Contra os feriados religiosos.

CONTRA OS FERIADOS RELIGIOSOS. PELO ESTADO LAICO.

 

Arthur Virmond de Lacerda Neto. Março de 2005

                arthurlacerda@onda.com.br

 

                               I- Introdução

                               II- Ilegalidade

                               III- Inconveniência

                               IV- Nocividade

                               V- Estado laico

                               VI- Positivismo

                               VII- O crucifixo e as estátuas de Cristo

                               VIII- Esclarecimento

                               IX-  Objeções

                               X- Medidas urgentes

                Correspondem a feriados nacionais os dias 25 de março, relativo à paixão de Cristo, 12 de outubro, comemorador de N. S. Aparecida, 25 de dezembro, concernente ao nascimento de Cristo; há ponto facultativo aos 9 de fevereiro (quarta-feira de Cinzas) e 26 de maio (efeméride do Corpo de Cristo).

                Nas três primeiras datas, paralisa-se toda a atividade em território nacional; nas duas últimas, o comparecimento ao trabalho é opcional. Além disto, interrompe-se o trabalho em 24 de março em muitas repartições, públicas e privadas, em que ato interno declara recesso naquele dia, como foram os casos, em 2005, do Tribunal de Justiça do Paraná, que  o transformou em feriado em todas as repartições judiciárias daquele Estado, e da rede de ensino público no mesmo Estado.

                Os feriados católicos, oficializados, são ilegais, inconvenientes e nocivos;  eles correspondem a uma invasão do Governo na religião, violam a natureza laica do Estado, contrariam o regime republicano e deve-se-lhes retirar o aspecto oficial.

 

II -Ilegalidade

          O artigo 3º da Constituição Federal determina: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária. IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

       O Estado brasileiro adota, pois, como seu desiderato, a constituição de uma sociedade livre, ou seja, em que haja liberdade; justa, ou seja, em que se atribua a cada um o que lhe pertence, e solidária, ou seja, em que se reja pelo sentimento de solidariedade. A tudo isto infringem os feriados católicos.

                Eles infringem a liberdade, porquanto as efemérides em causa, pertencendo a um credo religioso, referem-se à consciência de cada um, à sua subjetividade, ao seu foro íntimo, em que é-se livre para aceitar-se e para se recusar os dogmas das religiões e os princípios filosóficos de qualquer natureza. Na medida em que alguém, usufruindo da sua liberdade de consciência, adere ao catolicismo, é livre para fazê-lo no todo ou em parte, para aceitar alguns dos seus dogmas, com exclusão de outros, para praticar o culto correspondente se assim o entender e para abster-se disso, no caso oposto.

                Nos feriados religiosos comemora-se a efeméride correspondente pela sustação da atividade útil: eles correspondem a uma forma de culto religioso, cuja prática deve pertencer à livre decisão de cada pessoa, dentro da sua liberdade de consciência: praticará o culto quem o quiser,  não o praticará quem não o quiser.

                Ora, os feriados em causa, verifica-se o oposto; verifica-se que os poderes públicos impõe a comemoração das datas de uma religião, ou seja, o Estado obriga o cidadão a uma homenagem cuja prática deveria decorrer da sua convicção pessoal e jamais de imposição legal, ela deveria praticar-se espontânea e jamais compulsoriamente. Os feriados religiosos violam a liberdade de consciência e de culto religioso.

                Tais feriados, enquanto oficializados, infringem a justiça, aquele critério de discernimento pelo qual, dentro da ponderação das circunstâncias de cada situação, atribui-se a cada um o que, razoavelmente, merece.

                A adoção de um credo religioso, qualquer que seja, corresponde ao foro íntimo, à liberdade de pensamento individual, dentro da qual cada crente acata, se assim o entender, as prescrições do seu credo, que ninguém pode impor a quem quer que seja: os feriados religiosos oficiais correspondem à imposição, da parte do Estado, de uma homenagem a certos eventos de uma certa religião, a todos os cidadãos que se encontrem em território nacional, nas datas respectivas, quer eles pertençam ao catolicismo, quer não, quer eles aceitem celebrar a efeméride em causa, quer não, quer eles desejem celebrá-las, quer não.

                Tais feriados impõe-se a quem deseja celebrá-los e a quem se acha na disposição inversa: eles são injustos com os segundos, porque obriga-os ao que não querem; eles são injustos com os primeiros, porque se eles desejam celebrar as datas religiosas, não devem ser obrigados a tal.

                Seriam justos os feriados religiosos, se os adeptos respectivos pudessem folgar nas datas correspondentes, com desconto proporcional da sua remuneração ou com reposição do número de horas de que se absteve de laborar, solução, aliás, já preconizada em 1890 por Raimundo Teixeira Mendes, então chefe do Positivismo brasileiro.

                Os feriados religiosos infringem a solidariedade: supõe ela um sentimento de simpatia pelo próximo, que induz cada qual  a preocupar-se com ele, a procurar atuar em seu benefício, a partilhar-lhe dos dissabores, a compreendê-lo e favorecê-lo. Nada disto propiciam os feriados católicos: havendo no Brasil adeptos de credos acatólicos e indivíduos destituídos de qualquer credo, acham-se eles forçados, por deferência do Estado ao catolicismo, à paralisação das suas atividades úteis, o que vezes muitas, contraria os interesses das pessoas, que assim entram em estado de suspensão por um dia ou mais, quando aos envolvidos interessa amiúde e ao contrário, o prosseguimento da atividade. Os acatólicos e mesmo os católicos não praticantes ou fracamente fervorosos, acham-se, destarte, prejudicados nos seus interesses, em razão da oficialização do culto católico, o que será, porventura, motivo de ressentimento da parte dos acatólicos face à religião dos católicos, e mesmo da parte destes, face à imposição do feriado; ou seja, os feriados católicos podem contribuir para instaurar-se um mal-estar psicológico em que os  lesados culpam, justamente, o favor de que certa religião é a beneficiária.

Ora, gerar descontentamento na sociedade não concorre para a construção de uma sociedade solidária: os feriados católicos oficiais equivalem a um motivo de perturbação dos interesses das pessoas, e portanto, o Estado revela-se anti-solidário face a elas.

                O inciso IV do artigo 3º da constituição enuncia como objetivo fundamental da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, mandamento que a oficialização dos feriados católicos afronta diretamente.

                Com efeito, a constituição determina a promoção do bem de todos, fora de qualquer critério de discriminação: o que se  verifica é o oposto disso, porquanto os feriados católicos, enquanto prestigiam o culto correspondente, promovem o bem dos adeptos respectivos, e criam, em favor deles, um privilégio de natureza religiosa, ou seja, uma discriminação contra todos os acatólicos, portanto, contra os protestantes, os muçulmanos, os israelitas, os ateus, os positivistas, os anti-clericais, os livres-pensadores, os agnósticos, os budistas e os adeptos de quantos credos existam em território nacional, diverso do catolicismo.

                O Estado trata ao  credo católico em regime de favor, ao passo que ignora os demais; discrimina às avessas, mercê de um privilégio, pelo qual o catolicismo merece-lhe deferências que não lhe merecem as demais confissões.

                Há, mais, porém: os feriados religiosos infringem o inciso VI do artigo 5º da constituição federal, assim redigido: “VI- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos”: é precisamente o contrário disto o que se observa.

                Assegurar-se o livre exercício dos cultos religiosos, equivale a que os ministros das religiões quaisquer podem promover os atos respectivos de culto e que os seus adeptos podem aderir-lhes e deles participar. Trata-se de garantia de uma liberdade, de uma possibilidade de se atuar: o exercício do culto religioso é livre na medida em que os atos correspondentes podem praticar-se e deles pode-se participar. Nos dois casos, pode-se, e não deve-se, ao passo que, no caso dos feriados religiosos, deve-se praticar o ato cultual da paralisação da atividade, ao invés de poder-se fazê-lo: não há livre exercício dos cultos religiosos, senão exercício obrigatório de uma parte do culto católico, o que representa uma imposição aos católicos e uma violência contra os acatólicos.

 

 

III- Inconveniência

                 É inconveniente e, desta arte, indesejável a manutenção dos feriados católicos do ponto de vista  da atividade material dos cidadãos e do próprio catolicismo.

                Do ponto de vista da atividade material dos cidadãos, os feriados são inconvenientes porque provoca-lhe, desnecessariamente, a paralisação: interrompem-se as aulas, prorrogam-se as audiências judiciais, as consultas médicas, as cirurgias, as reuniões laborais, cessa a atividade comercial e a prestação dos serviços,  em suma, toda a vida útil do país suspende-se quando poderia e deveria prosseguir, no interesse dos indivíduos e da nação.

                Do ponto de vista do catolicismo, são inconvenientes porque desmoralizam as efemérides correspondentes e de conseqüência a respeitabilidade daquela religião: a imensa maioria das pessoas, inclusivamente os católicos, não  aproveita os feriados como dias de culto especial, senão como ensanchas de folga e de lazer:  assim os espera, assim os considera e assim regozija-se com eles. Todos adoram os feriados, religiosos ou cívicos ou de que natureza for, mercê da abstenção do labor cotidiano, pela oportunidade de vilegiaturas, de ir-se à praia, à piscina, à fazenda. Raros veneram neles o Cristo nascido, morto ou ressurrecto, pelo que as efemérides em questão, de comemorações cultuais, tornaram-se  em bem-vindos motivos de folganças.

                Evidentemente, o sentido original dos feriados acha-se deturpado, e de modo irreversível: é inútil lamentar-se o caráter essencialmente comercial da Páscoa e do Natal, o atrativo de folga que, prioritariamente, se associa aos feriados religiosos, o esquecimento generalizado da significação teológica destas efemérides: a teologia, forma de entender-se o mundo e o homem, relacionando-os com a idéia de um deus, acha-se fadada a desaparecer e vem declinando há séculos, de mais em mais. A sociedade laiciza-se crescentemente:  as pessoas afastam-se de tudo quanto se vincule com as religiões tradicionais, que cada vez menos merecem fé e prestígio, para, em lugar disto, caírem no vazio em matéria de convicções e de valores (o que é negativo) ou (o que é desejável) adotarem princípios e sistemas filosóficos laicos, vale dizer, desligados da teologia, e humanistas, ou seja, fundamentados em motivos humanos.

                Os feriados católicos não fortalecem o catolicismo nem ressaltam, no entendimento dos seus fiéis, o seu conteúdo religioso: eles são inúteis.

         Do ponto de vista dos católicos, os feriados em causa revelam-se inconvenientes por um segundo motivo: mercê deles, o governo impõe a todos quantos se encontram no território nacional, nos dias correspondentes, um ato de culto do catolicismo, quando os atos cultuais de qualquer credo devem resultar da espontânea convicção de cada fiel no dogma que origina o ato cultual, e jamais da imposição de lei. Mediante a oficialização dos  feriados católicos, o governo substitui-se à liberdade de que cada católico deve usufruir para praticar o seu culto e impõe-lhe, coercitiva e violentamente, este culto. Ao mesmo tempo, provoca a cessação da atividade útil de todos os cidadãos, inclusivamente dos acatólicos, que assim acham-se diretamente atingidos pelo favoritismo governamental em face do catolicismo, o que, se lhes é muito agradável, como ensancha de sempre apetecida folga, é, por outro lado, odioso, porquanto o Estado, que deve servir a todos, serve, em regime de favor, a uma certa religião, que nem todos professam, e ainda que a professassem, o mal seria exatamente o mesmo, porquanto não cabe ao Estado legislar em matéria de religião.

 

                IV– Nocividade

 

                A instituição dos feriados católicos é nociva porque importa em confusão dos poderes temporal e espiritual.

                Poder temporal significa a organização administrativa que atua sobre as coisas, do ponto de vista material. Ele corresponde ao governo.

                Poder espiritual significa o conjunto de indivíduos cujas opiniões influenciam  os sentimentos, os pensamentos e os costumes das pessoas, do ponto de vista das suas convicções. Ele corresponde, quando organizado, ao sacerdócio das religiões e quando não, aos formadores de opinião pública, a exemplo dos comentadores dos telejornais, dos articulistas das gazetas, dos escritores.

                O poder temporal deve atuar exclusivamente sobre as coisas; o espiritual, unicamente sobre as consciências. Não deve o Estado interferir com o que respeita ao segundo e vice-versa. Não deve, por exemplo, a igreja gozar de poder político, como não deve, por exemplo, o governo adotar certos dogmas como doutrina de Estado.

                Cuida-se de âmbitos distintos de atuação, que não se devem misturar, como garantia da liberdade de consciência, que existe apenas onde ninguém goza de autoridade para impor convicções a ninguém e onde cada um adota as opiniões quaisquer apenas quando se convence delas  e  quando formula as que entender.

                Disto decorre que o Estado deve restringir a sua atuação ao papel que legitimamente lhe cabe, qual seja, o de administrar a sociedade do ponto de vista material, e abster-se de fazê-lo do ponto de vista espiritual: não pode o Estado oficializar nenhuma doutrina que imponha como convicção obrigatória aos cidadãos. Ora, o catolicismo encarna uma doutrina religiosa e se os poderes públicos no Brasil não lhe adotam os dogmas, adotam, em parte, o culto; se não impingem aos cidadãos as convicções correspondentes, impingem-lhes, no que toca aos feriados, os atos que deveriam decorrer, livremente, da aceitação daquelas convicções.

                O governo federal não ensina a doutrina católica, em que certas datas evocam certos fatos, porém obriga as pessoas a comportarem-se como se elas houvessem adotado aquela doutrina e como se se conduzissem como seus adeptos: ele não apregoa o nascimento, a morte nem a ressurreição de Cristo, porém obriga a todos, no território nacional, católicos ou não, a sustarem a sua atividade profissional, em homenagem àqueles três acontecimentos. Embora não impinja o dogma, impõe o culto; de temporal que é,  invade o espiritual.

 

                V – Estado laico

 

                O princípio da separação dos poderes temporal e espiritual corresponde à liberdade de consciência, de cultos, de religião, de pensamento, pelo qual as opiniões quaisquer prevalecem  pela persuasão exclusivamente e jamais em conseqüência de imposições governamentais ou de privados, que interfiram com a liberdade individual. Tal princípio equivale ao Estado laico, aquele em que a religião encarna assunto privado, do foro íntimo das pessoas e deixa de encarnar assunto de competência do governo, que não deve, portanto, legislar sobre ela: oficializar os feriados católicos é legislar sobre ela.

                No Brasil, tal princípio instaurou-se em 1890, graças à proclamação da república: enquanto a monarquia adotava oficialmente o catolicismo, como credo obrigatório e discriminava abertamente os acatólicos, havendo, portanto, confusão do temporal com o espiritual, a república desligou-se do catolicismo sem adotar nenhuma religião como credo oficial, ou seja, o Estado passou a ser laico, proibido (pela constituição) de beneficiar  e de prejudicar qualquer confissão religiosa: tornou-se-lhes indiferente e passou a zelar exclusivamente pela administração material do país e não mais também pelo estado da consciência das pessoas.  Tratou-se de um avanço no sentido da liberdade de pensamento, que resultou diretamente da influência do  Positivismo.

 

                VI- O Positivismo

 

                Positivismo é a doutrina que o francês Augusto Comte (1798-1857) concebeu e cujos princípios fundamentais são estes:

a) o entendimento, em filosofia,  de que o mundo funciona segundo leis naturais         que lhe são inerentes, e não segundo a intervenção de seres sobrenaturais (Deus) nem de energias, espíritos ou forças igualmente sobrenaturais,

b) o entendimento, em religião, de que  há um ser supremo, superior a cada um de nós, a Humanidade, conjunto dos seres humanos de todos os tempos,

c) o entendimento, em moral,  de que o altruísmo, vale dizer, a bondade sob todas as suas formas é preferível ao egoísmo sob qualquer das suas expressões,

d) o entendimento, em política, de que o Governo deve limitar-se a atuar sobre as coisas, e jamais sobre os pensamentos, ou seja, deve ocupar-se da administração da vida material de cada coletividade, sem interferir no que se relacione com as convicções das pessoas: não deve o Estado impor  nenhuma religião, tampouco os atos de culto correspondentes; em suma, o Estado deve ser laico, neutro em matéria de religião.

 

O Positivismo é republicano: sê-lo significa optar por um regime político em que não há rei nem imperador, nem nobreza, nem privilégios decorrentes do nascimento da pessoa em certa família; significa adotar um regime político em que todos os esforços do governo visam ao bem-estar da coletividade, mediante a atividade pacífica, ou seja, extreme de qualquer violência.

 Ser positivista equivale, ainda, a preferir-se uma república laica, ou seja, um Estado neutro em matéria de religião, que não oficializa nenhuma, não ensina nenhuma, não proíbe nenhuma, não prestigia nenhuma, não impede  os atos de culto de nenhuma nem os promove, sob forma de feriados oficiais, comemorações públicas, missas encomendadas etc..

De marcante presença em vários países do mundo, inclusivamente no Brasil, em que influenciou o ensino, a literatura e a política, também graças à influência do Positivismo, o Brasil deixou de ser uma monarquia confessional, em que havia uma religião oficial (a católica) e converteu-se em uma república leiga; mercê diretamente desta influência, instaurou-se a separação dos poderes temporal e espiritual, com as  conseqüências da liberdade de consciência e  da laicidade do Estado; mercê desta influência, desde 1890 até 1931, os feriados nacionais brasileiros correspondiam a 1º de janeiro (comemoração da fraternidade universal), a 21 de abril, a 3 de maio (dia ao qual, então, se atribuía o descobrimento do Brasil), a 13 de maio (pela fraternidade dos brasileiros), a 14 de julho (em comemoração da República, da Liberdade e do povos americanos), a 7 de setembro, a 12 de outubro (descobrimento da América), a 2 de novembro (dia dos mortos) e a 15 de novembro.

                Cuidavam-se de datas cívicas, históricas, de fraternidade, e uma de natureza moral,  sem nenhuma de conotação religiosa: respeitava-se a neutralidade religiosa do Estado e celebravam-se efemérides da história pátria ou mundial, e  uma da vida social que, direta ou indiretamente, todos os brasileiros achavam-se capazes de celebrar, fora de qualquer favoritismo religioso.

                Para o Positivismo, a separação do temporal face ao espiritual encarna um princípio cardeal que deve reger os governos, pelo qual se assegura a liberdade de consciência, que caracteriza o regime republicano. República, no Positivismo, equivale à existência das liberdades civis, dentre as quais a de consciência, o que decorre da separação entre o espiritual e o temporal, o que, por sua vez, origina a laicidade do Estado, fonte, a seu turno, da impropriedade  da decretação dos feriados católicos ou dos de qualquer outra religião.

 

VII- O crucifixo e as estátuas de Cristo

A laicidade do Estado, a separação do temporal face ao espiritual, viola-se também pela presença do crucifixo em repartições e locais públicos, a exemplo das casas parlamentares, dos hospitais e escolas públicas, dos gabinetes dos juízes, das salas de audiências judiciais e das estátuas do Cristo existentes em algumas cidades, em terrenos municipais.

                O crucifixo encarna um símbolo religioso, que cada católico é livre para expor nos lugares que, privadamente, lhe pertençam; nos lugares públicos, pertencentes aos governos federal, estadual e municipal, impõe-se respeitar a separação do governo face às religiões quaisquer e evitar-se, rigorosamente, aquele objeto, cuja presença implica em privilégio em favor do catolicismo, ainda que a maioria da população adira, nominalmente, ao catolicismo, ainda que os juizes e parlamentares sejam católicos: populares, juizes, parlamentares, governantes, gozam de liberdade de adornarem com os símbolos religiosos da sua preferência os recintos privados, que lhes pertençam como cidadãos, e não as dependências dos prédios públicos, em que atuam como funcionários da república leiga.

                Quando o presidente de um tribunal ou de uma casa parlamentar, o diretor de uma escola, de um hospital ou de uma repartição públicos, uma autoridade do Poder Executivo, do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, quando qualquer destas individualidades exorna os recintos em que funciona com o crucifixo, exorbita dos seus poderes e viola a neutralidade do Estado em matéria de religião.

 Por isto, é imperiosa a retirada do crucifixo de todos os prédios públicos em que ele se encontra, da administração direta e indireta, federal, estadual e municipal. Que cada católico use-o, se quiser, como penduricalho ao pescoço, como adorno ou objeto de veneração, no seu automóvel, na sua residência, no seu consultório, no seu escritório,  que lhe pertencem enquanto cidadão, porém jamais nos lugares que pertencem ao Estado e que ele usa como funcionário público.

 Por isto também, é imperiosa a remoção, o quanto antes, as estátuas de Cristo que se chantaram no morro do Corcovado (no Rio de Janeiro), no morro do monge (na Lapa, Paraná),  no morro de Guaratuba (no Paraná) e a (aliás, feia e de mau gosto) estátua de N. S. da Luz, que se implantou em Curitiba, em meio a uma via pública. Tais estátuas, de índole evidentemente religiosa, importam em prestigiamento de um certo credo, em terrenos públicos, e portanto, em violação do caráter leigo do Estado.

 

                VIII- Esclarecimento

                Nada do quanto exprimi, traduz hostilidade à religião, ao catolicismo, aos feriados católicos, ao crucifico nem às estátuas do Cristo. Não sou contra nada disso; sou contra que o Estado  perca a neutralidade que deve adotar, face às religiões quaisquer, e favoreça  uma delas ou mais de uma, no caso, o catolicismo. Se se tratasse de feriados budistas, protestantes, israelitas, muçulmanos, positivistas, seria idêntica a minha atitude.

                Não sou contra, sou a favor: a favor da separação do temporal face ao espiritual, a favor da laicidade do Estado, a favor da sua neutralidade religiosa, a favor da liberdade  espiritual de fato, a favor da república a sério, a favor do tratamento igualitário dos poderes públicos perante todas as religiões, a favor da sua indiferença a todas.

 

                IX – Objeções

 

                Objetar-se-me-á que os feriados católicos devem manter-se porque o catolicismo corresponde à religião da maioria da população brasileira.

                Não se trata de maioria ou de minoria, de quantidade; trata-se de que ao Estado não cabe decidir em matéria de religião, seja ela maioritária ou minoritária, assim como não  lhe pertence  decretar feriado nas datas festivas do grêmio de futebol da maioria da população de certa cidade, certo estado ou do país, como tampouco lhe  toca decretá-lo nas efemérides do partido político vencedor, por maioria de votos.

                Religião, futebol, opção política, correspondem a preferências e a convicções privadas, que como tal devem permanecer,  independentemente do número dos seus adeptos.

                Mesmo porque, é falso que o catolicismo corresponda, de fato, ao credo maioritário dos brasileiros: o grau de fé, de crença verdadeira e sincera, dos indivíduos, nos dogmas católicos, no Brasil, é reduzido ao ponto em que, na verdade, os que se declaram católicos são-no apenas nominalmente, intitulam-se assim por conveniência, por imitação, por haverem sido batizados, sem levarem a sério a religião que supostamente professam.

                Quantos, de fato, assistem às missas, confessam-se e comungam regularmente? Quantos, de fato, acatam as diretrizes do papa acerca da sexualidade? Quantos, de fato, aceitam o pecado original e a sua expiação por Cristo? Quantos, de fato, acreditam que, morto, Cristo ressucitou? Quantos, de fato, reconhecem na Bíblia um livro escrito sob a inspiração divina e como fonte suficiente de todos os conhecimentos necessários? Sobretudo, quantos destinam os feriados de Páscoa e de Natal, para meditarem acerca do nascimento, morte e ressurreição de Cristo? Quantos ocupam tais dias religiosa, ao invés de mundanamente?

                Em todas estas indagações, a resposta é uma única: muito poucos e cada vez menos. Os católicos a sério compreendem uma parcela mínima da população brasileira, que corresponde aos sacerdotes e a raros leigos; a maioria, aquela mesma que se declara católica,  vive com indiferença face aos padrões católicos, ou seja, cada um rege-se pela sua própria consciência, segundo o seu próprio entendimento, ao invés de submeter-se, rigorosamente, aos ensinamentos do catolicismo.

         Certos princípios e valores, como os da fraternidade, da tolerância, do respeito pelo próximo, da paz internacional, que, generalizadamente, as pessoas observam,  não decorrem do catolicismo apenas,porém da maioria das religiões, senão mesmo de todas, e da maioria das doutrinas que dogmatizaram acerca da vida em sociedade, a exemplo do confucianismo, do budismo, do positivismo.

Trata-se de critérios de altruísmo cuja adoção não depende, necessariamente, da do catolicismo, e aos quais, em regra, limita-se o catolicismo dos que se declaram seus adeptos, ou seja, o catolicismo da maioria equivale, na verdade, à adoção   de certos valores pregados por diversas religiões e doutrinas, dentre as quais o catolicismo, e a uma indiferença quanto ao que lhe constitui a especificidade doutrinária.

                Há, pois, no Brasil, uma maioria convencionalmente qualificada de católica, que, em verdade, não o é: provam-no o comportamento das pessoas nos feriados religiosos, em que uma escassa minoria dedica-se à sua religião e em que a restante maioria ocupa-se do lazer, da família, do entretenimento, do descanso, em suma, do secular e não do divino, do laico e não do teológico, do que não corresponde à sua religião e não ao que a representam aquelas datas.

                Demais, justificar a existência dos feriados católicos invocando-se a maioria, equivale a, manifestamente, discriminar as minorias: protestantes, budistas, muçulmanos, positivistas, israelitas, maçons, todos encarnam minorias cujas efemérides o Estado ignora. A eles, trata como deve, remetendo as festividades correspondentes ao âmbito dos respectivos templos; ao catolicismo, eleva à condição de culto nacional: nem todos são iguais perante a lei, quero dizer, as minorias são diferentes porque o Estado, ao oficializar os feriados católicos, trata-as assim.

 

                X – Medidas urgentes

 

                No interesse da legalidade constitucional, da liberdade de consciência, da justiça para com todos os cidadãos, da solidariedade entre os brasileiros;

                no  interesse da preservação do significado das efemérides católicas,

                no interesse do normal funcionamento das instituições e do regular desenvolvimento da atividade dos cidadãos,

                por respeito ao  princípio da separação entre o Estado e as igrejas quaisquer (laicidade do Estado),

                considerando-se o que o catolicismo não corresponde, de fato, ao credo majoritário no Brasil,

impõe-se as seguintes medidas:

1-       a revogação imediata dos feriados católicos da paixão de Cristo, de N. S. Aparecida, do Natal e do ponto facultativo na quarta-feira de Cinzas e no dia do Corpo de Deus;

2-        a substituição deles por feriados cívicos, a exemplo dos referidos no item VI,

3-       a remoção dos símbolos teológicos dos prédios e propriedades públicas, a começar pelo crucifixo nos juizados, nos tribunais, nas casas parlamentares, nos hospitais e escolas públicos, nos quartéis e nas repartições públicas em geral;

4-       a extinção do ensino religioso nas escolas públicas.

Arthur Virmond de Lacerda Neto é positivista ortodoxo.

 

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Uma resposta para Contra os feriados religiosos.

  1. lasarovicente disse:

    Caro Arthur Virmond

    A realidade é que vivemos em um país da conveniência….

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