Mentes perigosas. Psicopatia. Segunda parte.

Identificação e prevenção.

            Ressalvadas as imperfeições que apontei, o livro apresenta assinalável utilidade, o que lhe torna a leitura recomendável pelo  público em geral e, em particular, pelos meios jurídicos e políticos, mercê das informações científicas e das ponderações da autora, suscetíveis de provocar a revisão dos valores egocêntricos e materialistas da nossa sociedade e alterações na legislação criminal brasileira.

            Apresentam  elevada utilidade social a descrição dos psicopatas nas suas características e a série de conselhos relativos à forma como haver-se com eles. Saber reconhecê-los e defender-se deles importam em atitudes perante o próximo que as pessoas, em geral, são incapazes de intuir ou que aprendem à custa de prejuízos próprios ou da observação do infortúnio alheio. Melhor do que este empirismo, de aquisição fragmentária e eventual, é o produto de longas averiguações de um observador especialmente qualificado, que permite a prevenção ou a mitigação dos malefícios a que se expõe as pessoas em geral.

 

            Maioridade penal.

            Especial atenção devem dispensar os juristas e os legisladores ao capítulo relacionado com a maioridade penal e com o Estatuto da Criança e do Adolescente: ao contrário de incônscio da natureza criminosa de certos dos seus atos,  o psicopata menor de dezoito anos de idade é, sim, por eles responsável, deve  por eles receber punição, como se fora maior, e sujeitar-se à prisão, mesmo fora de flagrante.

            Com razão a autora, em que a lei brasileira é "excessivamente complacente" na sua parte punidora, relativa aos menores de dezoito anos, "favorecidos, diz ela, por uma legislação especifica que atenua as suas punições, propiciando de forma quase irresponsável a liberdade precoce e a reincidência criminal".

            De fato, a lei 8069 de 1990 considera inimputáveis os menores de 18 anos: aquém desta idade, o indivíduo não responde pelos crimes que cometer. Sequer crimes ele perpetra, e sim "atos infracionais", eufemismo com que se transforma, por exemplo, um assassínio, de crime de homicídio em ato infracional, pelo qual não se pune o seu autor.

            Enquanto castiga-se o maior com multa, prestação de serviços à comunidade e detenção, o menor submete-se a estas medidas: encaminhamento aos seus pais ou ao responsável por ele; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; acolhimento institucional; inclusão em programa de acolhimento familiar; colocação em família substituta; advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semi-liberdade; internação.

            Destas providências, a última verifica-se em estabelecimento educacional, e não em presídios, limita-se ao máximo de três anos; cessa, compulsoriamente, ao o indivíduo completar 21 anos de idade e aplica-se apenas às  infrações praticadas com grave ameaça ou violência contra alguém.

            Assim, o indivíduo de dezessete anos que matar, por motivo fútil, um pai de família, com arma de fogo, não cometerá o crime de homicídio, será introduzido em um educandário, em que permanecerá, se tanto, até os seus vinte anos de idade.  Este indivíduo é um homicida; é um criminoso. Porque, todavia, menor de 18 anos, recebe um tratamento de favor: não se o considera assassino e sim "menor infrator"; não cumpre pena e sim será internado em uma casa de educação; não será mantido preso por mais do que três anos.

            É injusto e imoral que seja assim: o caráter nefasto de um crime não se atenua nem desaparece pela idade do seu autor, ao menos até certo limite. No Brasil, o de 18 anos é elevado demais, em face da gravidade de certas ações, cujos autores deve ser punidos como os criminosos quaisquer.

            Um crime é um crime, quer seja praticado por um maior de 18 anos, quer por um menor desta idade, se dotado de consciência do caráter ilegal do seu procedimento.

            Na geração de quantos contam, hoje, cerca de 18 anos, os adolescentes já apresentam esta consciência em relação, pelo menos, aos crimes mais grosseiros. Nenhum jovem de 14, 15 ou 16 anos ignora que matar, estuprar, falsificar, roubar, espancar, correspondem a crimes. Por mais que a imaturidade, a irreflexão, as companhias perniciosas possam influenciá-lo, sempre a liberdade individual existe, quer para o cometimento do crime, quer para a abstenção dele: pela parcela de livre-arbítrio exercida criminosamente, o menor deve responder.

            Disto resulta a conveniência da redução da maioridade penal, de 18 anos, para 16 ou 15, à exemplo de outros países, como a Polônia, em que a imputabilidade principia aos 17;  como a Argentina e o Chile, em que o limite cifra-se nos 16 anos;  como a Dinamarca e a Noruega, que adotam a idade de 15;  como o Equador, com a de 12; como a Austrália e a Suíça, com a de 7; como os EE.UU.AA, com a de 6. Na Inglaterra inexiste limite etário.

            Em todos estes países, o criminoso menor de 18 anos o é tanto quanto entre nós o é um maior de idade.

 

 

            Pena de morte.

            Enquanto os psicopatas de grau menor ou médio não matam, os mais perigosos fazem-no. Se nem todo psicopata é assassino, muitos assassinos são psicopatas:  eles correspondem a cerca de 20% dos presidiários e aos autores de mais da metade dos crimes graves, em relação aos demais encarcerados.

            Eles perpetram atrocidades, assassínios isolados e em série, latrocínios, atos de crueldade que repugnam às pessoas comuns. Envolvidos em situações de violência física, intimidação ou de provocações, eles "demonstram um misto de satisfação, prazer, sensação de poder e indiferença" (página 130).

            Nenhuma pessoa normal regozija-se com a prática do mal: o psicopata gratifica-se com ela. Os mais graves apresentam, em grau exacerbado, "insensibilidade e desprezo pela vida humana" (página 129).

            Os psicopatas reincidem na criminalidade em uma proporção de 200%, em cotejo com criminosos sadios, percentual que triplica em relação aos crimes violentos (página 133).

            Insensíveis por natureza, os psicopatas graves encarnam indivíduos especialmente perigosos, cuja existência equivale a uma ameaça constante.

            É incurável a psicopatia (página 173): o psicopata nasce como tal, como tal vive e somente deixa de sê-lo ao deixar de viver.

            Se a condição de psicopata é definitiva; se os psicopatas mais perigosos cometem atrocidades; se a sua reincidência nos crimes é elevada; se todo criminoso deve ser punido proporcionalmente à gravidade do crime; se o homicídio corresponde ao mais grave, então a sociedade deve não apenas punir o assassino com a pena maior, como deve resguardar-se da reincidência.

            O psicopata criminoso (autor de assassínio ou de outro crime atroz) deve ser mantido afastado da sociedade, permanentemente, mediante a sua prisão vitalícia ou a sua execução, penas inexistentes no Brasil em que, por outro lado, certas circunstâncias relativas ao cumprimento da pena permitem abreviar-lhe o prazo:  amiúde, o criminoso cumpre a detenção por lapso inferior ao que lhe correspondeu à condenação.

            Há, entre nós, uma propensão à leniência, ao favorecimento do criminoso (menor ou maior de idade), de que representa caso máximo e absurdo, a retroação da lei penal em benefício do condenado: todas as leis (civis, comerciais, tributárias, administrativas etc.) vigoram da data em que passam a vigorar, por diante, do presente para o futuro, com uma única exceção: a lei penal modificada vigora do momento em que passa a vigorar para o futuro e, também, para o passado, vale dizer, aplica-se aos criminosos condenados por ela, desde que a modificação abrande a pena ou alivie-lhe o cumprimento: adotou-se um regime de exceção na mecânica legislativa, que favorece os malfeitores exclusivamente (e jamais as pessoas de bem), para eximi-los, por alguma forma, do castigo que mereceram em razão do dano inflingido a outrem, privilégio escandalosamente imoral.

            O psicopata autor de atrocidade deve ser punido com  prisão vitalícia ou com a morte, à guisa de retribuição da sociedade pelo mal que perpetrou e de profilaxia de males outros, de que ele é especialmente suscetível. Ainda quando não se reduzisse a criminalidade, reduzir-se-ão os criminosos e evitar-se-ão novos crimes.

             

           

            Mentalidade.

            Encerra o derradeiro capítulo uma série de sugestivas observações, relativas à mentalidade presente nas sociedades ocidentais e que merecem  atenção e  criteriosa reflexão: segundo a autora, as últimas cinco décadas vem se caracterizando pela adoção de atitudes psicopáticas nas relações humanas. "Nossa sociedade, diz ela, está fundamentada em valores e práticas que, no mínimo, favorecem a maneira psicopática de ser e viver" (pág. 189). Há individualismo, em que as pessoas adotam a si próprias como critério decisivo do seu comportamento e como elemento preponderante na sua escala de valores, o que implica três atitudes: a busca da felicidade pessoal em detrimento de qualquer obrigação em face dos demais; a ausência de um padrão moral que permita hierarquizar os comportamentos, o que, por sua vez, resulta na aceitação de qualquer tipo de atitude, desde que satisfaça ao indivíduo; a consideração dos demais como instrumentos dos nossos desígnios, vale dizer, como objetos que usamos em favor próprio.

            Neste egocentrismo, os interesses e conveniências de cada qual, os seus caprichos e  paixões, as suas preferências e  desejos correspondem ao critério decisivo  das suas relações com o seu semelhante.

            Devido a isto, têm-se deteriorado os laços afetivos e os valores centrados no outro, à exemplo da honestidade, da reciprocidade e da responsabilidade perante o próximo. "Estamos perdendo o senso de responsabilidade compartilhada no campo social e de vinculação significativa nas relações interpessoais. O aumento implacável da violência [não] é senão uma resposta lógica e previsível a toda essa situação" (página 192), na medida em que a lógica da agressão, física ou moral, consiste no embotamento do senso de respeito pelo próximo e de limites da ação individual.

            Nas ficções das telenovelas, nos romances, nos filmes dos cinematógrafos, as personagens maldosas, inescrupulosas e destituídas de sentimento de culpa tornaram-se os ídolos da atualidade (pág. 192), sintoma de que uma proporção significativa de pessoas identifica-se com a sua forma de ser e de tratar a outrem. Mesmo os indivíduos  mentalmente sadios, freqüentemente adotam comportamentos psicopáticos, que reputam aceitáveis quando os praticam embora, no seu egocentrismo, repugnem-se deles quando lhes são o objeto: a moral egocêntrica tende a criar uma duplicidade, em que o indivíduo se permite o egoísmo em relação a outrem, porque lhe convém, e insurge-se contra ele, quando os outros o tratam egoisticamente, porque, então, ele o molesta.

            A moral egocêntrica induz ao afastamento mútuo das pessoas; leva  a não se contar com o próximo como um fator de cooperação e de simpatia e a contar-se com ele como fonte de indiferença e mesmo de hostilidade ou de ameaça. Daí a desconfiança, o medo, a reserva como formas de proteção, que tendem ao "cada um por si".

             "Somente uma educação pautada  [por] sólidos valores altruístas poderá fazer surgir uma nova ética social que seja capaz de conciliar direitos individuais com responsabilidades interpessoais e coletivas. A aprendizagem altruísta é o único caminho possível para combatermos a cultura psicopática pautada na insensibilidade interpessoal e na ausência de solidariedade coletiva." (pág. 193).

            Se de uma ética centrada no indivíduo e que leva ao egocentrismo, é natural que se originem ações e reações caracterizadas pelo desprezo do próximo, nota essencial da psicopatia, por outro lado, de uma ética altruísta, centrada também no próximo e que leve ao desenvolvimento de todas as formas de generosidade, é natural que se produzam ações e  reações caracterizadas pela consideração apreciativa do próximo, nota essencial da mente não psicopática e de uma sociedade solidária.

            A consideração do próximo originou virtudes tradicionalmente adotadas por inúmeras sociedades, como a pureza de intenções, a sinceridade, a veracidade, a modéstia, a humildade, a paciência, o arrependimento, o perdão, a fidelidade, o império sobre as próprias emoções, a admiração pelo mérito, o desprendimento, a solidariedade, o senso de dever, a bondade; a dedicação à família, o espírito público, o rigor profissional, a probidade nos negócios, o cumprimento da palavra dada; a moderação dos apetites, a gentileza,  o espírito de conciliação, o senso de justiça,  a honestidade para consigo próprio, o senso de compromisso, o esforço por melhorar-se, o exercício da bondade como forma de satisfação, o respeito pelo diferente.

            Trata-se de formas sofisticadas de altruísmo, em que a afetividade, a inteligência e a atividade referem-se diretamente ao próximo ou, indiretamente, pelos efeitos que produzem no indivíduo e que, melhorando-o, melhoram-lhe a relação com os demais.

            Tais valores importa: (a) inculcar nas crianças, como função inexorável dos pais, muitos, atualmente,  culpados pela permissividade com que deformam os seus filhos e cujo egoísmo, destarte, se avoluma, ou pela negligência com que lhes descuram da educação, ao absterem-se da transmissão de exemplos e de valores. O papel da educação deve ser o de dispor a viver para outrem, dizia Augusto Comte. (b) cultivar nas pessoas em geral, pela moderação do egoísmo e pela estimulação do altruísmo, critério ético formulado com veemência por Augusto Comte, criador do Positivismo, dado corresponder o segundo a uma condição inata de todo ser humano e, com isto, suscetível de incremento por meio da educação, e ao fundamento da vida em sociedade. O principal problema humano, afirmava ele, consiste na subordinação do egoísmo ao altruísmo, ou seja, na constituição de uma mentalidade oposta à de natureza psicopática.

            A diferença entre os povos não corresponde apenas à riqueza econômica do países respectivos, e sim, também, à psicologia de cada qual, que se averigüa, também, pelo comportamento das pessoas umas em relação às outras.

            São povos desenvolvidos os que adotam formas de viver e de conviver inspiradas pelo altruísmo, em que o meio humano, representado pelos demais, é acolhedor e gratificante: ali as pessoas são mais felizes, subalternizam o ter em favor do ser,    e                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     e, certamente com mais prontidão identificam os psicopatas, o que lhes permite precaverem-se contra os seus  malefícios.

             No cultivo das virtudes tradicionais, paulatinamente desenvolvidas pela civilização ocidental ao longo de séculos, como lenta acumulação de uma sabedoria de que cada geração é herdeira do seu pretérito, encontra-se a manutenção de um patrimônio inestimável da Humanidade, a elevação do ser humano na sua qualidade e a formação de valores em que a existência de cada um  favoreça a dos demais. Eis a riqueza moral da espécie humana, de que são portadoras as sociedades ocidentais: pertence a cada um manter-se ao nível dela e, ao fazê-lo, defender-se e defender aos demais de indivíduos que se encontram radicalmente abaixo ou fora dela.

 

 

 

           

 

  

Esse post foi publicado em Psicologia. Bookmark o link permanente.

Uma resposta para Mentes perigosas. Psicopatia. Segunda parte.

  1. João disse:

    Bravo, Arthur. Sim para o altruísmo, não para sua imposição por decretos. Meu amigo filósofo, Nietzsche, dizia que "ninguém responde por suas ações, por seus efeitos, por suas omissões, por sua essência […], quem procuraremos para culpar? O pai? A mãe? O professor? Não, nenhum deles. São as circunstâncias determinantes." tal vejo um texto seu (uma das grandes circunstâncias determinantes deste país!). Abraços do seu novo leitor!

Deixe um comentário