler é algo bom”. Sem a vulgaridade: “Ler é bom.”.
3) Vício de “registro”: “Tenho registro fotográfico” por “Tenho fotografia”; “O contraste entre imagens e texto esclarecem aspectos. Nestes registros, há boas informações.”. Sem o vício: “O contraste entre imagens e texto esclarecem aspectos. Neles, há boas informações.”
4) Vício de “projeto”: “Fulano lançou um livro; é o seu primeiro projeto”.
5) Vício de “todo um”: “No Brasil há todo um contexto de crise.”.
6) Vício de “bem claro”: “Deixei bem claro o que pretendo”.
7) Vício de “a gente”: “A gente quer.”
8) Vício de “o que”: “Possuo muitos livros. O que me alegra.” Forma correta: “Possuo muitos livros, o que me alegra”. Não se pode separar um elemento da frase, do outro, no caso.
9) Vício de “possuir”: “Possuo dor-de-cabeça”, “O brasileiro possui virtudes”, por “Tenho dor-de-cabeça”, “O brasileiro tem virtudes.”.
10) Vício de “ganhar”: “Curitiba ganha mais um restaurante”, “Fulano ganha respeito”, “Tal partido tem ganhado eleitores”. [Vulgaridades plebéias: “Fulana ganhou nenê”; “A aluna ganhou um ponto do professor”. As mulheres não ganham bebês: concebem-nos.].

11) Vício do emprego do futuro pelo passado: “Aristóteles vai dizer que […]”. Aristóteles já morreu e o que disse, disse no passado. Logo: “Aristóteles disse que […]”.

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