Olavo de Carvalho e o Positivismo

“O Jardim das Aflições” de Olavo de Carvalho: erros e coincidências

Arthur Virmond de Lacerda Neto

arthurlacerda@onda.com.br

                                                                 (É capítulo do meu livro A desinformação anti-positivista no Brasil, editora Vila do Príncipe, 2004. Pedidos para viladoprincipe@onda.com.br).

               Em seu “O Jardim das Aflições”, Olavo de Carvalho dedica alguns parágrafos a Augusto Comte e à sua obra, acerca dos quais desinformou os seus leitores, certamente de forma inconsciente e involuntária. Conquanto intelectualmente honesto, revela superficial  conhecimento do Positivismo.

               O autor associa a iniciativa de Comte de “fundar um novo culto, incumbência que lhe fora aliás atribuída por ele (sic) mesmo”, à frase que imediatamente a segue: “Não é preciso dizer que morreu louco”.

A suposta loucura de Augusto Comte não é de uma obviedade tal, que dispense demonstrações e cuja veracidade se comprove com a sua simples afirmação ou com a sua afirmação após outra, em que o autor escarnece do suposto demente. Não, Augusto Comte não morreu louco, segundo largamente demonstrei no ítem primeiro deste ensaio.

A fundação do novo culto não resultou de nenhuma patologia daquele filósofo, tampouco de uma sua iniciativa leviana ou extravagante: ela resultou de uma vasta apreciação histórica (muito mais ampla, aliás, do que a que brilhantemente executa o prof. Carvalho no seu livro), da qual resultou, em Comte, a averigüação de que (a) as religiões são realidades inerentes às sociedades, (b) as sociedades desenvolvem-se no sentido da sua progressiva laicização, ou seja, do abandono crescente da teologia e de tudo quanto dela decorra, (c) no âmbito desta secularização, as religiões teológicas tornaram-se obsoletas e (d) conservando-se a religião enquanto produto humano, deve ela assumir uma conotação humana, e não mais sobrenatural. Tratou-se, para Comte, de instituir uma religião laica, terrena, livre de todo componente misterioso, transcendente, divino, em uma palavra, teológico, na qual o dogma correspondesse aos conhecimentos humanos; o culto, à exaltação dos sentimentos altruístas, e o seu regime, à atividade pacífica, fraternal e socialmente útil.

Denominou-a de religião da Humanidade, definindo o substantivo como o conjunto dos seres humanos, homens e mulheres, convergentes, a saber, úteis e benéficos ao seu semelhante, do passado, do presente e do futuro. Nela tudo é racional e demonstrável e dela exclui-se todo sobrenatural, qualidades que lhe mereceram altos encômios de João Stuart Mill e de Raimundo Aron, tanto mais credíveis porque nenhum dos dois adotou-a.

Por que seria uma obviedade que tal concepção se associasse a alguma loucura do seu criador, loucura, aliás, inexistente ?

Dispensando-se de examiná-la,  de situá-la nas intenções do seu criador, de entendê-la, sequer mesmo de apenas descrevê-la e portanto informar o leitor do seu conteúdo, o autor limita-se a menoscabá-la implicitamente, argumentando com a “obviedade” de uma perturbação que somente existiu na desinformação biográfica de Comte.

Neste particular, “O Jardim das Aflições” difunde uma falsidade e, subrepticiamente, infunde no leitor desprezo por uma concepção que não apresenta. No primeiro caso, desinforma; no segundo, não informa.

A seguir, o livro aponta três alegadas características principais da religião da Humanidade:

1) “Seria uma religião do Estado: o homem dos novos tempos serviria ao Estado”. Isto é  uma asserção manifestamente falsa, redondamente absurda e que não se encontra em parte nenhuma de nenhuma obra de Augusto Comte (incluíndo-se os oito volumes do seu epistolário) nem explícita nem tacitamente, como tampouco em obra nenhuma de nenhum dos seus discípulos; ela encarna um delírio.

 A religião positivista não se vocacionava a ser oficializada nem os seus adeptos seriam servidores do Estado. Ela destinava-se a ser o credo de quantos, convencendo-se dos seus méritos, a ele aderissem espontaneamente, professando-o com inteira independência face aos poderes públicos.

Constitui premissa fundamental da política positivista a separação dos dois poderes, ou seja, a inteira independência dos assuntos materiais, governamentais, numa palavra, temporais, face aos espirituais, relativos aos pensamentos e aos sentimentos, às religiões e às doutrinas quaisquer.

Ainda que, por hipótese, os governantes e os governados perfilhassem todos tal confissão, jamais os seus adeptos seriam servidores do Estado, proposição que jamais formulou nenhum positivista em parte nenhuma do mundo e que não se encontra em parte alguma das obras de A. Comte.

Idêntica adulteração encontra-se em “O que é justiça?”, de João Kelsen, na página 164 da edição brasileira (Martins Fontes, 1997): “…cada membro da sociedade futura será um funcionário público, um funcionário do Estado”.

Junto do substantivo “Estado” acha-se o número 97 que remete a uma nota  indicativa da fonte correspondente: Curso de Filosofia Positiva, VI, página 482. Ora, no lugar apontado lê-se: “…il faut d’abord écarter entièrement la distinction vulgaire entre les deux sortes de fonctions respectivement qualifiées de publiques et privées. […] Dans toute societé vraiment constituée, chaque membre peut et doit être envisagé comme une véritable fonctionnaire publique, en tant que son activité particulière concourt à l’economie générale suivant une destination regulière, dont l’utilité est universallement sentie”.

Ou seja: “…é preciso, em primeiro, afastar inteiramente a distinção vulgar entre as duas espécies de funções respectivamente qualificadas de públicas e de privadas. […] Em toda sociedade verdadeiramente constituida, cada membro seu pode e deve ser considerado como um verdadeiro funcionário público, na medida em que a sua atividade particular concorre com a economia geral, conforme uma destinação regular, cuja utilidade é universalmente sentida”.

Todo indivíduo pode e deve ser reputado como um funcionário público na medida em que exerça uma função, desempenhe um papel no meio social, perante a sociedade, em meio ao povo que integra, face ao público formado pelos seus contemporâneos;  papel útil, que concorra para o funcionamento da sociedade no seu conjunto. Ninguém vive isoladamente, à parte ou a margem de uma coletividade: o exercício de uma atividade que gere efeitos perante o próximo,  corresponde a uma função que, desenvolvendo-se no seio de certo povo, é pública.

Comte empregou a expressão “funcionário público” em sentido sociológico; Kelsen inteligiu-a como jurista que não entendeu o que leu. O que significava atividade vantajosa à sociedade, sem qualquer vinculação com o Estado, transformou-se em serviço prestado a este; o que correspondia a indivíduo útil ao seu próximo, passou a ser o empregado dos poderes públicos, em uma deturpação flagrante da letra de A. Comte, que assim se desnaturou, fazendo, falsamente, do Positivismo um estatismo, precisamente o que o positivista Alfredo Severo dos Santos Pereira increpava, sob o título de “estadocracia”, na antiga União Soviética. Daí porque atribuir-se ao Positivismo uma  idealização do Estado, não passa de balela e de mistificação, própria de quem não leu A. Comte ou o tresleu.

 

2) “ Para marcar sua ruptura com a era anterior, ela instituiria um novo calendário, com ritos festivos dedicados aos “grandes homens”, cujo advento a este mundo marcara as etapas decisivas do “progresso histórico”.

Substituindo o júlio-gregoriano, o novo calendário, mais correto matematicamente e mais realista astronomicamente do que ele, visava a marcar a continuidade histórica entre o passado humano e o seu futuro, entre o tempo anterior à religião da Humanidade e aquele em que ela já existe. Por isto, o novo calendário, de natureza histórica, intitulava os meses com os nomes de figuras maiores da humanidade, conforme o seu âmbito de ação, a fase histórica e certo aspecto da vida social (Aristóteles: filosofia antiga; Gutemberg: indústria moderna, etc.), exprimindo que, longe de repudiar o passado, a nova religião pretendia-se a sua continuadora.

Comte: “[…] o calendário histórico tem sobretudo uma destinação moral, a de reanimar o sentimento de continuidade […]” (Política, IV, 401). “Esta comemoração sistemática de todo o nosso passado é sobretudo destinado a desenvolver profundamente […] o espírito histórico e o sentimento de continuidade” pois “importa muito cultivar o mais possível o instinto familiar da continuidade histórica”, graças à “aptidão característica” do Positivismo a “glorificar todas as fases humanas” (Correspondência geral, V, 298/299).

Qualquer afirmação de que a religião da Humanidade vocacionava-se a romper com o passado e de que o calendário histórico marcaria tal suposto rompimento, denunciam, da parte de quem a produz, a mais tenebrosa ignorância. Não se alegue, em sustentação da tal ruptura,  com a nova datação dos anos, a partir de 1789 (pela qual, por exemplo, 2004 corresponde ao ano de 226) ou de 1855: trata-se de assinalar a contagem do tempo segundo certas etapas da espiritualidade humana, jamais de sublinhar um repúdio dos tempos transactos, atitude, aliás, que a religião da Humanidade estigmatiza severamente.

Os ritos festivos, mais exatamente festas, na expressão de Comte, sob a forma de comemorações, voltam-se a homenagear a Humanidade (entendida como o conjunto dos seres humanos úteis aos seus semelhantes, do pretérito e do presente), os laços humanos (o casamento, a paternidade, a  filiação, a fraternidade, a domesticidade), as grandes etapas do desenvolvimento histórico (o feiticismo, politeísmo, o monoteísmo, a modernidade), recordadas pelas suas instituições características e pelas suas individualidades capitais, e as funções sociais (as vidas afetiva, contemplativa, ativa, e o poder prático).

Tais festas consagravam a  Humanidade nos seus aspectos estático, relativos à sua estrutura, e dinâmico, atinentes às modificações que historicamente experimentou a espécie humana. Nos dois casos, substituem-se as ficções da teologia pelo conhecimento das realidades humanas, em uma tripla função, cultual, cultural e educativa,  que caracterizam a religião da Humanidade como um humanismo cuja sabedoria excede o horizonte espiritual dos seus criticadores.

 

 

3) “A nova religião assinalaria o ingresso da humanidade na etapa decisiva de sua evolução temporal – a “era positiva”, marcada pelo predomínio da ciência e da técnica, após a “era mítica” inicial”.

Na filosofia da história de Comte, inexiste uma “era mítica inicial”. Há, sim, uma fase teológica da história humana, caracterizada, em recuados tempos, pela predominância das crenças no sobrenatural e por uma uma certa organização social e política.

A nova religião assinalaria, de fato, o ingresso da humanidade em uma nova etapa, porém não sob o aspecto temporal  (entenda-se político e governamental), e sim do ponto de vista espiritual, concernente à mentalidade predominante das pessoas. Tal mentalidade não seria a, já obsoleta, da teologia, nem a, transitória, da metafísica: seria a positiva, aquela em que a forma predominante do pensamento fundamenta-se na observação dos fatos, observação que permite conhecer a realidade, entendê-la e atuar sobre ela, em lugar da imaginação, nota distintiva das formas anteriores de cognição e de reflexão.

Expressões típicas da mentalidade positiva, da positividade, são a ciência, que averigüa os fatos, que apura a realidade, permitindo ao homem conhecê-los, e a técnica, que permite empregar tal conhecimento. Note-se que a positividade e a técnica são elementos tão antigos quanto a própria humanidade; elas sempre existiram e graças também a elas é que o desenvolvimento humano processou-se. Enquanto antes a sua presença concorria com a teologia e com a metafísica, ela torna-se predominante na era positiva.

Na religião da Humanidade, no entanto, a positividade como critério da cognição, a ciência como produto refinado desta e a tecnologia como emprego da ciência, completam-se com critérios morais: todo o conhecimento e toda a sua aplicação devem adotar por escopo a Humanidade e o seu serviço. A ciência e a tecnologia devem existir e operar em função do ser humano e em seu benefício, única perspectiva em que se justificam, o que exclui a tecnocracia em favor da sociocracia. Daí a regulação moral da pesquisa científica e da sua aplicação. Por regulação moral entenda-se destinação altruísta.

Ora, destes caracteres, que o autor de “O Jardim das Aflições” não compreendeu, resultariam, segundo ele: (a) a identificação da lei religiosa com a civil, o que é inteiramente falso, no que tange ao Positivismo, porquanto nele tais esferas não se identificam; (b) o culto dos antepassados, o que também é interiramente falso, pois na religião da Humanidade o culto não se volta aos avoengos genealógicos, porém aos grandes homens, às superioridades humanas, àqueles que os tempos históricos produziram de mais meritórios, de mais nobres, de mais inteligentes, de mais úteis ao seus semelhantes, cujas  atuações pessoais acrescentaram ao patrimônio moral, cultural, científico, estético ou prático da espécie humana.

Consoante o livro em apreço, a nova religião “simplesmente dava expressão mais detalhada à idéia hegeliana do Estado como sucessor da Igreja”. Ora, entre as concepções de Hegel e as de Comte, não se verifica nenhuma relação de causa e efeito, de antecedente e conseqüente, em que se possa reputar as do segundo um desenvolvimento das do primeiro.

Cioso de, em suas obras, mencionar os seus antecessores intelectuais, Comte refere-se a Hume e a Kant; a Condorcet e a de Maistre; a Bichat e a Gall; a Bacon, a Descartes e a Leibnitz; a Tomás de Aquino, a Rogério Bacon e a Dante, finalmente, a Aristóteles. Jamais aludiu a Hegel, exceto para confessar não o haver lido e para exprimir o seu regozijo pela favorável acolhida que dele mereceu o seu “Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”, de 1822.

Pode-se conjecturar uma possível influência no sentido inverso, de Comte sobre Hegel, contudo a afirmação recíproca é inteiramente gratuita e jamais figurou em nenhum biográfo de Comte, como tampouco em nenhum dos seus examinadores. Trata-se de uma asserção infundada, da mesma forma como também o é, e ainda mais gravemente, a alegada sucessão do Estado  à Igreja: longe de suprimir a igreja e converter o estado em seu herdeiro, o Positivismo distingue enfaticamente um do outro, afirmando, quer a existência de ambos, quer, sobretudo, a necessidade da sua independência mútua, pelo célebre princípio da separação dos dois poderes, temporal e espiritual.

Deve haver Igreja, poder espiritual, que atua sobre os indivíduos por meio das suas convicções e sentimentos; deve haver Estado, poder temporal, que atua sobre as coisas por meio da força material; devem ambos coexistir com plena independência: nem é legítimo o Estado pretender impor convicções e doutrinas quaisquer, nem é legítimo a Igreja tencionar exercer o mando político. No Positivismo, o Estado não é sucessor da Igreja porque esta não desaparece e, destarte, não é sucedida por ninguém, como a ambos reservam-se papéis próprios. Mais uma vez “O Jardim das Aflições” desinforma, com uma assertiva absurda, inexistente nas obras de Comte, das quais não decorre sequer longinquamente, e que desmente o que de mais expresso formulou o filósofo.

 

Segundo o livro em causa, a religião da Humanidade foi adotada somente no Brasil. Novo equívoco: ela foi adotada com mais evidência entre nós, e com igual fervor na França, na Inglaterra, na Suécia, no Uruguai, na Argentina, no México, no Chile, onde houve aderentes seus, dos quais muitos deixaram obra escrita e atuação útil nos respectivos meios.

               Entre nós, foram, segundo o mesmo livro, oficiais militares os que sonharam com a adoção da ditadura republicana de Comte (expressão que, aliás, o livro menciona sem a explicar): não, foram, antes de tudo, os civis, especialmente os apóstolos da Humanidade, Raimundo Teixeira Mendes e Miguel Lemos, que infatigavelmente exortaram o imperador a prevenir um golpe de força, proclamando ele próprio uma república de feitio positivista, antes que outros o fizessem. Foram também outros civis, os muitos que, por exemplo, compunham a bancada positivista na constituinte de 1891. Foram também os militares, notadamente Benjamin Constant Botelho de Magalhães.

               Deixou o Positivismo, entre nós, uma infinidade de marcas, como, acertadamente exprime “O Jardim das Aflições”: o dístico “Ordem e Progresso” na bandeira; a laicização do Estado, com a introdução da liberdade religiosa, até então inexistente; a secularização dos cemitérios, até então exclusivos dos católicos; a introdução dos registros de nascimento e de óbitos, na esfera civil; inúmeros dispositivos asseguradores das liberdades públicas na constituição de 1891; um espírito de tolerância e de respeito face ao catolicismo e aos demais credos; uma exortação constante pela fraternidade entre os países sul-americanos e pelo recurso ao arbitramento nos seus desacordos; o despertar de uma consciência em favor da redução das desigualdades sociais e da proteção dos trabalhadores; a primeira legislação trabalhista da república; o repúdio às soluções de força na política interna e externa; o tratamento pacífico e benevolente aos silvícolas; o esforço em prol da educação laica e científica; o combate aos privilégios que na vida civil criassem diferenças indevidas entre as pessoas; um senso de patriotismo sincero e dedicado; o reconhecimento dos predicados morais das mulheres; a afirmação da fraternidade universal como critério da política; a necessidade de submeter permanentemente a ação política aos valores morais; o desenvolvimento do espírito público; a fundação da Universidade do Paraná (com o concurso de terceiros); a afirmação das liberdades públicas e políticas como integrantes do regime republicano e tudo quanto os difamadores do Positivismo sóem silenciar, que de benéfico, de útil, de construtivo, de simpático os seus apóstolos e os seus aderentes realizaram, cada qual dentro das suas possibilidades pessoais.

               O que os positivistas não deixaram como marca, é o que “O Jardim das Aflições” lhes imputa: “um inesgotável calendário cívico, que [celebra] as secretárias, os motoristas, as mães, os pais, os namorados e tutti quanti”. Em si, as homenagens no calendário às secretárias, aos motoristas, etc., nada contém de censurável. Ao contrário, é construtivo que se dedique um dia do ano a evocar o papel útil que presta cada tipo de profissional, para o bem estar dos seus patrícios. São úteis as secretárias a quantos delas precisam, como o são os motoristas, que, dia após dia, transportam milhares de pessoas ao seu local de trabalho e de volta à casa, de estudantes às escolas, de pessoas destituídas de automóveis aos seus destinos.

Ninguém, sensatamente, negaria o mérito, ainda que relativo e ínfimo, de quem atua em favor do seu semelhante, por meio do esforço de que é capaz, nem um certo valor, nas homenagens que, de cada um, possam receber aqueles que nos merecem estima, apreço e amizade. Longe disto, são formas de educação, por despertarem o reconhecimento a quem seja útil, enquanto funcionário social, no dizer de Comte, e por exercitarem a sociabilidade humana, que o Positivismo reputa um bem em si próprio. Elas despertam, para empregar uma expressão muito em voga atualmente, um senso comum reformado (Gramsci) no sentido altruísta.

Todas estas homenagens obedecem a uma inspiração positivista, no que contém de fraternal, de expressão concreta dos sentimentos altruísticos que a religião da Humanidade tanto encareçe. No entanto, ao contrário do que veicula o “Jardim”, a oficialização de tais homenagens não partiu – que pena!- de positivistas.

Em suma, na parte relativa ao Positivismo, a obra em apreço enferma de confusões e de más compreensões, o que parece inevitável face à sua bibliografia que, embora vasta, não exibe os biógrafos confiáveis de Comte, nem as obras dos seus discípulos, ao menos as dos que seria de rigor consultar, como Pedro Laffitte, Teixeira Mendes, Miguel Lemos, Ivan Lins e tantos outros. Sequer figura “As etapas do pensamento sociológico” de Raimundo Aron, que apresenta um excelente capítulo sobre o tema e que há quase trinta anos acha-se disponível em traduções brasileiras. Não figura sequer o próprio Augusto Comte, ausência imperdoável em livro que analisa as suas concepções e que as critica de segunda mão, por “ouvir dizer”. Nem mesmo o “Catecismo Positivista”, encontradiçíssimo no Brasil, em que, na coleção “Os Pensadores”, recebeu várias edições de milhares de cópias e cuja leitura corresponde ao minimo minimorum de quem se aventure a dissertar sobre Comte e o seu pensamento.

Brilhante, original, singular no seu conjunto, “O Jardim das Aflições” mostra-se, no capítulo do Positivismo e do seu fundador, mal informado, mal informador e desinformador. “Nenhum grau de talento e de espírito pode conferir, a quem quer que seja, o direito de falar do que não conhece”, dizia José de Maistre  (Do Papa)…

Todavia, nem tudo no “Jardim” são equívocos no tocante ao Positivismo: há coincidências flagrantes, a demonstrar que  o seu autor alcançou conclusões, algumas idênticas às que chegara Augusto Comte século e meio antes, outras, muito próximas das dele. Conquanto destituído de conhecimento direto da obra de Comte, embora mesmo antagônico ao Positivismo, o autor do livro, por outras vias, acaba por confirmar-lhe alguns aspectos fundamentais.

Assim, à página 301, aconselha Olavo de Carvalho: “…é preciso que, no novo quadro mundial, cada homem empenhado na defesa do Espírito […], mantenha afiado o sentido crítico e saiba exigir do Império aquilo que se deve exigir de toda organização social e política: que sirva ao sentido da vida, em vez de usurpá-lo numa nova idolatria. Isto significa, rigorosamente, abster-se de qualquer tomada de posição ideológica […] e oferecer sistemática resistência à noção mesma – inerente a todas as ideologias- de que algum regime político, bom ou ruim, deva ter sobre as almas humanas uma autoridade espiritual comparável à de uma tradição religiosa”.

               Na página seguinte: “Nenhum regime, nenhum Estado, tem o direito de agir como intérprete soberano da verdade, subjugando as consciências  individuais, pois é nestas, e não nele, que vive e esplende o dom da inteligência”.

               Deve o Estado, segundo o prof. Carvalho, abster-se de adotar qualquer doutrina:  exatamente, exatamentissimamente  isto mesmo  recomendava A. Comte, que erigiu tal exigência no princípio político que denominou de separação dos dois poderes, espiritual e temporal. Ouçamos o positivista ortodoxo Jorge Lagarrigue: “… o único meio de [se] evitar o despotismo consiste na instituição sistemática da separação dos dois poderes temporal e espiritual, inerente a toda sociedade. É o que só se consegue […] tirando ao governo temporal todas as atribuições de decidir em matéria de opiniões.” (“A ditadura republicana”). 

               Ao caracterizar a ditadura republicana, Lagarrigue afirma a “necessidade da liberdade espiritual, isto é, da abstenção por parte do Estado de toda ingerência no domínio das crenças e das doutrinas” (idem). Mais: “A liberdade espiritual sendo, pois, o fundamento essencial do progresso social, a ditadura republicana, ou verdadeiramente progressista, deve constituir-se em sua principal guarda, e tomar as medidas necessárias  para assegurá-la em sua plenitude” (idem).

               Dentre as inúmeras enunciações deste princípio pelo próprio Augusto Comte, colhemos estas, ao acaso: “Só o Positivismo sistemático faz apreciar hoje o admirável instinto que impeliu todos os homens eminentes da idade média a introduzir, entre o poder moral e o poder político, uma divisão fundamental, obra prima da sabedoria humana […] esta separação necessária […] não é atualmente compreendida e respeitada senão pela nova escola filosófica”, a saber, a positivista. (Sistema de Política Positiva, I, 76).

               “Princípio fundamental da política moderna, a separação normal dos dois poderes essenciais”, é “igualmente indispensável à ordem e ao progresso” (idem, 77).

               Na página 302, ao aludir à democracia capitalista vigente nos EE. UU. AA.,  avalia o “Jardim” que “os méritos do sistema norte-americano não são devidos à idéia democrática enquanto tal, nem muito menos ao capitalismo como tal”, porém aos “valores cristãos” que “serviram constantemente de balizas que limitavam e disciplinavam os  movimentos do Estado e do mercado, dando um sentido ético e até espiritual ao que por si não tem nenhum”.

               Augusto Comte proclamava exatamente que assim deve ser: os poderes públicos e as forças econômicas devem submeter-se  a uma disciplina moral, a critérios axiológicos que, presentes na consciência ética das pessoas, funcionem-lhes como  reguladores espontâneos. “Dissipando toda discussão vã e tormentosa sobre a origem e a extensão das posses, [o Positivismo] estabelece diretamente as regras morais relativas à sua destinação social”. “Estas regras indispensáveis devem ser, quanto à sua fonte, morais e não políticas”, devem radicar na mentalidade dos ricos, dos trabalhadores, dos políticos, dos formadores de opinião, dos eleitores, das pessoas em geral, mercê  da sua educação, ao invés de corresponderem a um controle estatal, mercê da legislação.  A natureza de tais regras, “segundo o verdadeiro espírito republicano, consiste em fazer sempre concorrer  ao bem comum todas as forças quaisquer”, efeito para o qual “cumpre determinar exatamente o que exige, em cada caso, a utilidade geral e desenvolver por toda parte as disposições correspondentes” (idem).

               Claro, entre os valores cristãos e os positivistas, há diferenças óbvias: enquanto os primeiros vinculam-se ao sobrenatural e à teologia, os segundos prendem-se com o humano e com a laicidade, coincidindo na afirmação do altruísmo (ainda que por modos discrepantes).

 O decisivo acha-se na necessidade de  valores que as pessoas atribuam às vidas política e econômica e que as disciplinem moralmente. Dada a secularização inevitável das sociedades, os valores teológicos ou substituem-se por outros, de cariz humanista, ou desacreditarão tudo quanto a que se encontram vinculados, averigüação em que, aliás, Comte foi explícito e que, de certo modo, corresponde ao papel do Positivismo.

               É inútil opor-se à laicização: ela encarna um fato inexorável e inerente ao próprio desenvolvimento histórico da espécie humana, dentro do qual o sentido histórico e a utilidade do Positivismo consistem em oferecer ele uma alternativa à derrocada dos fundamentos teológicos dos valores, na medida em que lhes atribui justificativas humanas.

               Na página 307, o “Jardim” recomenda-nos a “lição” de Bertrando de Jouvenel, “segundo a qual a religião e somente a religião, compreendida como portadora simbólica de verdades universais e [de] valores objetivos, pode oferecer uma resistência eficaz ao crescimento ilimitado do poder político”.

               Religião não equivale a teologia e sim a síntese, a um conjunto de conceitos, valores, idéias, práticas e sentimentos que,  referindo-se à divindade nas confissões tradicionais, volta-se, no caso do Positivismo, à Humanidade, conjunto contínuo dos seres humanos, homens e mulheres, de todos os tempos, úteis ao seu semelhante.

Se o que assegura a contenção do poder temporal é a presença do poder espiritual, tal eficácia, cada vez menor da parte das  religiões teológicas, face à laicização, caberá às fórmulas religiosas compatíveis com a própria laicização. Ora, existe uma única fórmula nestas condições, ou seja, uma doutrina que, secular, corresponda também a uma religião: tal é o Positivismo enquanto religião da Humanidade.

               É inútil lamentar-se o enfraquecimento dos valores cristãos; é retrógrado  empenhar-se no seu fortalecimento: eles acham-se fadados a desaparecer, não enquanto valores, porém enquanto manifestações da teologia. Também é inconseqüente tachar-se o positivismo de “moléstia espiritual” por negar o sobrenatural e ignorar as causas primeiras e as finais: fazê-lo equivale a um saudosismo que tenta restaurar mentalidades obsoletas.

 O que é eficaz, é inserir a ética no âmbito de uma religiosidade mundana, que substitua a teológica, motivo porque a religião da Humanidade pretende-se como a sucessora do catolicismo, assim como este, longe de encarnar uma verdade eterna, não passou do sucessor provisório do politeísmo. Espontânea primeiro (feiticista), revelada depois (politeica), a religião tornou-se revelada a seguir (cristianismo) para, por fim, tornar-se em demonstrada com o Positivismo, faceta que o torna merecedor de uma atenção muito mais detida e compenetrada do que aquela, chocarreira e frívola, que lhe dispensou o “Jardim”. Um dos rasgos da genialidade de Augusto Comte e da sua perspicácia, radica em haver considerado a religião como inerente às sociedades e variável ao longo dos tempos: do seu estado atualmente mais difundido (teológico), deve ela assumir natureza humana e demonstrável. Nisto acertou Érico Voegelin, segundo quem a cura dos males da modernidade repousa em um fortalecimento da religião, seja das tradicionais, seja de outras: a tal correspondeu o fito invariável e o teor inteiro da obra de Augusto Comte, que, mais de um século antes de Voegelin, tendo se apercebido  da natureza espiritual dos problemas modernos, ofereceu-lhes um solução também espiritual, no âmbito de uma espiritualidade altruísta, humana e realista, vale dizer, positiva. Enquanto Voegelin restringiu-se a apontar a natureza do tratamento, Comte elaborou diretamente a terapia, com uma prioridade e com um brilhantismo contestados apenas por quantos ignoram-lhe a obra.

               “Na ausência, prossegue o livro em causa, na página 307, de autoridade espiritual, o poder é o único juiz. Democrático ou oligárquico, comunista ou capitalista, monárquico ou republicano, socialdemocrata ou neoliberal, ele será sempre o poder de César, com um propensão incoercível a autodivinizar-se. E enquanto não compreendermos  essas coisas continuaremos a apostar neste ou naquele sistema político não enxergando que os méritos de qualquer sistema político dependem essencialmente de que ele saiba respeitar os limites que lhe são impostos pela consciência religiosa do povo, vivificada pela presença da autoridade espiritual e firmada em valores que antecedem de muito o nascimento desse sistema”.

               Os limites do poder temporal acham-se 1) em valores 2) presentes na consciência do povo e 3) afirmados pelos “homens em quem se manifesta de maneira patente o espírito mesmo da religião”.

               Neste passo, o “Jardim” coincide inteiramente com o Positivismo e com as formulações mais explícitas de Augusto Comte, segundo quem  1) a opinião pública  2) sob uma doutrina comum, ou seja, inspirada por certos conceitos e valores 3) veiculada pelos formadores desta mesma opinião, o poder espiritual, que Comte designava por filósofos ou sacerdotes, 4) deve fiscalizar o exercício do poder estatal e reagir-lhe.

               “Apreciada em seguida na ordem política propriamente dita, dizia Comte, […] a força da opinião pública deve tornar-se a sua principal reguladora” (Política, I, 140). “Esta […] destinação […] da opinião pública determina imediatamente as condições essenciais da sua organização normal. Um tal ofício moral e político exige, em primeiro, verdadeiros princípios sociais, em seguida um público que, tendo-os adotado, sanciona a sua aplicação especial, e por fim um orgão sistemático que [lhe] dirije o uso diário” (idem, 141).

               Referindo-se à “íntima aliança” entre os filósofos e os proletários”, ou seja, entre os agentes da autoridade espiritual e a massa populacional, aliança que forma a opinião pública, segundo Comte o “principal melhoramento” a introduzir-se na sociedade “consiste no nobre ofício social assim conferido diretamente aos proletários [vale dizer, o povo em geral], doravante erigidos em auxiliares indispensáveis do poder espiritual”, em uma cooperação que “não será política, mas moral” e referir-se-á ao “sábio exercício” do poder (idem, 150/1).

               No mesmo sentido Luis Lagarrigue: “A única soberania do povo, a verdadeira democracia, consiste em formar a opinião pública […] e transformar essa opinião pública em força social capaz de sancionar, guiar e regular o comportamento dos poderes temporais” (La propriedad).

               Tais coincidências entre as conclusões do “Jardim” e alguns princípios do Positivismo tornam o ilustre autor daquele livro um positivista perfeito, nisto ao menos. Não se trata de coincidências de somenos, porém de identidades cruciais, em pontos decisivos daquela doutrina que, digam o que disserem os seus detratores e os apedeutas, é rica de percepções geniais, altamente úteis na compreensão do nosso tempo, no diagnóstico dos seus males, nos remédios que nos oferece. A sua filosofia da história descreve a marcha da espécie humana, do passado em direção ao futuro; o seu entendimento da ciência permite julgar as doutrinas que o prof. Olavo critica (o marxismo, o freudismo, o socialismo); a sua teoria da religião rende justiça aos serviços prestados pela teologia e explica o inexorável da laicização. Dentre muitas outras, correspondem estas a facetas que constituem o Positivismo enquanto corpo doutrinário muito superior àquele positivismo adulterado, superficial, amesquinhado, de uso popular, que muitos ocupam-se em hostilizar, alguns levianamente, na incapacidade de compreenderem a obra de Augusto Comte na sua profundidade e no seu gigantismo.

              

              

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. É realizações, São Paulo, 2000.

COMTE, Augusto. Sistema de política positiva. Paris, 1851 a 1854.

_______________Correspondance générale, Paris, V, 1982.

LAGARRIGUE, Jorge. A ditadura republicana, in O ideal republicano de Benjamin Constant. Rio de Janeiro, 1936.

LAGARRIGUE, Luis. La propriedad. Santiago do Chile, 1925.

VOEGELIN, Eric. As religiões políticas. Lisboa, 2000.

 

Esse post foi publicado em Positivismo de Augusto Comte. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário