Teoria crítica do Direito: erros sobre o Positivismo.

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                                                           Arthur Virmond de Lacerda Neto. 1º.XII.2019.

(Versão parcial).

Intitula-se Teoria crítica do Direito o livro de Luiz Fernando Coelho, publicado em quinta edição em 2019 (Curitiba, Bonijuris). Comento-o exclusivamente em relação ao Positivismo.

O nome Positivismo foi introduzido por Augusto Comte, autor da doutrina assim nomeada, da sociologia e de forma de humanismo que chamou de religião da Humanidade. Graças à obra de Comte e ao imenso prestígio que granjeou nos meios intelectuais, políticos, filosóficos europeus e latino-americanos, tal designação notabilizou-se.

As concepções de Comte são as legítimas detentoras do nome em questão e a elas refiro-me com inicial maiúscula, para diferençá-las do uso espúrio que dele fazem doutrinas outras, cujos mentores, partícipes e antagonistas  apropriaram-se do termo e aplicaram-lhes, mais mal do que bem, por extensão ou analogia, o que origina confusões por polissemia.

Devido a tal polissemia, em qualquer obra rigorosa que trate do Positivismo ou dos positivismos, é mister, antes de tudo, circunscrever exatamente a que o autor se refere com tal vocábulo; é imperioso distinguir o Positivismo (se dele o autor se ocupa) dos assim chamados positivismo jurídico, positivismo na historiografia, positivismo em geografia, positivismo em sentido coloquial. Não se admite, em obra nenhuma, ainda menos em obra doutoral, que o autor amalgame doutrinas distintas, como se concordassem entre si por coincidirem (infelizmente) no nome.

É tosco nomear Augusto Comte e invocar-lhe o Positivismo e, no mesmo ponto, mencionar “positivismo” sem mais especificações, e invocar autores de todo alheios à obra do primeiro.

Desta deficiência padece a Teoria crítica do Direito, que se abre com e como “reação a […] herança positivista” (p. 9), responsável por “exigência de cientificidade nos moldes do positivismo”. O livro vale-se do nome positivismo desde o seu intróito, sem explicitar ao leitor de que positivismo trata e qual recusa: não se sabe, nem o autor no-lo elucida, se repudia a obra de Comte, se o normativismo jurídico, se o positivismo lógico, se nada disto, se tudo isto, se um pouco de cada. Há confusão e obscuridade imperdoáveis, por imprecisão teórica própria de calouros.

Segundo o livro, os “moldes [de exigência de cientificidade] preconizados pelo positivismo” conduziram (p. 9):

1- “a uma especialização cada vez mais aprofundada dos estudos superiores”,

2- “a uma atitude cognoscitiva apegada às partes componentes, em prejuízo da visão de conjunto como um todo”, que

3-  “importou a (sic[1]) a descaracterização das ciências humanas como voltadas para o homem, substituído pelo evento, o fato isolado de seu contexto histórico-social.”

4-  “em psicologia, historiografia, economia e sociologia, toda a problemática das relações humanas viu-se reduzida ao estudo descritivo dos fatos.”

Malgrado a falha que apontei, as quatro críticas permitem-me e permitem a qualquer leitor bem-informado sobre a obra de Comte identificar, prontamente e fora de qualquer hesitação, a que doutrina ele não se refere: não se refere ao Positivismo, ao de Augusto Comte.

Realmente, dentre outras notas, o Positivismo caracteriza-se explicitamente por:

1-  Preconizar, não a especialização do conhecimento científico insuladamente de vistas de conjunto, porém o aprofundamento da cognição em cada ramo da ciência, sempre com vistas de conjunto, com visão global, com percepção do lugar de cada setor do conhecimento em relação a seus homólogos.

2-  Preconizar atitude cognitiva de relação, de ligação dos diversos ramos científicos entre si, por modo propiciar-se conhecimento dos métodos, doutrinas e resultados mais gerais de cada setor e de todos os setores.

3-  Preconizar, de conseqüência, nova especialização: a das generalidades científicas, a do engrazamento dos ramos científicos entre si, no que se chama atualmente de interdisciplinariedade, nome aliás estranho para designar a proposta Positivista, sem o rigor que lhe é próprio.

4-  Protestar pelo desiderato humanista da ciência, pela sua existência como instrumento útil à Humanidade, como conhecimento ao serviço do melhoramento da condição de vida das pessoas. Aliás, ao contrário do que pensa o senso comum ignorante, o Positivismo não é cientificista: ele fundamenta-se na ciência, porém não é por ela limitado nem encontra nela seu escopo; ele é humanista porquanto reconhece na Humanidade seu valor soberano.

5-  Asserir o princípio da associação do fato ao respectivo contexto social, em sentido alargado no tempo e no espaço, diacrônica e sincronicamente e julgar irracional insular o fato do respectivo contexto social. O ensino, aliás, preconiza Comte, desenvolve-se dogmática ou historicamente; na segunda forma, atinar-se-á sobremodo na dependência dos fatos relativamente ao estado de coisas humano, social, a que corresponde.

6-  Em psicologia, historiografia, economia e sociologia, a problemática das relações humanas não pode ser reduzida ao estudo descritivo dos fatos; não pode ser meramente empírico: deve ser propriamente científico, em que os fatos servem como informações destinadas a formularem-se leis que levem à ação. O Positivismo (disse-o Comte) recusa o mero empirismo; não é empírico: é científico, ou melhor, positivo.

Os 4 pontos de que a Teoria crítica do Direito se afasta, em nome da rejeição do positivismo (seja qual for) correspondem, item por item e fielmente, ao ideário do Positivismo. Se o autor da Teoria recusa dados “moldes”, também os recusa, enfaticamente, o Positivismo. Se o autor da Teoria imputa-os ao Positivismo, então dele recusa não o que ele realmente transmite, senão a imagem, aberrante, que dele formou. Como o autor eximiu-se de precisar que positivismo recusa e, ao enjeitá-lo não nomeia Comte, depreendo que não é ao Positivismo que se refere e que, a contrario, com ele converge e com ele coincide, pelo menos quanto ao que ambos rejeitam.

O longo capítulo VI (O referencial da dogmática jurídica) tem, como seu primeiro tópico “A concepção positivista do direito”. Já aqui, tal enunciado permitiria esperar-se o esclarecimento cabal que o autor negligenciou no seu prefácio. Qual nada: mantém-se confusão, que mal se desfaz.

Segundo Coelho, a “ambiência histórica que as revoluções burguesas consolidaram cristalizou-se” em uma filosofia, “o positivismo”. É cacoete típico de certa esquerda e de certos meios mal-informados imputar ao Positivismo condição de filosofia burguesa; neste sentido, ainda que por efeito de juízo discutível, depreendo tratar-se da obra Comte (p. 194).

O parágrafo seguinte menciona o “positivismo filosófico”, que “engendrou o positivismo jurídico”, ao que o sucessivo acresce: “Convém esclarecer, todavia, que não são expressões sinônimas. O positivismo jurídico é uma doutrina filosófica, resultado da elaboração racional que conduziu ao positivismo francês e alemão e que se expandiu por todo o mundo ocidental, inclusive para a América Latina.”

O autor discerne, portanto, duas correntes: o “positivismo filosófico” e o “positivismo jurídico” que, por sua vez, é “doutrina filosófica”. Como a primeira forma de “positivismo” é filosófica, conclui-se serem ambas filosóficas, com a diferença de que uma apenas é jurídica.

Ambos positivismos resultam de “elaboração racional” que conduziu, por um lado, ao “positivismo jurídico” e, por outro, “ao positivismo francês e alemão e que se expandiu por todo o mundo ocidental, inclusive para a América Latina.”

Esclareça-se o que o texto comunica obscura e confusamente: 1) chama-se de Positivismo a doutrina filosófica desenvolvida por Augusto Comte e que se entranhou nos meios intelectualizados e políticos do Brasil, França, Inglaterra, Suécia, Chile, Argentina, México, Itália e não só. 2) Chama-se “positivismo jurídico”, juspositivismo ou normativismo a doutrina jurídica que entende o direito como o “conjunto de normas postas pelo Estado.” (p. 195) o que caracteriza, segundo o autor, “o ponto de vista positivista”, ou seja (elucido) o modo de ver normativista ou juspositivista e não Positivista.

Dois parágrafos além, o autor expõe: “Apesar de o positivismo ter tido a França como seu ambiente natural […]”. Ora, Augusto Comte era francês e produziu toda a sua obra na França, do que depreendo que, neste lugar, o autor alude ao Positivismo.

No páragrafo sucessivo, com o emprego, sem mais, do adjetivo positivismo, o autor nomeia Augusto Comte, como “criador” da “filosofia positivista”, a respeito da qual desenvolve considerações mais ou menos corretas e imperfeitamente claras.

Após nomear Hegel, de quem sumariamente ventila, o autor nomeia Sthal e o empirocriticismo (“desde Avenarius, Wundt e Mach” […]”, p. 196), como encarnações do “espírito positivista” (p. 196), ainda sem precisar a que positivismo alude. Com o empirocriticismo e com tais autores, já não se trata do Positivismo nem do normativismo, porém do mal-chamado positivismo lógico ou neopositivismo, que nenhuma relação guarda, diretamente, com a obra de Comte. Disto por diante (p. 196), é somente ao cabo de cinco páginas inteiras que o autor emprega o nome juspositivismo (p. 201) o que permite, finalmente, identificar inequivocamente a corrente que examina, naquele lugar.

Em outra passagem, segundo o autor, os positivistas franceses foram animados pelo afã de “endeusar a razão” (p. 197). Em parte nenhuma da obra de Comte, da de seus discípulos franceses nem brasileiros, encontra-se nada que se apropinqüe de algum “endeusamento” da razão. Já se criticou o Positivismo por, alegadamente, “endeusar” a sociedade e o homem, porém dizê-lo da razão é tolice risível, discrepante da letra e do espírito de Comte.

A Teoria crítica do Direito informa ao leitor que “o termo direito positivo[2] vulgarizou-se por influência do positivismo filosófico […]” (p. 205). Não me consta nem jamais me constou que tal locução se propagasse devido ao Positivismo, graças à aceitação nos meios intelectuais europeus e não só, das doutrinas de Comte, que não contém nenhuma formulação desenvolvida relativa ao direito, à sua natureza normativista ou metafísica, burguesa ou revolucionária. Comte preconiza a substituição da noção de direito pela de dever e a instauração de deveres de todos para com todos (inclusivamente para com os animais e os vegetais); de caminho, menciona a origem teológica dos direitos. Mais não diz, neste capítulo.

A locução “direito positivo” foi introduzida pelo alemão Gustavo Hugo (1764 — 1844), precursor da Escola Histórica, e repetida pelo jurista inglês João Austin (1790 — 1859), em subtítulo (“A filosofia do direito positivo”) de 1885. Não decorreu da obra de Comte; possivelmente granjeou notoriedade e aceitação graças ao prestígio do Positivismo e do seu nome.

Em 27 páginas quase completas de bibliografia, constam, de Augusto Comte, apenas os dois primeiros capítulos do Sistema de filosofia positiva e o Discurso sobre o espírito positivo, da coleção Os Pensadores (1983). Para obra doutoral, em já majestosa quinta edição, era obrigatório que o autor consultasse e lesse as passagens de Augusto Comte relativas aos sete itens que enumerei acima e às noções de direito e de dever no Sistema de filosofia positiva e no Sistema de política positiva. No mínimo, era-lhe imperioso que inteligisse os dois textos da coleção Os Pensadores e mais o Catecismo Positivista, nela incluída, no mesmo volume, o que lhe teria propiciado noção correta do Positivismo. Era-lhe muito desejável que lesse e entendesse a Moral prática e a Moral teórica, de Pedro Laffitte, sucessor de Augusto Comte. Era-lhe assaz importante que lesse e se compenetrasse de Perspectivas de Augusto Comte, do brasileiro Ivan Lins.

Na ausência do original do Sistema de filosofia positiva, fazem-lhe as vezes as condensações que dele empreenderam Martineau, Rigolage e Teixeira Bastos. Nenhum dos três figura na bibliografia.

A bibliografia inclui um único livro acerca do positivismo lógico (El positivismo logico, de A. J. Ayer); desconhece o esclarecedor A filosofia positivista, de Kolakovski e o lúcido O positivismo jurídico, de Bobbio. Possivelmente suas fontes transcendem, com vantagem, os dois últimos; contudo, em momento nenhum a Teoria usa da mesma clareza expositiva e da mesma lucidez conceitual destes livros, de que o primeiro caracteriza certa atitude mental, que nomeia (em sentido lato) de positivismo, o que inclui a obra de Comte, porém nenhum jurista, e de que o segundo caracteriza perfeitamente o normativismo ou “positivismo” jurídico e sequer menciona Augusto Comte.

Norberto Bobbio assim principia o seu brilhante O positivismo jurídico:

“A expressão “positivismo jurídico” não deriva daquela de “positivismo” em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão “positivismo jurídico” deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural.” (O positivismo jurídico,  Icone Editora, São Paulo, 1996, p. 15).

Seja como for, sobre o Positivismo circulam caricaturas e toleimas variegadas, na literatura brasileira e peregrina, de origem marxista inclusiva e especialmente. A falácia do espantalho constitui recurso cediço na sua pretendida refutação e superação. Com razão ponderou Alain que, sobre Comte, deve-se ler e meditar o próprio Comte, bom conselho aplicável a qualquer autor e especialmente descurado, no meio brasileiro, a respeito dele, em que abundam quantos falam do que desconhecem ou que conhecem por fontes de segunda mão. Quem lê livros errados, forma idéias erradas[3].

Apesar de todas as suas fontes ou por causa delas, a Teoria, acerca do Positivismo, (1) formula juízos errados nas suas incriminações, se é realmente a ele que as dirige e (2) é abstruso na diferenciação do verdadeiro Positivismo em relação às correntes que lhe parasitaram o nome. O segundo defeito desmerece a execução da Teoria e o seu rigor teórico; o primeiro desmerece-lhe a concepção, comunica distorções absurdas do Positivismo e vicia o leitor. A única defesa da Teoria quanto ao primeiro defeito é a de ele increpa outra corrente de pensamento, que não o Positivismo. Em qual seja exatamente, não se atina nem o autor o elucida (segundo defeito).

Vide: positivismodeacomte.wordpress.com.

 

[1] Abstenho-me de anotar as passagens em que o texto merece revisão que o expungisse de galicismos e inglesias, bem assim do uso intolerável de preposições onomásticas com “d” maiúsculo (a exemplo de “De Castro”).

[2] Não se trata de termo e sim de locução.

[3] Este aforismo é da autora luso-brasileira Isabel A. Ferreira.

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