“A SUJEITA COM O GURI ESTAVA NA FILA DO BONDE”. ” A GAJA COM O PUTO ESTAVA NA BICHA DO ELÉTRICO”.

“A SUJEITA COM O GURI ESTAVA NA FILA DO BONDE”.
” A GAJA COM O PUTO ESTAVA NA BICHA DO ELÉTRICO”.

Arthur Virmond de Lacerda Neto. 10.8.2020.
A primeira das frases do título contém léxico típico do Brasil; a segunda, de Portugal. Ambas são homólogas: exprimem o mesmo e foram construídas deliberadamente para evidenciarem alguma sinonímia entre Brasil e Portugal e, correlatamente, o modo diferente como se usa o idioma em ambas, quanto ao léxico.

Há, deveras, substantivos, adjetivos e verbos típicos do Brasil que não o são em Portugal e vice-versa, porém não devemos exagerar as diferenças entre os falares de Portugal e do Brasil. Há mais diferenças entre Salvador e Porto Alegre do que entre Curitiba e Lisboa. As diferenças de uso não chegam a constituir idiomas diferentes. Não há idioma brasileiro; há o mesmo idioma com estilos diferentes, com algum vocabulário diferente e com abundância de coloquialismos no Brasil, para além dos solecismos cada vez mais variados, no Brasil, em que é típico, desde 40 anos, o desprezo pela gramática e em que é cultural, desde a independência, o antiportuguesismo[1].

É por ingenuidade de turistas e por malícia de alguns que, no Brasil, enfatiza-se a sinonímia (ou as diferenças léxicas) entre Brasil e Portugal. Certos militantes do “idioma brasileiro”  tomam 2,3,4, 5 palavras e exibem-nas como diferenças (como bonde, elétrico; sujeita, gaja; parada, ponto; autocarro, ônibus). Mas nunca o repertório excede 30 ou 40 palavras; aliás, menos. Com esforço, reúnem-se mais algumas dezenas. Seja como for, ainda que sejam dezenas, ainda que fossem centenas, seriam sempre minoritárias perante a mole das cerca de 75 mil palavras de uso comum nos dois países.

Por outro lado, há dicionário de porto-alegrês e de baiano, com centenas de verbetes e, todavia, ninguém pretende haver língua de Porto Alegre nem da Bahia. Por que diabos é que alguns invocam diferenças mais anedóticas do que outra coisa, limitada a poucas palavras, para frisar tanto as tão alardeadas divergências idiomáticas do Brasil com Portugal ? Porque há o desejo, de alguns, de afastar-se da cultura portuguesa, mais exatamente, da herança cultural portuguesa, a começar pelo idioma.

É traço da afirmação nacionalista da sociolingüística brasileira, fomentada pelos tétricos doutores da USP, proclamarem a independência idiomática do Brasil e assumirem, em definitivo, a ruptura entre ambos. Daí que qualquer palavrinha sirva para provar a existência do “brasileirês”, em que alguns tanto insistem, embora jamais reconheçam a existência de muito mais disparidade léxica no interior do próprio Brasil: interessa-lhes recusar o idioma tal como o recebemos de Portugal, em nome do pretendido “idioma brasileiro”, que abarca o estilo brasileiro e os erros, desvios, agramaticalidades, solecismos, empobrecimentos vários, tidos não como tais senão como identidade linguística nacional. Evidentemente, a afirmação da existência do pretendido idioma brasileiro é artificial, pois atém-se a variações de somenos e menoscaba as coincidências, quer dizer, apega-se ao que é mínimo, ao que representa parte, e o eleva à condição de todo. No máximo, poder-se-ia ia, se fosse o caso, reconhecer um dialeto brasileiro, como derivado e variante do idioma português, porém jamais idioma brasileiro, dotado de sintaxe, léxico e regras próprias, diferentes das da matriz, ao ponto de se tornar autônomo. Essa pretendida autonomia existe apenas no entendimento exacerbado dos que tomam seus desejos por realidades.

Por isso vejo com desagrado matérias que mais realçam as diferenças secundárias do que enfatizam a capacidade de compreensão mútua, de brasileiros e portugueses, em todas as dimensões do idioma. Também me incomoda por demais o abrasileiramento do português de Portugal: conquanto matriz da língua, este vem sendo colonizado, até certo ponto, pela presença das telenovelas brasileiras, dos redatores brasileiros de gazetas e dos textos dos telejornais, pelos brasileiros que difundem brasileirismos e não aprendem a loqüela portuguesa de que, aliás, não fazem questão nenhuma. Já não se usa, em 2020, em Portugal o idioma como o usavam antes da contínua presença brasileira televisiva e dos próprios brasileiros.
Da mesma forma, revolta-me a revisão a que todos os livros portugueses publicados no Brasil são submetidos para adaptá-los ao estilo brasileiro, com o que não se lê no Brasil o que e como o autor português redigiu e sim o que ele redigiu alteradamente, adulteradamente (exceto Saramago). Suponho que jamais se aceitaria adaptar Machado de Assis nem Jorge Amado, mas Frederico Lourenço e outros chegam ao Brasil com fraseologia, pontuação, léxico, construção, mesóclise, pronomes contraídos, colocação pronominal tal como os brasileiros estão acostumados e não como o escritor os praticou.     Evidentemente, os escritores portugueses são, neste, particular, subservientes, o que julgo indigno da parte deles e pior para todos.

 

[1] Artigo de Carlos Fino, sobre o antilusitanismo tradicional no ensino brasileiro: https://portugaldigital.com.br/brasil-a-narrativa-antilusitana-do-sistema-de-ensino/?fbclid=IwAR0hOFI_aXmKKAznJeXhDbwhLXpC7uCTBH1osRS-gahf-zyGO0jBm_5JuTA

 

 

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