REGRAS PURITANAS DE VESTUÁRIO.

                               REGRAS PURITANAS DE VESTUÁRIO.

5 de abril de 2016.

Arthur Virmond de Lacerda Neto.

A XXX, de Curitiba, é faculdade mantida por religiosos cristãos.

Segundo notícia da gazeta “Didata” (do Sindicato dos Professores de Ensino Superior, do Paraná, no seu número de janeiro a março de 2016) baixou-se, na XXX, código vestimentário que, justa e merecidamente, o “Didata” increpa, como puritano.

Imposto a professores, alunos e funcionários, segundo o código “não será permitido, no caso dos homens, o uso de bermudas, regatas, boné”; no caso das varoas, de “decotes, bermudas, shorts, frente única, tomara que caia, saias e vestidos a menos de dois centímetros acima dos joelhos”. Também se proíbem, a homens e mulheres, envergarem camisetas e camisas vetoras de insígnias de times (provavelmente refere-se ao jogo da pela).

Vestidos e saias devem obedecer à metragem de comprimento limitado a um par de centímetros acima dos joelhos. A conseqüência lógica da prescrição relativa à medida das saias e dos vestidos consiste (conjecturo) em a XXX, no interesse da sua efetiva observância, manter funcionário incumbido de fiscalizar a metragem deles.

Imagine a cena (hipotética?): a professora doutora ou a aluna sendo medida, com fita métrica, nas suas regiões inferiores, pelo bedel, a fim de se apurar a compatibilidade da sua saia ou do seu vestido com a extensão prescrita. Todas as mulheres devem enfileirar-se e submeter-se à mensuração: as puritanamente vestidas acederão à faculdade; as demais serão enjeitadas como indecorosamente enroupadas: se assim não for, falhará a XXX em cumprir e fazer cumprir as suas determinações. Afinal, as regras são para serem observadas. O mesmo em relação a todas que expuserem ombros, colo, pernas, coxas, pés, tudo partes inapresentáveis nos recintos da faculdade em questão.

As pessoas procuram as faculdades para nelas aprender e nelas trabalhar; é sensato elas poderem vestir-se com normalidade, consoante os padrões socialmente vigentes; as faculdades são instituições que acolhem pessoas comuns da sociedade, que se portam e se trajam como o faz o comum das pessoas da coletividade em que se acham insertas as faculdades e o respectivo público; elas não são conventos nem monastérios e é de mínimo bom senso e normal que as pessoas possam vestir-se na escola como o fazem usualmente, a salvo de imposições imbecis, como as da XXX.
Não me surpreende: a XXX é dirigida por membros da igreja católica: eis a religião na vanguarda do atraso, da caretice, vetora do pudor.

Por que tanto zelo com o encobrimento do corpo? Será porque os padres percebem ou imaginam sexo em tudo? Porque, proibidos de ver mulheres desnudas e de satisfazer à sua concupiscência, jungidos à castidade, tencionam proibir os outros de ver, escassamente que seja, o corpo alheio? Por ressentimento e inveja seus? Para “defender a moral e os bons costumes”?

Com semelhantes padrões de pudor, indago-me se na XXX aceitam homossexuais, masculinos e femininos, que se exprimem ao seu modo, vale dizer, mulheres viragos e homens efeminados. São mal vistos e mal quistos pela direção da XXX por afrontarem o modelo hetero-normativo ? Por sugerirem, com os seus trejeitos, coitos sodomíticos e esfregações lésbicas, que a igreja condena ? Ou a XXX admite-os, desde que enrustidos ? Se o estudante apresentar modos efeminados, expulsam-no? Se for mulher virago, crucificam-na? Se docente fanchono, demitem-no? Se lá pretender matricular-se um transexual, recusam-no sumariamente? Ou recomendam-lhe “discrição” ? São interrogações pertinentes que se alinham com o estalão de moralidade e de austeridade que porta o código.

Há mais: o pundonoroso regimento prescreve “abster-se de manter contato físico com os alunos”. Que raios é isto ?? Não se pode transar no pátio, masturbar-se a dois nos banheiros, cumprimentar com a mão, abraçar, beijar ou o quê ?? A mensagem de Jesus transmitia fraternidade: amai-vos; já o adendo “porém não vos toqueis” constitui inovação da XXX.

Tanto quanto percebo, supõe o código que o toque porta, por inerência, intuito lúbrico. Qualquer tocamento é impudico, todo contato é inevitavelmente inspirado pela luxúria e porta mensagem libidinosa ? Obviamente não é assim, máxime em meio a gente calorosa e simpática, afeita a tocar como expressão de cordialidade e de sentimentos. Contudo, na sensibilidade clerical, tocar é voluptuoso e deve, por isto, evitar-se. Qualquer pessoa capaz, licitamente, de vida afetiva e sexual, sabe distinguir o toque sensual do caloroso; qualquer pessoa dotada de vida de relação normal reconhece valor de simpatia humana e não de erotismo nos toques físicos entre amigos, parentes, colegas, estranhos.

Referi-me às pessoas capazes de vida afetiva e sexual lícita, e às dotadas de vida de relação normal: não é o caso dos padres. Ao contrário: por excelência, todo padre, toda freira, são seres a meias, emasculados na sua vida de relação, exautorados da possibilidade de exercerem vida de afetos e de volúpias; impedidos, por dever de ofício, de amar e de satisfazer à sua libido, na sujeição ao voto de castidade. São seres diminuídos em parte das dimensões em que o ser humano exerce a sua natureza e em que se realiza e, por isto, provavelmente frustradas, possivelmente ressentidas e invejosas dos profanos, que praticam o que a eles lhes é vedado.

Também se recomenda evitar-se propiciar carona de casa para a escola e vice-versa. Alguém teme que da escola se vá ao motel ??  Todos quantos estudam e laboram na XXX são, já, adultos e dotados de discernimento bastante para averiguar da conveniência ou inconveniência de facilitar-se deslocamento a terceiros quaisquer ou de dele usufruir. Como professores, funcionários e alunos deslocam-se da escola ou para ela, pertence ao âmbito da liberdade e da conveniência de cada qual, em que as pessoas encontram soluções consoante os seus horários, trajetos e facilidades. Há impertinência da XXX em desaconselhar o seu pessoal a tomar e a oferecer carona: fazê-lo, ou não, é da conta dos próprios e não da XXX.

Talvez a XXX haja baixado tal recomendação inspirada pela santa preocupação de evitar envolvimentos afetivos entre os integrantes do seu público. Dos afetivos, temerá ela que se degenere para os sexuais. Ou nada disto ela supõe: talvez ela receie que, da familiaridade suscitada pelo convívio e pelo favor da carona, resultem favorecimentos dos professores pelos alunos obsequiadores. No último caso, julga ela mal da lisura dos seus quadros e supõe-nos demasiadamente influenciáveis, ao ponto em que mesmo o obséquio de uma simples carona representa perigo de parcialidade.

Melhor faria a XXX em insistir no dever, do docente, de tratar a todos os alunos com isenção, ao invés de se imiscuir na vida privada de alunos e professores, de julgar a estes  preconceituosamente e de forcejar por dissuadi-los de facilitarem transporte àqueles.

A XXX não cogitou do cultivo da fraternidade cristã, do exercício do coleguismo, da utilidade logística, do conforto. Entre colaborar e não o fazer; entre a solidariedade e a indiferença; entre o espírito cristão e a sua negação, a XXX recomenda as primeiras alternativas. “Vá de ônibus!”.

Se professor envolve-se com aluno ou aluno com colega, afetiva ou sexualmente (ou de outro modo) a vida privada deles diz respeito aos próprios e não à XXX. De quem e como professores e alunos se aproximam, na sua privacidade, não interessa a ninguém mais além deles e de terceiros a quem, na respectiva privacidade, o envolvimento porventura afete. Se o professor interessa-se por aluna ou por aluno; se algum aluno transa com outro; se da escola dirigem-se para a bacanal ou para o cenóbio, nada disto é da conta à XXX.

A escola não pode pretender regular a privacidade do seu pessoal; pode e deve esperar e exigir que os seus professores e alunos saibam exercer corretamente a sua vida acadêmica. Mais do que isto constitui evidente abuso da escola, que incorpora e fomenta o sinistro vício fiscalizador de muitos brasileiros, que se ocupam em observar a vida alheia e julgá-la. Cuide da sua vida, que da minha trato eu e não se meta no que não é chamado.

O código de vestuário não se destina a “proteger” as mulheres do assédio masculino. Ainda que não houvesse cantadas, haveria as regras em causa: elas visam a consagrar os valores cristãos de somatofobia e de pudor.

Em relação às cantadas, impera educar-se os homens para respeitarem as mulheres. Não devem as mulheres encobrirem-se para pouparem-se das inconveniências dos homens, mas devem estes respeitá-las, independentemente da forma como elas se trajam.

No prédio “histórico” da Universidade Federal do Paraná, que lhe sedia o curso de Direito, observo alunos e professores (homens e mulheres) vestidos com toda a liberdade, rapazes de bermudas, moças de vestidos de alças e decotados. Se alguma mulher desejar poupar-se de inconveniências de alguns homens, cabe a ela, mulher, decidir se se traja com mais ou menos encobrimento, e não ao código de comportamento da faculdade. Quem deve saber se gosta ou desgosta das cantadas é quem as recebe e não os outros.

As regras em questão impõem trajes que certa padralhada reputa digna, alheios às noções de liberdade individual e de ridículo, porém abundantes de intervenção na soberania individual sobre o próprio corpo e de valores obsoletos, acerca das vestimentas e do pudor. Leio o tal código e recordo-me de fotografias de 80 ou 100 anos atrás, quando homens e mulheres, mesmo no calor do Brasil tropical, trajavam-se austeramente, velavam todo o seu corpo debaixo de inúmeras camadas de tecidos e mesmo no areal das praias vestiam-se camisolas com que os homens encobriam o seu tórax.

As moças usam bermudinhas e vestidos de alças. É-lhes o fato habitual, corriqueiro, inveterado na sociedade curitibana. Usam-nas e ninguém se escandaliza com isto. As alunas da XXX pertencem à sociedade curitibana e não aos conventos. É normal e expectável que elas trajem-se, no ambiente escolar, como o fazem na sua vida diária. Porém é como se as instalações da XXX representassem exceção ao mundo circundante: há o mundo em que se encontra a XXX e o mundo que a XXX criou, nas suas instalações. A diferença entre um e outro radica na austeridade conventual do vestuário de quem lhe acede e na presunção de impudor irrogada aos seus alunos, professores e funcionários: por princípio, são todos impudicos, cuja impudicícia é forçoso reprimir.

Aos padres irreleva o molestamento das mulheres; importam-se com a exposição do corpo, que lhes é imperioso encobrir. Trata-se da somatofobia (rejeição da exposição do corpo; valorização do seu encobrimento), típica do etos cristão, dissonante dos padrões culturais coevos e representativa do arcaísmo mental do cristianismo.

Nunca se me depararam estupidezes tão ridículas, insensatezes tão pronunciadas, intromissões tão inaceitáveis na privacidade alheia. São manifestações presumíveis de ressentimentos e de frustrações que se projeta em outrem na forma de proibições. Não é apenas para premunir-se a pedofilia (no que concerne ao clero) que o celibato clerical deve ser extinto: é, também, para propiciar-se sanidade psicológica aos padres, para não imaginarem eles malícia onde há inocência e, sobretudo, para pouparem os outros das manifestações mórbidas de que o sinistro código representa exemplo.

Cerca de 20 anos atrás (segundo me constou), os alunos do religioso colégio Medianeira (de Curitiba) promoveram parede (“greve”, em francês) na reivindicação do direito de vestirem bermudas. A direção da escola resistiu-lhes. Por quê ? Alguém via sexo nas pernas dos rapazes ? Alguém imaginava, dos joelhos para cima, o que anda no meio delas ? Bermudas, não: recalque, muito recalque; repressão como forma de vida que se sofre e que se impinge. Ou, quando menos, mentalidade pudica e conservadorismo de costumes. Afinal, a direção cedeu-lhes.

Prefiro a liberdade e as escolas em que as pessoas trajam-se ao seu modo. Aliás, admiro as escolas nudistas, da Alemanha e dos E.U.A. – nelas não há padres, obviamente, tampouco pudor nem vergonha do corpo nem a associação entre exposição do corpo e sexualidade, ainda menos a censura de ambas.

Abomino códigos de comportamento invasores da autonomia da liberdade individual, no que ela é inofensiva a outrem. E mais repilo a teologia, no seu etos e nas suas práticas, e mais insisto em que a moral deve fundamentar-se em motivos humanos, vale dizer, sensatos e laicos, o que não é o caso do pudor nem do puritanismo de costumes.

Parabéns ao Didata, pela denúncia desta aberração, em matéria que intitulou “IMORAL É TUDO AQUILO QUE EXCITA OS MORALISTAS”, a que sotopôs caricatura em que dois personagens dialogam:
-Confesso: fiquei excitado com esse código de conduta!
– Pode funcionar também para disfunção erétil…

“Castigat ridendo mores”.

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