Advérbio de modo terminado em “mente. Adjetivo adverbiado.

            Os adjetivos qualificam os objetos de que se fala e as pessoas de quem se fala: livro interessante, homem erudito.

            Os advérbios qualificam as ações e os adjetivos; no primeiro caso, eles estão para os verbos, é a eles que se aplicam: correu depressa. Os advérbios de modo especificam a maneira, o modo, a forma, como se produziu a ação; daí seu nome. Por exemplo: “alguém entendeu de modo rápido” ou seja, entendeu de maneira rápida, de forma rápida, rapidamente.

            “Entendeu rapidamente” equivale a “entendeu rápido”: no primeiro caso, há advérbio de modo, com terminação mente, enquanto no segundo emprega-se adjetivo adverbiado, com figura de advérbio, adverbiadamente.

            É de uso vernacular e antigo (presente em Camões, Machado de Assis, Pinheiro Chagas, Alencar, Graciliano Ramos e outros tantos) adverbiar adjetivos, isto é, aplicar adjetivos em jeito de advérbios, como rápido em lugar de rapidamente: venha rápido, venha urgente, no que se chama intercâmbio taxeonômico ou, como termos da gramática, derivação imprópria, situação em que a palavra muda de classe gramatical sem alteração em sua forma[1].

            Contudo representa boa prática a de empregarem-se advérbios de modo com “mente”, sufixo vernacularíssimo e neles típico: cuida-se de graciosa plástica da língua portuguesa, de uma sua beldade.

            É legítimo e correto proceder de uma forma bem assim da outra, à escolha; entretanto, a terminada em mente explicita o modo por que decorre a ação, patenteia-lhe mais a qualidade, é lingüisticamente superior e esteticamente elegante.

            Em venha urgente justapomos um verbo e um adjetivo transfigurado em advérbio de modo; em venha urgentemente justapomos um verbo e um advérbio de modo. Na primeira sentença, urgente é adjetivo adverbiado, é advérbio por efeito do contexto, enquanto na segunda é advérbio propriamente dito, por inerência.

            O sufixo mente foi, antanho, substantivo feminino, com significado de intenção, modo, maneira, acepção conservada na locução de boa mente (com boa intenção). Em época posterior, justaposto aos adjetivos, como sufixo, originou os advérbios de modo com essa terminação: corretamente, urgentemente, altamente e assim por diante.

            Até cerca de 1990, no Brasil, era diariamente encontradiço, até predominante, o uso de advérbios de modo com desinência “mente”: diariamente, independentemente, rapidamente, altamente, automaticamente, principalmente, caladamente. Do público instruído e do vulgo em geral ouvia-se e somente se ouvia, por exemplo: “O cheque cai automaticamente na conta, por isto decidi independentemente da tua opinião e rapidamente livrei minha conta de ficar no vermelho”.

            No difuso e crescente fenômeno da degradação da fala dos brasileiros, suprimiu-se, coloquial e (quase) totalmente o sufixo “mente”, cuja subtração deu-se asinha e simultaneamente ao apoucamento lexical, à proliferação de vícios e de estrangeirismos, à supressão das preposições, da mesóclise, da segunda pessoa do plural, dentre outros amesquinhamentos.

            A fala coloquial do brasileiro médio (não exclusivamente do culto, do erudito, de alguns professores) de 2021 é muito menos rica e rigorosa do que a de gerações precedentes, o que inclui o desuso das formas com mente e sua substituição por adjetivos adverbiados, não porque o homem comum estivesse cônscio de ser correto usar assim e optasse por fazê-lo, senão como manifestação da crescente mediocrização da fala, de sua simplificação no emprego dos tempos, dos pronomes oblíquos, do vocabulário, e do advento de vários vícios de linguagem. Em finais dos anos 2010 a locução “a gente” envileceu ainda mais a fala, com a substituição dos pronomes retos e oblíquos, e das respectivas conjugações. Nesse quadro de achatamento geral, passou-se a prescindir a desinência mente, por preguiça, desleixo, opção pelo fácil, imitação do desleixado.

            Por outro lado (no contexto brasileiro contemporâneo) sabe a plebeísmo, a pobreza de idioma, a simplificação rasca e rasteira, desusar aquele sufixo e empregarem-se adjetivos à maneira de advérbios (“Vamos fazer o mais rápido possível, pois o pagamento vem automático independente do que a gente quer”). Por mais lícito que seja fazê-lo, à luz da vernaculidade e dos exemplos também dos clássicos, o fato é que estes assim escreviam em meio a seu exemplar e superior desempenho idiomático e não por espírito de simplificação, de preguiça, de desleixo, na mediocrização geral de que padece o português no Brasil dos anos 1980 a esta parte.

            Camões, Machado, José de Alencar, Pinheiro Chagas, Graciliano Ramos (e outros tantos) adverbializaram adjetivos, mas também sabiam empregar a desinência “mente”, à diferença do vulgo brasileiro, que já mal conhece a própria existência daquela terminação e por isso quase somente adverbializa adjetivos (sem ciência de que o faz).

            É gramatical dispensar a desinência “mente” nos advérbios, tanto quanto o é aplicar-lha; sabiam-no os clássicos, os próprios brasileiros de até uma ou duas gerações pretéritas e sabem-no os bons escritores, ao passo que o vulgo dela prescinde não por escolha, senão por ignorância e desleixo, como (mais uma) nota da mediocrização do vernáculo no Brasil, com sua inclinação para o fácil, para o coloquial raso, para a recusa da gramática tradicional, para a consagração das “variantes” lingüísticas.

            É ingênuo e falacioso, por isto, invocar-se a usança dos autores antigos e respeitáveis da língua portuguesa para coonestar-se a adverbialização de adjetivos: eles faziam-no por estilo e opção; a malta brasileira fá-lo por deseducação em idioma.

            Assim como a patuléia brasileira desaprendeu vocabulário, preposições (cidade EM que nasci, pessoa DE quem sou parente, sítio COM que tem afinidade, loja A que vou), os pronomes retos e oblíquos, a mesóclise, a segunda pessoa do plural, também desaprendeu os advérbios com “mente”.

            Presta desserviço todo gramático, todo estudioso, todo professor, que afirme o cabimento de adjetivos adverbiados (por intercâmbio taxeonômico, situação em que a palavra muda de classe, como é o caso dos adjetivos que se tornam em advérbios) sem realçar a existência dos advérbios com “mente”, sua genuidade e correção. Prestará serviço se, para mais de frisá-lo, frisar também que tal desinência acresce-lhes informação, porquanto significa “de modo”, “de maneira”, “de forma”:

— rápido (por rapidamente): subentende-se de modo rápido, de maneira rápida, de forma rápida.

— rapidamente: entende-se de modo rápido, de maneira rápida, de forma rápida.

            Afiançar a retidão gramatical dos adjetivos com figura de advérbios, sem destacar a existência e a qualidade das formas sufixadas (com “mente”) coonesta o desleixo, mantém a ignorância, transmite meia-verdade.

            É perfeitamente correto, elegante, enriquecedor aplicar-se aquela desinência e com ela comporem-se advérbios de modo. Além de outros caracteres da boa linguagem que é elogiável retomar-se no Brasil, um é o de preferirem-se as formas com mente aos meros adjetivos enroupados de advérbios.

            Os advérbios com “mente” são econômicos: eles substituem as perífrases de modo [+ adjetivo], de forma [+ adjetivo], de maneira [+ adjetivo]; exprimem com uma palavra o que naquelas locuções exige três.

            Estas construções equivalem, semanticamente, à desinência mente, que significa exatamente de modo, de maneira, de forma, quanto à ação. Elas são melhores do que uso do adjetivo adverbiado, porém melhores do que elas é o advérbio com desinência mente: I) enquanto o adjetivo adverbiado é adjetivo fantasiado de advérbio, adjetivo que faz as vezes de advérbio,

II) as fórmulas de modo, de maneira, de forma contém o acréscimo explícito de como decorreu a ação. Todavia,

III) com a terminação mente compomos genuíno advérbio e exprimimos, economicamente, com palavra única, o que requer três, naquelas construções.

            Construir com mente é superior, semântica e estilisticamente; fazê-lo com as fórmulas de modo, de maneira, de forma é correto, semântica e estilisticamente; fazê-lo com o adjetivo em jeito de advérbio é sofrível, semântica e estilisticamente.

            Enunciemos, pois:

            Fulano bateu forte. Fulano bateu de modo forte. > Fulano bateu fortemente.

            Decida, independente disto. > Decida, de forma independente disto. > Decida, independentemente disto.

            O pagamento cai automático. > O pagamento cai de maneira automática. > O pagamento cai automaticamente.

            Os humanistas, diferentemente dos glosadores, sabiam mais.

            Encontremo-nos urgentemente.

            Disseste altamente.

            Volte rapidamente.

            É de bom estilo, porque bem sonante, aplicar-se o sufixo mente apenas no derradeiro advérbio, em sucessão deles, referentes à mesma ação: “A cidade prosperou, rápida, uniforme e lindamente” em lugar de “A cidade prosperou rapidamente, uniformemente e lindamente.”

            Para, no entanto, realçar-se a nota expressa por cada advérbio, sói-se repetir o sufixo e omitir a conjunção e: “A cidade prosperou rapidamente, uniformemente, lindamente.”

            Anedota.

            Brasileiro que se armava em cultor do vernáculo, em missiva a gramático empregou a palavra “independentemente”. Ao dia seguinte, em nova carta para o mesmo destinatário pediu-lhe (humildemente) desculpas pelo erro, porquanto (somente agora o percebera) o correto é independente, ao que o destinatário (um tanto paternal e aduladoramente) explicou-lhe a equivalente correção de uma forma e de outra. Imagino que o missivista sentiu-se autorizado a nunca mais aplicar o sufixo “mente”.

            Atentai no ponto a que chegamos: ao em que sujeito amante do vernáculo reputou transviado construir advérbio sufixado (o que é corretíssimo) e correto servir-se do adjetivo em estado puro (o que é passável). Quando se chega a esta comédia, há algo de muito errado na ensinança e no conhecimento do vernáculo.

            Resumo: os advérbios de modo podem ser expressos por adjetivos, pelas locuções de maneira, de modo, de forma seguidos de adjetivo, pelo sufixo mente aplicado aos adjetivos. O desuso de mente, no Brasil, nos últimos trinta anos, constitui mais um índice do empobrecimento da língua portuguesa aqui; sua aplicação é superior às duas outras formas para comporem-se advérbios de modo.

            Preceito: priorize advérbios de modo com sufixo mente; evite tratar adjetivos como advérbios; pode adjetivar as ações pelas fórmulas de maneira, de modo, de forma.


[1] Formam-se substantivos próprios de apelativos (Raposo, Figueiredo, Porto), substantivos apelativos de próprios (damasco, porto, casimira, Bordéus), substantivos de adjetivos (o jornal, o diário, o justo, o brilhante), substantivos de pronomes (o eu, o tudo, o nada), substantivos de verbos (o querer, o poder, o estudar), substantivos de palavras invariáveis (o sim, o não, os prós e os contras), adjetivos de substantivos (menino prodígio, homem gigante), preposições de adjetivos (exceto, durante), conjunções de verbos e advérbios (seja…seja, apenas, ora), interjeições de nomes, pronomes, verbos ou advérbios (misericórdia !, bravo !, viva !). Vide Eduardo Carlos Pereira, Gramática Expositiva (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1948, 74ª edição, pp. 193-4).

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