Foi o Brasil formado por degredados ?

                Não, o Brasil não foi colonizado por degredados nem por bandidos. Isto é mito, já desmentido pela historiografia, apesar do título do livro de Eduardo Bueno, “Traficantes, náufragos e degredados”, livro que reproduziu o alvará de couto e homízio, do século 16, pelo qual os condenados, no Brasil, ficavam isentos de pena; ele o reproduziu sem nenhuma análise quantitativa de quantos degredados vieram nem do tipo de legislação penal vigente na altura.
                 A armada de Cabral deixou 2 degredados; com Tomé de Sousa vieram 40, em 600 embarcados (dada a grafia de difícil leitura do documentário da expedição, leram 400 onde se redigiu 40).

Ao longo dos séculos, a proporção de imigrantes voluntários e inocentes, criminalmente, foi incomparavelmente superior à suposta profusão de degredados, que os documentos não confirmam. Demais, os crimes de então não o seriam hoje: punia-se mulher fingir parto, sacar de espada em procissão, fraudar pão. Camões foi degredado. Por outro lado, a Austrália não foi colonizada com o que a Inglaterra tinha de melhor; ela foi depósito de ladrões e de criminosos.
                Muitos brasileiros têm o vício de culpar algo ou alguém pelas mazelas do Brasil: o capitalismo, a burguesia, o regime militar e … a colonização. Não há fundamento nenhum na asserção de que os degredados aqui tinham interesses escusos em negociatas; é fantasia de Eduardo Bueno bem ao gosto dos noticiários políticos brasileiros.
                 Por outro lado, Gilberto Freyre (Aventura e rotina; O mundo que o português criou; O luso e o trópico; Novo mundo nos trópicos), Antonio Silva Mello (Nordeste), Eduardo Prado e Luis Pereira Barreto (na polêmica que os opôs), o romancista José de Alencar (Cartas sobre a escravidão), Carlos Mendonça Lisboa (Brasil. 500 anos) afirmam as qualidades da colonização portuguesa, do colono português, da mestiçagem, da obra de criação de riqueza e, especialmente, de construção de nacionalidade, diferentemente da exploração brutalmente cúpida dos holandeses no nordeste brasileiro e da incúria britânica no que concerne às suas antigas treze colônias.
                 O que são as guianas inglesa, francesa e holandesa? Países atrasados que sempre o foram. O que é a India, após 300 anos de ocupação inglesa? Um dos mais pobres países do mundo. O que foi a Africa do Sul por décadas? Por anos a fio, o país da segregação de raças, ao inverso do Brasil, terra da aceitação do preto e do silvícola pelo branco.
              É fácil demais acusar o passado brasileiro como bode expiatório, mas é falso, historica e antropológicamente, relacionar, em jeito de causa e efeito, os males presentes à nossa origem, mesmo porque houve, sim, no Brasil, períodos de riqueza, de honestidade, de elevação na política, de brilho nas letras. Por que só os males seriam produto da colonização e não, também, os méritos dos brasileiros?
                   O alvará do século XVI existiu; não se segue disto, que tenham vindo condenados e que estes fossem elementos perniciosos. As Ordenações Filipinas, livro de legislação que vigorou de 1603 até o Brasil independente, prescrevia degredo para o Brasil com prodigalidade, o que não implica que, de fato, houvessem degredados para cá, ao longo de trezentos anos.
                 A leitura do Código Penal Brasileiro ensejará, virtualmente, a impressão de que todos os brasileiros são criminosos e de que perpetram os mais variegados crimes. Assim como ele não constitui o catálogo dos comportamentos habituais dos brasileiros, o alvará e a cominação de degredo para o Brasil tampouco indiciavam o tipo de pessoa que imigrava para o Brasil.
                 Demais, a quem interessa o discurso inculpador da colonização (se é que interessa)? A quem ele serve (se é que serve)? Por que insistir-se em culpar-se os portugueses de 500 anos atrás? Para desculpar-se, exculpar-se ou mitigar-se a culpa dos culpados atuais. A retórica da “corte corrupta”, da emigração de condenados, de que “é assim desde o começo” alinha-se com o pensamento conformista e conformador, politicamente interessado em abrandar a censura moral que as pessoas imputam aos corruptos de hoje.
                Desde que o Brasil independeu, tornou-se senhor de si próprio, para bem e para mal; corrigir males e remediar erros tornou-se atribuição dos brasileiros. Se os alegados males da herança colonial persistem, é porque os brasileiros não souberam estar à altura da liberdade em que vivem. Por isto, não se culpe a “herança colonial”, como se o Brasil fosse colônia ou se houvesse independido a pouco. Um dos males de que o brasileiro carece de se livrar é o vezo de, como disse acima, culpar a outrem pelos males que ele não sabe ou não quer erradicar. É discurso que convém muito a quem ele serve de justificação e que os sub-informados repetem acriticamente.
               Oliveira Lima, em O movimento da independência (Topbooks, p. 46) aduz (maiúsculas minhas): “A COLONIZAÇÃO BRASILEIRA LEVADA A CABO POR DEGREDADOS É UMA LENDA JÁ DESFEITA. Nem ser degredado equivalia então forçosamente a ser criminoso, no sentido das idéias modernas. Punia-se com a deportação delitos não infamantes e até simples ofensas cometidas por gente boa. Os dois maiores poetas portugueses, Camões e Bocage, sofreram a pena de degredo na India, como Ovídio sofreu a de banimento no Ponto Euxino”.
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