Jusnaturalismo e Escola Histórica

O Jusnaturalismo e a  Escola Histórica.

                                                               2005

 

   Arthur Virmond de Lacerda Neto

Aqui, relembro alguns aspectos relacionados com duas correntes de pensamento jurídico, de certo modo antagônicas: o jusnaturalismo e a Escola Histórica, cujas diferenças e cujos pressupostos ainda hoje estimulam a reflexão sobre o Direito e que indicam a que ponto a Ciência Jurídica pode caminhar por sendas divergentes.

O jusnaturalismo: definição, pressupostos e autores

Jusnaturalismo é a corrente de pensamento jurídico que prevaleceu na Europa e na América Espanhola nos setecentos e nos oitocentos, e que revolucionou a mentalidade jurídica até então prevalecente, na medida em que partia não mais de textos consagrados (como, notadamente, do direito romano e dos seus intérpretes), porém da convicção de que no homem e na natureza há princípios que a razão é capaz de descobrir e com base nos quais, mercê de raciocínios lógicos, pode-se deduzir o direito, até as suas menores particularidades.

 Existiria um sistema de normas, outro que o das regras estatais, que o homem deveria apreender intelectualmente e que seria superior ao direito estatal e a ele anterior. Assim, o jusnaturalismo não parte da observação da realidade, não observa os fatos, mas adota o raciocínio subjetivo como fonte de supostas verdades. Ele encarna a metafísica jurídica, naquele sentido tão próprio que lhe atribuiu Augusto Comte, o de uma filosofia, já não mais teológica, e ainda não positiva, em que a imaginação prevalece sobre a observação como critério de conhecimento.

Seu pressuposto cultural é o de que a natureza poderia ser entendida mediante leis físicas, axiomas que descrevessem o funcionamento dos fenômenos; analogamente, acreditavam os jusnaturalistas poder-se descobrirem leis jurídicas que descrevessem a mecânica do direito.

Suas raízes achavam-se nos pensadores gregos, na idéia de um direito universal e válido para todos os homens. Por meio de Tomás de Aquino, o cristiansmo entedia-o como as regras que o homem deveria seguir para cumprir o seu papel na ordem do mundo instituída por deus e que se resumia a praticar o bem e a evitar o mal.

Em sua versão moderna, secularizado, ele desliga-se de qualquer conotação teológica, embora João Kelsen, na sua perspicaz crítica do direito natural, note-lhe tal conotação, mais ou menos pronunciada, o que, aliás, corresponde à opinião de Augusto Comte, de que a metafísica corresponde a uma simples alteração da teologia.

Os seus representantes foram homens envolvidos nas lutas políticas e relgiosas do seu tempo, e não mais, como os juristas medievos, eruditos e universitários. O primeiro jusnaturalista foi Hugo Grócio, autor seiscentista, que concebeu o direito natural como aplicável à universalidade dos homens; Tomás Hobbes justificou o poder total do Estado, enquanto João Locke fundamentou o direito de propriedade e as liberdades individuais face aos poderes do Estado; Wolff  formulou uma teoria dos deveres humanos e o método, ainda atual, de decisão judiciais baseadas na invocação dos princípios gerais do direito.

Doutrina

Os autores jusnaturalistas concebiam a sociedade e o poder político como derivados de um acordo primitivo firmado entre os homens,  cuja celebração admitia-se hipoteticamente. Tendo vivido, de começo, em conflito mútuo, ou não (conforme o autor), em dado momento deliberaram os homens atribuir a um dentre eles, certa autoridade sobre todos, que assim, renunciariam à parcela de liberdade que transferiam ao que passava a ser o seu governante. A deliberação de conviverem chamou-se de pacto de sociedade; a deliberação de conferirem poder a alguém, chamou-se de pacto de sujeição; a ambos, chamou-se de contrato social, antes de cuja conclusão teriam os homens vivido em liberdade absoluta, no gozo de certos direitos, chamados de direitos naturais, imanentes aos homens, inerentes à sua condição de criaturas humanas. De uma parte desta liberade teriam abdicado, ao constituírem um governante.

Os direitos naturais corresponderiam, por exemplo, aos à vida, à liberdade, à propriedade, cujo exercício, da parte de cada pessoa, chocando-se com este mesmo exercício, da parte do seu semelhante, era regulado pelo direito legislado. Tal doutrina influenciou as Declarações dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada no curso da Revolução Francesa, e a declaração de independência dos Estados Unidos da América.

Entendiam o direito legislado como fruto da vontade humana, concretamente, da do monarca ou da do povo, expressa esta pelos seus representantes, vontades que deveriam acatar o direito natural.

Contributos

Dada a natureza subjetiva das formulações jusnaturalistas, elas permitiram todas as posições políticas, ainda que incompatíveis entre si, a exemplo da soberania do rei, da do povo, a liberdade do indivíduo e o despotismo do Estado.

O jusnaturalismo, por outro lado, emancipou o direito da teologia, do pensamento medieval e da tradição romana, substituindo a exegese dos textos pela reflexão pura, o que levou à criação de regras e de soluções inovadoras. Do ponto de vista do método, abandonou a interpretação do Corpo de Direito Civil em favor da formulação de princípios abstratos e da dedução das suas conseqüências.

          A Escola Histórica

          Enquadramento histórico. Autores

         O prevalecimento do jusnaturalismo levou, na Alemanha, a uma desadaptação do direito às realidades sociais, posto que, se estas se inovavam, não se inovava o direito natural, que, na sua condição de eterno e imutável, não admitia qualquer alteração. De progressista que fora, como fator de modernização, tornara-se elemento retrógrado.

          Ao mesmo tempo, Kant refutava os fundamentos filosóficos do direito natural, que, assim, desacreditou, enquanto outros autores, como Herder, Condorcet, Turgot e Montesquieu, proclamavam o conceito de historicidade, ou seja, o entendimento de que as criações culturais são históricas,  mutáveis e portanto, relativas ao lugar e ao tempo do seu advento.

          Por outro lado, a Itália e a Alemanha perduravam fracionadas em vários Estados autônomos, o que favoreceu nos povos respectivos a convicção de que o Estado e o direito legislado e uniforme não representavam as formas únicas da sua expressão política e da sua identidade cultural.

          Foram seus principais representantes: Savigny, romanista célebre, exímio na língua alemã e expoente maior desta corrente; Hugo, também romanista, que reputava o direito natural incapaz de construir o que fosse; Puchta, Eichorn, Grimm e Beseler.

         Doutrina

          A Escola Histórica entende o direito e a ciência jurídica como produtos históricos, combatendo o jusnaturalismo na pretensão deste, de constituir uma concepção da moral, da política e do direito a partir de postulados fornecidos pela subjetividade, fora dos  antecedentes históricos em que eles formaram-se em cada povo. A moral, a política e o direito são, para tal corrente, um produto das circunstâncias que se vão sucedendo ao longo dos tempos e que, a cada momento, resultam em um dado estado moral, político e jurídico, que teriam sido outros se os seus antecedentes tivessem variado.

          Em tal perspectiva, decai o conceito de um direito universal, imutável e eterno, os direitos naturais, o contrato social, o estado de natureza, na medida em que nada disto é capaz de confirmação, nem pela história, nem pela observação da vida dos povos. O direito, a língua, o folclore, a literatura, em suma, as criações culturais, seriam a expressão de forças irracionais e espontâneas que atuam na sociedades e exprimiriam o espírito do povo.

          Conseqüências

          Dos postulados mencionados, decorreram as seguintes conseqüências:

O antilegalismo e a anticodificação: a Escola Histórica opunha-se ao direito legislado e aos códigos, então em franca ascenção, enquanto regras formuladas pelas minorias governantes, em substituição à manifestação espontânea e tradicional do povo, na regulação das relações entre as pessoas, que ver-se-iam paralizadas na sua evolução, dada a necessidade da observância de regras fixas.

A valorização do costume e da doutrina: na medida em que os costumes exprimem a vontade do povo e o modo espontâneo como ele regula a sua vida, o costume representava a forma por execelência do direito, e a doutrina, o veículo do seu entendimento racional. Longe de um certo artificialismo intelectual, próprio do direito legislado, os costumes encarnariam a legislação que  o espírito do povo adotaria, mesmo que inconscientemente.

Valorização da história do direito: buscava-se no direito pretérito, não dados sobre regras já obsoletas, porém a compreensão de como elas haviam condicionado a formulação das regras atuais. Buscava-se na história um antecedente face a um conseqüente, o determinante face ao determinado.

O advento do pandectismo, corrente que procurou aplicar o antigo direito romano às condições sociais de então, o que fomentou, por sua vez, novas incursões na história do direito, de Roma e das sociedades.

O pandectismo ou jurisprudência dos conceitos

Uma vertente da Escola Histórica foi o pandectismo, segundo o qual as instituições jurídicas, apresentando certos princípios orientadores, um certo sentido, podia-se, a partir deles, expor-se todo o direito de forma sistemática, deduzindo-se uns dos outros, em um processo lógico que garantiria a verdade científica do sistema. Não se trata da dedução, praticada pelo jusnaturalismo, de noções metafísicas, porém da dedução operada a partir da observação do direito histórico. Em ambos os casos, o método lógico é o mesmo, o que varia, é a base em que ele atua: no caso dos pandectistas, da observação da realidade empírica extrair-se-iam certos princípios gerais como o de que a representação exige um mandato, o de que um negócio nulo não gera quaisquer conseqüências etc.

Limitando-se o papel do jurista a observar a realidade e a nela identifcar racionalmente tais conceitos, deveriam abster-se de tomar posições éticas, políticas, religiosas, para confinarem-se, exclusivamente, ao seu caráter jurídico. Tal neutralidade levou a um individualismo e a um relativismo.

Levou ao individualismo por aceitar-se que a sociedade resulta de uma combinação de atos individuais da vontade da pessoas livres, idéia, aliás, tomada ao jusnaturalismo.

Levou ao relativismo por conferir ao poder estatal a missão de organizar-se politicamente de forma a assegurar a liberdade dos indivíduos, adotando a forma de organização que, consoante o momento e o lugar, fosse mais coerente com tal desiderato: não há um sistema de governo perfeito em si, absolutamente, porém relativamente, ou seja, em relação com o meio correspondente, o que, aliás, era uma idéia que Augusto Comte enunciara já em 1822.

O individualismo da pandectistica conduziu, por sua vez, ao liberalismo, entendido como valorização das liberdades civis e políticas, e como valorização também da propriedade, entendida como expressão destas liberdades, o que opunha-se às restrições próprias do Antigo Regime (feudalismo) e ao socialismo.

A partir destas premissas, a neutralidade do jurídico face ao extra-jurídico foi um dos fatores (a) da racionalização do Estado, em que as situações avaliam-se fora de motivações  político-sociais e dentro de critérios objetivos; (b) da separação entre o Direito e o poder, ou seja, a pandectística repudiava a instrumentalização, pela política, do saber jurídico e dos seus resultados legislativos.

Este ideário marcou fundamente o pensamento político e jurídico europeu e dos países por ele influenciados, como é o caso do Brasil e sobretudo da Alemanha, cujo Código Civil de 1900 é pandectístico, e Portugal, onde Coelho da Rocha aderiu-lhe.

Os dogmas da pandectística

São estes os principais argumentos da pandectística:

1-A teoria da subsunção: a realização da justiça corresponde a um silogismo, em que a premissa maior é a lei, a menor, o caso sub judice e a conclusão, a sentença.

2- A plenitude lógica do ordenamento: o ordenamento seria aplicável a todas as situações imagináveis, mesmo sobre as que não previa expressamente, mediante deduções e combinações conceituais efetuadas pelo juiz.

3- A interpretação conforme o contexto: o sentido de cada regra não decorre das intenções fixas do seu legislador verdadeiro, porém das de um  legislador fictício que continuadamente reinterpreta-las-ia, face ao contexto das demais regras, para manter a coerência de cada uma com as demais.

 

 

Direito natural, Escola Histórica e Sociologia. 

O cotejo das linhas principais do Jusnaturalismo com as da Escola Histórica demonstra haver duas formas por que o pensamento jurídico se exerce quanto aos fenômenos sociais: o Jusnaturalismo corresponde à mais pura metafísica, em que a imaginação subordina a observação e produz devaneios em que se pode pensar, porém não conhecer.

Por sua vez, a Escola Histórica consagra a positividade, no sentido em que Augusto Comte teria atribuído a este qualificativo: ela buscava conhecer  a realidade para entendê-la (e melhorá-la). Na medida em que a observação (e não a fantasia) correspondia ao seu critério de conhecimento, nela, a positividade ingressou no direito como método.

Ingressou também como doutrina, quer porque os seus integrantes se dedicassem às pesquisas da história das sociedades, quer porque proclamassem a historicidade do Direito, com o que reconheciam traço que naqueles mesmos Oitocentos Augusto Comte reputaria como a característica decisiva da própria Humanidade (a influência das gerações, umas nas outras, em que todo passado determina todo futuro e em que todo presente é produto e herdeiro de todo passado). Por isto, Augusto Comte  reputava os juristas alemães seus coevos (adeptos da Escola Histórica), como próximos da positividade e da Sociologia que ele próprio fundou. Neste sentido, enquanto o Jusnaturalismo representou a metafísica sistematizada, a Escola Histórica personificou, no Direito, o Positivismo espontâneo (entendido o Positivismo na acepção original do termo, que se refere à doutrina de Comte, e não ao “positivismo jurídico” de Austin e de Kelsen, melhor chamado de normativismo jurídico.).

Enquanto  o Jusnaturalismo divorciou-se da realidade social e histórica  em que direito se desenvolvia, para criá-lo com base no pensamento puro, a Escola Histórica procedeu de modo inverso: produziu Direito com base naquela realidade.

Em vez, porém, de conservar a sua positividade, e mesmo afiná-la, aproximando cada vez mais o Direito da sociedade, tomou rumo diferente, o de insular o primeiro da segunda, e o de constituí-lo como produção que já a ignorava, com o que transformou a ciência jurídica em sabedoria totalmente autônoma, em autonomia cuja expressão achou-se na obra de João Kelsen.

Se a Escola Histórica houvesse guardado a sua positividade originária e se houvesse conservado próxima da sociedade e desenvolvesse teorização que, sem se desnaturar no seu feitio jurídico, houvesse, ao mesmo tempo, guardado intimidade com a sociedade, então teria resultado em um direito ao mesmo tempo histórico e sociológico. Se houvesse, para mais disto, entrado em associação com as doutrinas de Augusto Comte, ter-se-ia tornado em capítulo da Sociologia, que efetivamente é, embora o seu  grande desenvolvimento científico muitas vezes obscureça a percepção de que todo estudo do homem, coletivamente interpretado, acaba por ser uma vertente do estudo da Humanidade, e por entrar no que Augusto Comte, atento sempre à etimologia, nomeou  de Antropologia.

 

 

       BERMANN, Harold. La formación de la tradición jurídica de Occidente. Fondo de Cultura Economica, México, 1996.

CAETANO, Marcelo. História do Direito Português. Verbo, Lisboa, 1992.

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          CURA, Antonio. Direito Romano e História do Direito Português. Coimbra Editora, Coimbra, 1995.

          HESPANHA, Antonio. Panorama histórico da cultura jurídica européia. Europa-América, Sintra, 1997.

          SILVA, Nuno Espinosa. História do Direito Português. Fundação Kalouste Goulbenkian, Lisboa, 1991.

          WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Fundação Kalouste Goulbenkian, Lisboa, 1993.

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