O cacoete de perguntar “Tudo bem ?”

                                    O cacoete de perguntar “Tudo bem ?”

                                                                                   Arthur Virmond de Lacerda Neto.

   A vida de relação implica o ato de saudar: a saudação ou cumprimento consiste em algum dizer ou gesto que exprime o reconhecimento de outrem como pessoa que nos integra o ambiente humano, se já o conhecemos; se não o conhecemos, exprime gentileza.

A saudação oral pode fazer-se por afirmações, como os clássicos bons-dias, boas-tardes, boas-noites, os populares oi e olá. Também há modos um tanto formais: “Como vai ?”; “Como está ? Passou bem ?” (em Portugal); “How do you do ?” (na Inglaterra, a que se reciproca não com resposta, senão com contra-pergunta idêntica); “How do you going ?” (nos EUA). Todos os cumprimentos interrogadores geralmente são convencionais e insinceros.

As formas interrogadoras veiculam, teoricamente, a preocupação do saudador para com o saudado: é como se nos interessássemos por seu bem-estar, felicidade, saúde, paz de espírito. Porventura entre amigos ou familiares ou da parte de gente sinceramente empática e solidária será assim; da parte da maioria das pessoas, tais fórmulas são puramente convencionais e exteriores, são formalidades.

Nos anos 1970, entre alguns brasileiros, soía-se perguntar como iam as coisas, como a pessoa estava, se lhe estava tudo bem, se esposa, filhos, pais iam bem. Indagava-se sinceramente à espera de respostas verazes entre quem havia liberdade para perguntas de foro íntimo, em diálogos em momentos oportunos, em circunstâncias de alguma reserva.

À roda de 1980 ou 1981, tal tipo de indagação entrou a trivializar-se: as pessoas faziam-na sem haver liberdade que as autorizasse, fora de um mínimo de intimidade que tornasse as perguntas bem-vindas. Elas passaram a tornar-se indiscretas, a invadir a vida particular alheia; como defesa, os indagados respondiam afirmativamente, para encerrar o assunto. Dada a pergunta de como vão em casa ou se estava tudo bem com a pessoa, quem respondia não desejava expor sua intimidade nem falar de seus problemas e respondia, defensivamente, que todos iam bem e que estava tudo bem.

Já em 1984, a pergunta “Tudo bem ?” era convencional, com resposta igualmente convencional. Havia variantes, todas interrogadoras: tudo legal ?, tudo em cima ?, tudo jóia ?, tudo azul ?, tudo na santa paz ?, tudo na santa ?. Sempre se indagava da vida particular alheia; majoritariamente a resposta era afirmativa, para evitar a exposição do que não era da conta do interrogador.

As pessoas respondiam que estava tudo bem, tudo legal, tudo na santa paz precisamente porque não lhes ia tudo bem, não lhes estava tudo legal ou na santa paz e desejavam preservar sua intimidade da intrusão alheia que, para mais, sujeitá-los-ia a palpites inconvenientes e até a mexericos. As pessoas reagem mal a intromissões em suas vidas nem querem ser assunto dos fofoqueiros. Eis a lógica do diálogo fastidioso difundido atualmente: “Tudo bem ?”, “Tudo bem.”

Perguntas supõem respostas; também devemos supor a verdade, não a mentira. Em si, a interrogação “Tudo bem ?” implica saber se tudo, se todos os aspectos da vida nos vão bem, se nossa vida financeira, afetiva, conjugal, sexual, profissional, vai bem. Como pergunta, ela constitui verdadeira invasão da intimidade alheia, de que nos protegemos com a resposta mecânica “Tudo bem”.

Indagar “Tudo bem ?” e responder “Tudo bem” não é somente questão de bons modos, de educação; já o é de fingimento, de artificialidade dispensável. Raramente seja lá quem for está preocupado com o bem-estar alheio: a pergunta geralmente é apenas retórica, a resposta é geralmente estereotipada e fingida. Não precisamos, não devemos, fazer de nossos cumprimentos exercícios de falsidade.

Se alguém responde que não lhe está tudo bem, o diálogo cessa ou o indagador surpreende-se (esperava apenas a resposta estereotipada); se se explica por que não está tudo bem, passa-se por maçador (o autor da pergunta não está interessado em ouvir os problemas alheios); raramente o indagador será solidário e insistirá com “Como posso ajuda-lo ?”

Na mania perguntadora, alguns encavalam duas ou três perguntas, todas igualmente relativas à vida pessoal: “Tudo bem com você ? Beleza ? De boa ?”. É impertinente e dispensável.

Alguns pensam que perguntar é desejar (desconhecem a lógica das perguntas e a dos votos). Desejamos por afirmações, não por indagações: fazemos votos de boa prova, bom final de semana, bom descanso afirmando: boa prova, bom final de semana, bom descanso, não por indagações: “Boa prova ?” , “Bom final de semana ?”, “Bom descanso ?”. Interrogar “Tudo bem ?” não exprime voto de que esteja tudo bem com a pessoa; tal voto comunica-se por afirmações como fique bem, passe bem, tudo de bom.

Para muitos, “Tudo bem ?” é adendo artificial dos cumprimentos bons-dias, boas-tardes, boas-noites, oi, olá; em muitas situações, tal indagação é o próprio cumprimento; até em mensagens eletrônicas ela consta sem, evidentemente, que se lhe deva responder, o que a torna ornamental e excrescente. “Como vai ?” e equivalentes são igualmente artificiais, meramente protocolares e dispensáveis.

Perguntar “Tudo bem ?” para todas as pessoas que cumprimentamos, em todos os momentos, todos os dias (como no comércio e nos serviços, em que caixeiros, caixas, atendentes perguntam-no dezenas de vezes por dia) e responder “Tudo bem” todos os dias, em todos os momentos, como se a vida alheia fosse da conta de quem interroga e como se tudo fosse às maravilhas na de quem responde, é caricato, falso e muito chato.

Saudemos com: oi, olá, bons-dias, boas-tardes, boas-noites, salve, fulano (prenome da pessoa); evitemos perguntas “sociais”; reservemos “Tudo bem ?” para as raras situações de intimidade, quando realmente nos preocupemos com o interlocutor, quando o momento e o ambiente forem apropriados para a pergunta e para a resposta. Não pergunte; não responda: nada perderemos em civilidade e abandonaremos um vício.

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