“Fake news” ou desinformação.

                                                                       Arthur Virmond de Lacerda Neto. 7.VI.2020.

 

Há meses, trivializou-se a locução “fake news”, que os media empregam para nomear a divulgação maciça e deliberadamente manipulada de informações falsas, engendradas intencionalmente com fins políticos.

“Fake” é adjetivo de coisa: objeto contrafeito, falsificado, imitado; é adjetivo de pessoa: impostor, charlatão; é verbo: contrafazer, falsificar, forjar. Assim, “fake news” é traduzível (em sentido literal) por “notícias contrafeitas”.

“False” é adjetivo de pessoa: indivíduo falso, dissimulado, fingido, e de coisa: objeto falso, de fantasia, imitante o verdadeiro, contrafeito.

Em inglês, “fake” e “falso” equivalem-se.

A notícia apenas falsa corresponde à mentira (com dolo ou sem ele, esteja-lhe o autor cônscio de que partilha conteúdo falso ou não); a “fake new” corresponde à mentira congeminada intencionalmente, de cujo teor se cogitou, que se maquinou com vistas a induzir a opinião pública em dado sentido, a formar corrente de opinião conveniente aos interesses de seu mentor; ela constitui desinformação difundida em grande escala, para multidões, destinada à massa: é desinformação maciça ou simplesmente desinformação (“fake new” na acepção em que corre tal locução).

Vladimir Volkoff define desinformação como manipulação da opinião pública para fins políticos graças a informação trabalhada por processos ocultos. Ela I) é aplicada não a pessoas individualmente visadas mas à generalidade do público, ao grande número; II) sua destinação é política, ela exerce-se no âmbito das disputas de grupos que almejam o poder político, nele permanecer e dele alijar seus êmulos; III) faz-se com informações, com dados que se cria deliberadamente, como produtos da análise das circunstâncias presentes e das reações que se deseja surtir; IV) é engenhada às ocultas, sigilosamente, sem que se possa facilmente identificar-lhe os mentores.

A desinformação é diferente da propaganda, da publicidade, da intoxicação. Todas comunicam conteúdos, mas:

a) a propaganda não se volta necessariamente ao grande público e caracteriza-se por ser confessada, explícita, reconhecível como tal. Louve ou denigra objeto, pessoa, nação, ocorrência, instituição, seu intuito é precisamente o de louvar ou denegrir, sem mais intenções. Por exemplo: “a homofobia é censurável pois causa sofrimento injusto”, “fulano merece nossas homenagens”.

b) a publicidade aplica-se ao grande público e visa a promover pessoa, objeto, produto, mercadoria, para granjear em seu favor a preferência de fregueses, compradores, tomadores de serviços, mais por sedução do que por persuasão. Ela menos argumenta do que associa seu objeto a outros, potencialmente atraentes. Por exemplo: “Os brinquedos Estrela brilham no céu de seus filhos”; “Ler livros de Harry Potter resolve seus problemas em um passe de mágica”.

c) a intoxicação consiste na propinação de informações falsas a destinatários específicos para levá-los a tomar decisões erradas, favoráveis ao intoxicador. Por exemplo: o espião propicia ao inimigo militar dado falso para que o respectivo chefe adote estratégia que lhe seja inútil.

As notícias contrafeitas, tal como a elas se refere a locução “fake news”, correspondem a informações engendradas criteriosa e sigilosamente para despertar correntes de opinião em matéria política: elas coadunam-se com o conceito de desinformação. As mal chamadas “fake news” são desinformação. Em lugar de referirmo-nos à investigação das “fake news”, referir-nos-emos melhor à investigação da desinformação; em vez de dizermos que fulano foi acusado de propalar “fake news”, diremos que o foi de propalar desinformação.

O vocábulo “desinformação” é usável coloquialmente, bem assim no meio jurídico e noticioso. Jornalistas, comentadores, juristas, populares, podem servir-se dele em lugar de “fake news”, que substitui à perfeição. Erradiquemos tal locução; empreguemos, sempre e orgulhosamente, o vernáculo “desinformação”.

A nomenclatura dos crimes exige esmiuçamento: “prevaricação”, “concussão”, tráfico” e os demais seus nomes são palavras cuja compreensão depende de definição, que por sua vez contém elementos técnicos de direito penal. O nome do crime identifica dado comportamento e resume os elementos que a respectiva definição e a doutrina explicitam; por isso, ao chamar-se as notícias de desinformadoras e ao referir-se à desinformação, a definição do crime ou o exame do jurista conterá os elementos de falsidade intencional, de propagação maciça, de dolo, de sigilo na sua produção, de afã de influir na opinião pública.

Se inexistisse o vocábulo desinformação, poder-se-ia substituir aquela expressão por tradução, sucedâneo ou neologismo (demais, qualquer estrangeirismo é substituível por qualquer uma dessas formas): como tradução dir-se-ia, por exemplo, “notícias fabricadas”; como sucedâneo dir-se-ia, por exemplo anti-verdades ou contra-verdades; como neologismo dir-se-ia, por exemplo, pseudança (pseudo + ança). Dir-se-ia e podemos assim dizer.      Desinformação maciça, desinformação, notícias fabricadas, anti-verdades, contra-verdades, pseudança, dentre outras conceptíveis, são seis formas aptas a inculcar em vernáculo o que com estrangeirismo dispensável a carência de espírito vernacular de uns e a abundância de espírito de mimese dos demais pôs em circulação.

Como qualquer inovação terminológica, bastou o uso da expressão “fake news” para que, sem necessidade de explicações semânticas, rapidamente as pessoas compreendessem-lhe o significado, após alguma estranheza e dúvida iniciais. Da mesma forma, sem carecerem de elucidações léxicas, depressa as pessoas atinarão no sentido dessas alternativas: basta empregar qualquer uma delas no contexto correto.

Anos atrás, leram em inglês “impact” e fabricaram impacto e impactar, não no sentido legítimo, em português, de colisão, choque, embate violento de massas sólidas e sim no de efeito, conseqüência.

Atente em que “impacto” no sentido de efeito não integra o português legítimo: é estrangeirismo (anglicismo). Atente em que impactar no sentido de produzir efeito não pertence ao português puro: é estrangeirismo (anglicismo).

Bem traduzir não é imitar, não é decalcar, não é ler “impact” (na acepção de efeito) e verter por “impacto” e sim ler “impact” (na acepção de efeito) e verter por efeito, conseqüência, influência, consectário; é ler “to impact” e verter por afetar, interferir em, entender com, dizer respeito a, prejudicar, lesar, beneficiar, favorecer e sem-número de verbos consoante o contexto.

Diremos, pois: “Os efeitos da pandemia na economia”, “As conseqüências da crise política”, “Como o vírus afeta seu corpo”.

“Impacto” e “impactar” são exotismos desnecessários, cafonas e que já enjoaram. Público em geral e diários desdenham de usar sete e mais palavras vernáculas que os substituem com vantagem da variedade e da precisão.

Também leram, em inglês, “to shock” e fabricaram “chocar” (“Estou chocado”, “Fiquei chocado”). Chocar é a galinha que choca o ovo. Traduzir com qualidade consiste em ler “to schock” e verter por pasmar, abismar, espantar, perplexar, surpreender, impressionar, estarrecer, siderar.

Isto de “impacto”, “impactar” e “chocado” é mau português e monótono; “fake news” sequer português é. Nosso rico e belo idioma têm inúmeras palavras genuínas, que nos dispensam desses estrangeirismos. Público em geral e gazetas em especial, se querem comunicar-se com qualidade, devem evitá-los e procurar, sempre, boas soluções vernaculares.

Qualquer peregrinismo elimina vários vernacularismos ou, quando menos, o equivalente vernacular, se um somente houver. Nunca os estrangeirismos enriquecem o idioma quando ele já dispõe da palavra equivalente; eles não se somam aos vocábulos do próprio português, mas substituem-nos e com isso estreitam nossa variedade de comunicação, nossa beleza estética, nossa pureza idiomática e nossa capacidade de pensarmos e nos comunicarmos com rigor e exatidão. A cada vez em que se aceita estrangeirismo rival de palavra (ou mais de uma) em português, nosso vocabulário mingua. Quem já sabe que “detalhe” (do francês “detail”) é galicismo que excluiu pormenor, minúcia, minudência ? Quem já sabe que o galicismo “envelope” erradicou sobrecarta e sobrescrito ? Quem diz o horrível “caubói” já desaprendeu vaqueiro, pegureiro, boieiro. A francesia “elite” proscreveu escol, nata, fina-flor. Quatro francesias aniquilaram onze palavras. O mesmo se passa com as importações do inglês.

Leram “task force”, que traduziram por “força-tarefa”, o que é despautério. O equivalente vernacular das palavras e locuções decorre de sua tradução literal, de sua tradução aproximada ou de neologismo. A tradução literal deve fazer sentido em português, o que não é o caso de “força-tarefa”, perfeitamente substituível por junta de trabalho, junta de ação, junta de atividade, grupo de trabalho, grupo de ação, grupo de atividade, junta ou comissão. Quem por primeiro decalcou “task force” em “força tarefa” traduziu mecanicamente, palavra por palavra, o que leu em inglês, sem procurar termo vernacular equivalente. Ter-lhe-ia sido facílimo encontrar “comissão”. É o mesmo caso das construções do inglês “procurar por”, “buscar por”, “pesquisar por”, erradíssimas em português.

A feíssima palavra “brainstorm” deve ser repelida em favor de, por exemplo, sessão de atenção, reunião de inteligência, jornada de soluções, esforço teórico. Já prescreveu (e ainda bem) “email”, substituída por mensagem eletrônica ou apenas mensagem. “Pen drive” traduz-se literalmente por “caneta dirigir” ou “dirigir caneta”, o que manifestamente nos é absurdo. Por que não “mini-arquivo” ou “mini-memória” ?

Todo estrangeirismo é suscetível de substituição por equivalente vernacular. Traduza literalmente se fizer sentido; introduza neologismo com afixos e raízes gregos, latinos e vernaculares, e consoante a morfologia vernacular (consulte gramáticas); aportuguese (esqueite, esfirra, pitsa); repila sempre os estrangeirismos: assim proceder integra a educação da pessoa e a sabedoria em idioma.

Louvo o proceder dos portugueses e sirva-nos ele de exemplo: traduzem ou adaptam quase tudo às formas do vernáculo. Lá surgiu “teletrabalho” no início do confinamento na atual pandemia. Também lá, há décadas, grafa-se equipA e controlO, aportuguesamentos corretíssimos do francês “equipe” e “controle”. Também lá até as crianças usam mesóclise, tu, nós, vós, e todos três corretamente conjugados.

Em PDF: Desinformação e fake news

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